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Norberto Bobbio:

perfil intelectual do jurista e do teórico da democracia

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No início deste novo século, Norberto Bobbio é o intelectual italiano mais conhecido no estrangeiro. Franco-atirador, espírito independente e irrequieto, o seu pensamento constitui uma referência na esquerda europeia.

1. Introdução

Nascido a 18 de Outubro de 1909 e tendo falecido a 9 de Janeiro de 2004, em Turim, Norberto Bobbio foi, como um dos seus colaboradores mais próximos o qualificou [02], uma testemunha fundamental dos acontecimentos que ocorreram no século XX e que marcaram a história da Europa e do mundo.

Actor privilegiado no combate intelectual que conduziu ao confronto entre as três principais ideologias do século XX – o fascismo-nazismo, o comunismo e a democracia liberal – responsável, em grande parte, pela arquitectura do sistema internacional e sua modelação bipolar (pelo menos até ao Inverno de 1989), Bobbio foi pensador, activista político, professor de direito e, mais tarde, de ciência política, mas, sobretudo, um protagonista da esquerda europeia.

O seu pensamento circunscrito, durante grande parte da fase da maturidade da sua carreira ao círculo restrito dos meios intelectuais italianos, tornou-se, gradualmente, apreciado no mundo de língua espanhola, francesa e inglesa, primeiro por força dos seus estudos de filosofia do direito, sobre o jusnaturalismo e positivismo jurídicos, seguidamente nos estudos constitucionais, depois nos seus ensaios e controvérsias com a esquerda comunista e socialista sobre democracia representativa, o ofício dos intelectuais, a natureza e as múltiplas dimensões do poder, a díade esquerda-direita, o futuro de um socialismo não-marxista e democrático, e finalmente os problemas da relação truculenta entre ética e política.

A leveza, erudição e classicismo do seu pensamento filosófico e político naquilo que já no fim da vida designou como a visão do velho e o reencontro das memórias [03] são, porventura, responsáveis por um acrescido interesse pela sua obra e pensamento, nomeadamente com a reedição em várias línguas dos seus ensaios políticos e filosóficos [04]. Ensaios que guardam um irresistível sabor narrativo e ético-histórico, mas combinam-no com uma básica actualidade na revisitação dos eternos postulados teóricos do debate filosófico como a liberdade, a igualdade, a tolerância, o pluralismo, os quais como que matizam uma concepção de justiça que tem sido avaro em reconhecer. [05] [06]

Duas notas bibliográficas. Norberto Bobbio nasce em Turim numa família burguesa piemontesa tradicional, filho de um médico-cirurgião, Luigi Bobbio, neto de António Bobbio, professor primário, depois director escolar, católico liberal que se interessava por filosofia e colaborava, periodicamente, nos jornais. Tem uma infância e adolescência «felizes», vive numa família abastada, com criadas e motorista. Inicia-se no gosto da leitura com Bernard Shaw, Balzac, Stendhal, Shelley, Benedeto Croce, Thomas Mann e vários outros. É amigo de infância do escritor Cesare Pavese com quem convive e aprende inglês através da leitura de alguns clássicos: ele era o professor, eu o aluno. Lia, depois traduzia e comentava. [07]

Não obstante as origens abastadas e o estrato social elevado a que pertence, por força da posição social do pai, tem uma educação liberal e aberta. Diz na sua Autobiografia: «na minha família nunca tive a impressão do conflicto de classe entre burgueses e proletários. Fomos educados a considerar todos os homens iguais e apensar que não há nenhuma diferença entre quem é culto e quem não é culto, entre quem é rico e quem não é rico». [08]

E regista: «recordei esta educação para um estilo de vida democrático numa página de Direita e Esquerda em que confesso ter-me sentido pouco à vontade diante do espectáculo das diferenças entre ricos e pobres, entre quem está por cima e por debaixo na escala social, enquanto o populismo fascista tinha em mira arregimentar os italianos dentro de uma organização social que cristalizasse as desigualdades». [09]

Mas a consciência política adquire-a, tardiamente, e relembra: não foi no cortiço familiar que amadureci a aversão ao regime mussoliniano. Eu fazia partre de uma família filofascista como de resto o era grande parte da burguesia. [10]

Adquire a educação política no liceu Massimo d’Azeglio, nas aulas de Augusto Monti, amigo de Piero Gobetti e colaborador na revista La Revoluzioni Liberali, na convivência como Leone Ginzburg, judeu russo, de quem se diz impressionado por uma inteligência viva, um «antifascista abosluto». Completa-o na Universidade na companhia de Vittorio Foa, «antifascista de sempre». Ambos, regista, fazem-no sair, pouco a pouco do «filofascismo familiar». [11]

Acaba no liceu em 1927 e inscreve-se na Faculdade de Jurisprudência, na Universidade de Turim. Convive com professores notáveis que lhe ajudam a moldar a personalidade, os gostos e a traçar o seu próprio caminho: Francesco Ruffini, Luigi Einaudi, Gioele Solari. Em 1931 licencia-se em Jurisprudência com uma tese de Filosofia do Direito. O orientador é Gioele Solari com quem se licenciara Piero Gobetti em 1922 e que será um dos seus maestros mais reverenciados, [12] que substituirá anos mais tarde na cátedra de Filosofia do Direito. Inscreve-se no terceiro ano de Filosofia com o objectivo de tirar um segundo curso, licenciando-se em 1933 com uma tese sobre a fenomenologia de Husserl, [13]orientada por Annibate Pastore.

Nessa década de trinta frequenta o círculo de oposição ao regime de Barbara Allason, e é preso em Maio de 1934 conjuntamente com Vittorio Foà numa acção policial do regime contra o grupo liberal Giustizia e Libertà, não obstante não militar nele. É condenado à pena mais leve, a de advertência.

Em 1935 obtém um lugar de docente de Filosofia de Direito na Universidade de Camerino, mas são-lhe levantadas dificuldades dada a prisão e a pena de advertência a que é condenado. Escreve a Mussolini pedindo que lhe seja removida a pena. A carta é pungente e será sessenta anos mais tarde citada como prova de fraqueza e de cedência dos intelectuais antifascistas. [14] Declara a este propósito ao jornalista Giorgio Fabre que subscrevera a peça Alla lettera no semanário «Panorama»: «quem viveu a experiência do Estado de ditadura sabe que é um Estado diferente de todos os outros. E até esta minha carta, que agora me parece vergonhosa o demonstra (…) A ditadura corrompe o espírito das pessoas. Constrange à hipocrisia à mentira ao servilismo.»

Conquistada a cátedra em Camerino é chamado para a Universidade de Siena em fins de 1938, onde permanece dois anos. Em Dezembro de 1940 obtém a cátedra de Filosofia de Direito na Faculdade de Jurisprudência da Universidade de Pádua.

A sua entrada no antifascismo activo em Camerino faz-se por via do movimento liberal-socialista reunido à volta de Guido Calogero, Aldo Capitini, Umberto Morra do Lavriano, Cesare Luporini que irá incorporar alguns anos mais tarde o Partito d’Azioni. O «proselitismo» escrevia um companheiro seu da frente liberal-socialista, Rugero Zangrandi, [15] «era a actividade de base aguardando o dia em que as coisas mudariam, integrada por tímidas acções de propaganda que se transformavam, no entanto, numa aprendizagem para a luta». O movimento liberal-socialista é uma rede de grupos de oposição que se constitui espontaneamente nas universidades, nas colectividades recreativas, nas associações religiosas e nos organismos culturais, perante o que Zangrandi designa pelo «degelo das consciências» na sequência da promulgação das leis raciais e constitui o primeiro movimento cultural antifascista de inspiração não marxista que se afasta da tradição crociana e que consegue exprimir as suas aspirações sociais e libertárias, «dando resposta às exigências mais vivas da juventude intelectual».

Como Norberto Bobbio sublinhará, décadas mais tarde, em Maestri e Compagni, [16] como que antecipando o seu próprio caminho intelectual e político: «embora proclamando-se liberal-socialista, desde o princípio o movimento fez questão de distinguir o seu liberal-socialismo do dos outros pelo empenho ético-religioso e não apenas político de que o animara. Refutou sempre tenazmente a absolutização da política (que era a saída do totalitarismo) e por isso a resolução de todas as actividade humanas na actividade política, na confusão dos movimentos sociais com os partidos. O liberal-socialismo não era ao princípio (e nunca deveria tornar-se) um partido; era uma atitude de espírito, uma abertura numa direcção, uma certeza e uma esperança em contínua renovação, uma orientação de consciência». É por via dessa postura mais ética e valorativa que politicamente militante que prefigurará anos mais tarde a ponte entre as sensibilidades liberal-socialista de Guido Calogero e Aldo Capitini e o socialismo-liberal pós-marxista de Carlo Rosselli. Em 1941 é fundado o Partido de Acção e o movimento liberal-socialista conflui nele, forçando a entrada da Itália na guerra a passagem do movimento à oposição.

Mais que um verdadeiro e organizado partido de massas, o Partito d’Azioni une os conspiradores contra o fascismo, alimenta o sonho do derrube do mussolinismo e da transição para a democracia, ao mesmo tempo que concebe a ideia de uma combinação harmoniosa entre a tradição europeia e britânica de um liberalismo ético materializado nas instituições da democracia representativa e um programa de ampla justiça social que liberte a Itália e os italianos da pecha do subdesenvolvimento. [17]

A origem do seu antifascismo e a sua ideia classista do papel do intelectual, como consciência crítica da Nação e pedagogo, devem procurar-se na tradição do Risorgimento, na tradição laica e anticlerical que andou sempre associada aos meios intelectuais, no liberalismo ético de um Benedetto Croce [18], no liberalismo europeu de Guido de Ruggiero [19], no socialismo-liberal de Piero Gobetti, Guido de Calogero e Aldo Capitini ou mais remotamente, no século XIX, no pensamento de Carlo Cattaneo [20].

Em 1948, Bobbio transfere-se para a Universidade de Turim cabendo-lhe, primeiro, a regência da cadeira de Filosofia do Direito e depois, a partir de 1972, a de Filosofia Política. A sua dupla atracção pelo direito e pela filosofia mas também pela história das ideias, influenciam um percurso académico distinto do que era tradicional, em Itália, num professor de direito. Ao leccionamento das matérias da filosofia do direito e da teoria das relações jurídicas, Bobbio associa cursos monográficos, de carácter histórico, destinados a divulgar o pensamento dos grandes filósofos e das principais correntes da História das Ideias (e da Filosofia). Estes cursos, como o sublinha Celso Lafer [21], inspiram-se no seu mentor e mestre, Gieole Salori, que divulgara através de apostilas e monografias pensadores como Grotius, Spinoza, Locke, Kant e Hegel «à maneira de um professor da Faculdade de Filosofia e não de uma Faculdade de Direito».

O seu interesse pela história das ideias leva-o a partir de 1962 a leccionar Ciência Política conjuntamente com Filosofia de Direito, constituindo a sua cátedra em Turim paralelamente à de Giovanni Sartori, em Florença, as primeiras na área das Ciências Sociais, em Itália. Em 1972, transita para a Faculdade de Ciências Políticas da mesma cidade, indo substituir Alessandro Passarin d’Entrèves na cátedra de Filosofia Política. Dirige vários cursos, nomeadamente ‘’Teoria das formas do governo na história do pensamento político em que perspectiva a partir da trilogia clássica das formas de governo (monarquia, aristocracia e democracia) a história das tipologias e a formação do pensamento democrático.

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Sete anos depois (1979) jubila-se da actividade docente, com setenta anos, mas mantém-se activo na reflexão e na escrita. É substituído pelo seu discípulo Michelangelo Bovero que organizará no fim dos anos 90 uma compilação de apontamentos das suas aulas sob o título Teoria Geral da Política – a filosofia política e as lições dos clássicos. É membro nacional da Academia dei Lincei, desde 1966 e membro correspondente da British Academy, desde 1965.

Dedica os vinte anos seguintes à escrita, ao comentário político e ensaístico, à polémica, ao sabor dos acontecimentos que marcam a vida política italiana. Assume-se a mor das vezes como observador e analista independente, incapaz de se acomodar a uma militância e alinhamento partidários que no fundo julga inibidor e desinteressante. Recusa ostracizar os comunistas, sustenta um diálogo democrático com eles, vendo «não adversários mais interlocutores».

Inconformado com o beco sem saída que o socialismo italiano se remete, Bobbio traz, sobretudo nos anos 70, uma contribuição central ao debate político italiano na revisão dos postulados do socialismo, perguntando em Quale socialismo? [22] o que é que poderia ajudar a resolver a grande contradição entre os dois modelos contrapostos, porquanto quer um quer outro se revelam amplamente insatisfatórios. Polemiza com Togliatti e com Galvano Della Volpe, estudiosos marxistas, «tentando reconhecer as razões que podem ter as pessoas com ideias diferentes das suas».

Na sequência do envolvimento no debate socialista, quebra a promessa que fizera a si próprio de se afastar definitivamente da política partidária, quando o sonho de uma alternativa política liberal se esfumara perante a realidade dos dois partidos de massas dominantes: a democracia-cristã e o partido comunista.

Empenha-se na batalha política que em 1976 leva o PSI das mãos de Francesco de Martino às de Bettino Craxi. Faz parte do grupo de dissidentes que tenta opor-se a Craxi defendendo a candidatura de Giolitti no Congresso de Turim (30 de Março a 2 de Abril de 1978), mas Craxi vence e abre nos dias seguintes ao Congresso as hostilidades contra os comunistas e Berlinguer. Bobbio discorda e di-lo numa carta a Craxi. O afastamento em relação à linha oficial prefigurada por Craxi acentua-se. No Congresso de Verona de Maio de 1984, que reforça o poder pessoal do secretário do PSI, eleito por aclamação, Bobbio escreve em La Stampa uma contundente denúncia dos meandros do poder partidário sob o título irónico La democrazia dell’ aplauso [23] a que Craxi responde. O desencontro entre os dois reatar-se-á em 1987 e 1990 a propósito das reformas introduzidas no programa eleitoral do PSI para as eleições de 14 de Junho de 1987 e de uma conferência organizada pelos socialistas sobre as reformas institucionais e o diálogo com os comunistas. A carta de 12 de Novembro de 1990 citada na sua Autobiografia [24] é a todos os títulos um espelho de uma postura e de uma independência incómoda e incomodada:

Nunca fui comunista, como sabes, mas agora que com o ruir do comunismo histórico teria surgido a ocasião propícia para uma grande iniciativa unitária, a pequena polémica quotidiana parece-me absolutamente estéril. (Bobbio refere-se ao editorial do Avanti órgão oficial do PSI que é dedicado nove em cada dez vezes a qualquer tareia polémica com os comunistas, sic). Na minha opinião não basta mudar o nome do partido, pôr a «unidade» no título e aguardar que o filho pródigo retorne à casa paterna. Sem uma grande iniciativa, receio que não vá tornar (…) [25] Mas eu não sou político, sou apenas um observador. Não exprimo propriamente uma opinião e muito menos faço propostas. Limito-me a expressar uma impressão.

Essa reflexão sobre os caminhos irreconciliáveis entre uma postura cívica digna e as contradições do envolvimento partidário é continuada em Liberalismo e Democracia [26] e em inúmeros artigos recolhidos em ‘’l’Utopia capovolta’’ (a utopia virada ao contrário) [27] ainda inédito fora de Itália.

Em 18 de Julho de 1984 é nomeado senador ad vitam pelo Presidente Sandro Pertini (juntamente com o escritor católico Carlo Bo). [28] Inscreve-se no grupo socialista, como independente integra a Comissão de Justiça do Senado (pertence agora ao grupo parlamentar Democratici di Sinistra-L’Ulivo). Nesse mesmo ano, Bobbio deixa definitivamente a vida universitária, com setenta e cinco anos, e a Faculdade de Ciência Políticas concede-lhe por unanimidade o título de professor emérito. Inicia uma nova actividade pública - a colaboração em La Stampa – e trata matérias da sua predilecção: o pluralismo, os conteúdos do socialismo, a relação com a violência, a terceira via, a crise das instituições. Parte dos artigos serão compilados em Le ideologie e il potere en crisi que sairá em 1981 [29] , seguida anos mais tarde por L’utopia capovolta [30] .

A traumática reconfiguração política italiana iniciada em 1992, quando o sistema político italiano se desmorona como um castelo de cartas em razão da corrupção, das ligações entre a Mafia e a Democracia Cristã de Andreotti, da inépcia da classe política de perceber as mudanças profundas ocorridas na sociedade, de um sistema político que titubeia ao sabor dos governos que se formam e caiem, mobilizam-no para o combate ético e moral, alertando os seus concidadãos para a frágil sustentabilidade da vida democrática, num país com grandes tradições autoritárias e que só conheceu, tardiamente, a unidade política.

Perturba-o uma sociedade que leva muito tempo a recuperar do trauma do assassinato de Aldo Moro às mãos das Brigadas Vermelhas [31] que se contenta com uma justiça parcial face à nuvem de acusações, nunca deslindadas, da cumplicidade da Democracia Cristã, da polícia e dos serviços secretos italianos na sua eliminação. Como escreve Gregorio Peces-Barba Martinez, [32] ao ser visitado na sua casa no dia em que perfaz 90 anos, pelo presidente do Senado, Nicola Manzino, que o felicita pelo aniversário, relembra a ideia do labirinto a propósito da vida política italiana:

A política italiana faz pensar num labirinto…do labirinto, claro está, pode-se sair, embora seja difícil encontrar um caminho para consegui-lo.

E sublinha o caminho para o concretizar:

Acreditamos saber que existe uma única saída mas não sabemos onde está. Não havendo ninguém do lado de fora que nos possa indicá-la, devemos procurá-la por nós mesmos. O que o labirinto ensina não é onde está a saída, mas quais os caminhos que levam a lado algum.

Esta modéstia intelectual condu-lo por vezes a reconhecer a insipiência ou a desactualização de algumas das suas análises mais antigas, ditadas ou pela pressão das circunstâncias ou pela concentração num ou noutro ponto de análise. Como refere o seu editor italiano da obra mais recente ‘’Entre duas repúblicas. Ás origens da democracia italiana’’ [33]: «a bem poucas pessoas do nosso país acontece serem protagonistas durante o curso inteiro de meio século de vida intelectual e civil, exercendo com uma autoridade próxima da sobriedade um magistério moral de extraordinária eficácia. Talvez a ninguém, como a Norberto Bobbio, é concedido poder confrontar, à distância de cinquenta anos, a própria reflexão pessoal a respeito de dois diferentes períodos de transição, dois acontecimentos decisivos para a história política italiana». [34]

Será, portanto, difícil integrar a sua figura de pesquisador incansável, pensador persistente, de homem da cultura [35] com relevante influência política e social, que não se esgota na actual estratificação político-partidária. Homem da escrita, da polémica acutilante e contundente, de convicções e temores, professa um pensamento coerente e exigente que se estriba nos valores de uma sociedade livre, democrática e laica que seja capaz pela prática do diálogo e da tolerância de vencer as suas dificuldades e realizar as promessas de progresso e desenvolvimento com que se comprometeu. [36]

Por isso o seu pensamento político, constitucional e filosófico casa mal com escolas e fidelidades e não enjeita uma dimensão ética e transcendental a que paulatinamente se acerca. [37] Parte de uma reverência especial das lições dos seus mestres intelectuais e de vida: Kant, Rousseau, Hobbes, Kelsen mas também Croce, Weber, Solari, Schmitt, nos primeiros – Passerin d’Entreves, Luigi Einaudi, Renato Treves, Giole Solari, nos segundos. Continua nos exemplos dos seus compagni: Aldo Capitani, Rodolfo Monfoldo, Leone Ginzburg que marcam a sua ligação a: essa minoria de nobres espíritos que defenderam até ao fim, uns com o sacrifico da própria vida, nos anos duríssimos, a liberdade contra a tirania, a tolerância contra o atropelo, a unidade dos homens acima das raças, das classes e das pátrias, contra a divisão entre eleitos e réprobos…» [38] para preencher os caminhos de uma vida intelectual plena como homem da razão e da tolerância. [39]

Esta postura de homem da razão é constante na sua vida ensaística e filosófica: analisar com rigor os conceitos, expressar com clareza o pensamento, explicitar os seus fundamentos inspiradores, seriá-los pelo crivo da crítica e da contraposição analítico-linguística e através de inúmeros exemplos procurar convencer o seu (ou seus) interlocutor(es) pelo exclusivo exercício da Razão e da argumentação. É esta mesma postura que lhe permite peneirar doutrinas filosóficas com que não concorda como o marxismo mas que acha terem dado um contributo especializado para a história das ideias ou polemizar o fracasso do socialismo científico e da sociedade socialista de Leste, colocando-se na perspectiva do adversário (sem partir de uma posição de antagonismo e exclusão absoluta) e explicitando as contradições e lacunas da sua argumentícia. [40]

A mais recente bibliografia dos seus escritos enumera 2025 títulos entre obras de ensaio, direito, ética, filosofia, peças de comentário político [41]. Mas se há um traço comum que une esta vasta e diversificada obra intelectual é a postura do professor que procura de forma simples e intuitiva transmitir a quem o ouve (ou lê) as ideias matrizes de uma riquíssima história das ideias ocidentais e a preserverante defesa das regras do jogo democrático como indispensável à própria sobrevivência da democracia.

Morre a 9 de Janeiro de 2004 em Turim aparentemente sereno. Tinha 95 anos.

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Sobre o autor
Arnaldo Manuel Abrantes Gonçalves

mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela IEP-UCP, licenciado em Direito pela FD-UNL, professor convidado do Instituto Politécnico de Macau (China)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Arnaldo Manuel Abrantes. Norberto Bobbio:: perfil intelectual do jurista e do teórico da democracia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1102, 8 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8615. Acesso em: 26 abr. 2024.

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