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Colisão de direitos fundamentais:

direito à vida X direito à liberdade religiosa

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16/02/2006 às 00:00
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INTRODUÇÃO

Os princípios jurídicos são os grandes responsáveis pela oxigenação do sistema jurídico e pela manutenção da Constituição, por permitirem uma constante adequação do ordenamento jurídico com a realidade social em face das mudanças e transformações sofridas pela sociedade com o passar dos tempos, importância que se tratará logo no início desta monografia, em seu capítulo primeiro.

Mas a teoria jurídica dos princípios está vinculada apenas indiretamente ao tema que se pretende abordar, pois é o substrato teórico do caso concreto nuclear desta monografia. Mais especificamente, o presente trabalho volta-se para o conflito de princípios fundamentais, ou, em outras palavras, para a colisão de direitos fundamentais.

A colisão é um fenômeno que ocorre quando duas ou mais normas de princípio podem ser aplicadas para a solução de um mesmo caso concreto, por estarem estatuídas diretamente na Constituição ou mesmo indiretamente, se dela se puder deduzir, e que acarretam, in concreto, soluções jurídicas totalmente antagônicas, obrigando o operador jurídico a fazer uma escolha entre a prevalência de um(s) direito em face de outro(s), através de um juízo de peso e relevância.

Os fatos relativos à colisão de princípios fundamentais do caso em exame ocorreram em meados de 2001, nas dependências do Hospital Escola da Universidade Federal de Pelotas. A princípio, tratava-se apenas de mais um paciente, do sexo feminino, maior de idade, consciente e aparentemente em condições psicológicas equilibradas. Os médicos logo constaram a necessidade de efetuar, com urgência, uma transfusão sanguínea na paciente, porque o número de plaquetas no sangue estava muito inferior ao normal.

Já no momento em que foi comunicada da necessidade de tal procedimento por parte do médico responsável, pôde-se perceber que se tratava de um caso especial, pois, a paciente logo manifestou sua recusa na realização do ato por motivos de crença religiosa. Ela era adepta da religião denominada Testemunhas de Jeová, a qual proclama, entre seus dogmas, a proibição de seus seguidores efetuarem transfusão sanguínea, sob nenhuma hipótese, inclusive sob risco de vida. Para reafirmar esta vontade, apresentava uma declaração por escrito, responsabilizando-se pela possibilidade da ocorrência de dano à sua saúde, incluindo a perda da vida.

À busca de uma solução legal, o setor jurídico do Hospital Escola, no qual eu atuava como estagiária, foi procurado para dar um parecer acerca da solução jurídica a ser dada ao fato narrado. Tanto o hospital como o médico procuravam nas normas jurídicas um caminho de conduta a ser adotado, uma norma que lhes indicasse o dever ou não da realização da transfusão sem o consentimento da paciente.

Contudo, não foi encontrada no ordenamento jurídico uma regra específica aplicável ao caso em exame, até mesmo porque não é viável ao sistema jurídico regulamentar todas as situações concretas da vida em sociedade em seu diploma legal. Mas foram encontrados na Constituição Federal dois princípios jurídicos que poderiam solucionar o problema, se não estivessem, porém, em visível conflito, pois a aplicação de um levaria a um resultado oposto ao que resultaria a aplicação do outro.

É possível depreender do caso concreto que os princípios em colisão são o direito à vida de um lado e o direito à liberdade religiosa de outro lado. Diante de tal conflito, a primeira posição adotada pelo setor jurídico era de que a recusa da paciente configurava uma afronta ao princípio fundamental do direito à vida, estabelecido no art. 5º, caput da CF/88, um direito inviolável e, portanto, indisponível. A vida, ponderava-se, configura pré-requisito para a efetivação dos outros direitos, pois, sem ela, não há, por exemplo, liberdade religiosa a ser tutelada.

Com base nas referidas argumentações, foi recebido com espanto o parecer do Promotor de Justiça consultado, que recomendava a prevalência da vontade livre e consciente da paciente em face do seu direito à vida, apesar da vida encontrar-se claramente ameaçada. Do ponto de vista do promotor, o princípio da liberdade religiosa deveria ser respeitado, mesmo sabendo que a transfusão sangüínea era a única medida cabível para a reversão da situação clínica gravíssima da paciente, de acordo a avaliação de um corpo médico do hospital e, em outras palavras, mesmo que essa recusa viesse a causar-lhe o óbito.

A situação, de fato, era crítica, muitas eram as pressões psicológicas e opiniões familiares. De um lado as filhas, que não eram adeptas da religião da mãe; de outro, o atual marido, que era radicalmente contra esse procedimento, porque também acreditava nos mesmos dogmas religiosos.

De fato, uma decisão fundamentada em pura valoração subjetiva dos bens em conflito começou a parecer uma forma muito simplista e superficial de resolver-se o dilema, uma simples ponderação de bens baseada na suposição de que o direito à vida está acima do direito de liberdade de escolha e de religião, hierarquia estipulada sem o consentimento da Constituição Federal de 1988, é exatamente o que o ordenamento jurídico quer evitar para salvaguardar a segurança jurídica.

Se assim fosse decidida uma questão levada à apreciação do Judiciário, um magistrado de convicções religiosas mais arraigadas certamente decidiria de uma forma completamente diferente daquele que se considera ateu. O que se busca, todavia, é uma solução jurídica e racional do conflito, baseada nas normas de hermenêutica constitucional e nos métodos de solução de colisão de princípios fundamentais e não no puro juízo de valor de um ou de outro magistrado, advogado ou médico.

A questão é delicada e é considerada pela doutrina como um caso de difícil resolução porque não existe uma regra jurídica escrita que de plano privilegie um dos princípios em conflito, não se trata de uma situação em que a mera subsunção da norma ao caso já define o seu desfecho, quase que automaticamente. Pelo contrário, deve-se analisar todos os direitos fundamentais envolvidos na situação concreta e procurar extrair do sistema a sua vontade preponderante. Como pode ser feito isso é o que se buscará demonstrar ao longo deste trabalho.


1.A IMPORTÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS:

O caso concreto relatado na introdução leva à reflexão acerca de duas normas presentes na Constituição Federal de 1988, ambas descritas no art. 5º, uma no caput e outra no inciso VI, e conceituadas pela doutrina como normas de caráter principiológico.

Antes de passar ao exame específico das normas envolvidas no caso concreto é fundamental definir as características gerais desse tipo de norma, percorrer brevemente os caminhos de sua evolução histórica, a fim de compreender o status alcançado pelos princípios no ordenamento jurídico atual.

As primeiras definições do conceito de princípio excluíram do seu substrato a característica mais importante consagrada hoje pela doutrina: a normatividade; entretanto, indiscutível o valor que tiveram ao impulsionar o desenvolvimento de toda uma teoria jurídica voltada para o estudo dos princípios.

Paulo Bonavides, em seu Curso de Direito Constitucional, faz um apanhado histórico e evolutivo da teoria jurídica dos princípios, no qual indica como uma das precursoras definições de princípio a de Luís Diez Picazo, que faz uma comparação de princípio com geometria, apontando a seguinte semelhança: "onde designa as verdades primeiras". Logo acrescenta o mesmo jurista que exatamente por isso são "princípios", ou seja, "porque estão ao princípio", sendo as premissas de todo um sistema que se desenvolve more geométrico. [01]

A comparação de fato é procedente, já que a maioria das normas principiológicas contêm preceitos gerais, e raramente pormenorizam as situações e o modo como se dará sua aplicação. Estas individualizações ficam a cargo das regras jurídicas, a partir da observância dos bens aludidos nos princípios, os quais pretendem, outrossim, informar as premissas e os fins maiores do sistema. Sem dúvida, a generalidade lhes concede o traço de preconizarem valores maiores, mas outros aspectos foram sendo observados e inseridos na tentativa de uma conceituação mais completa.

1.1. As fases históricas percorridas pela doutrina jurídica e a influência que tiveram na evolução dos princípios

Antes de passar ao exame do pensamento atual da doutrina em matéria de princípios, incluindo a análise dos fundamentos da sua normatividade, é fundamental tecer uma breve retrospectiva histórica para compreender o caminho evolutivo traçado pela teoria jurídica acerca deste tema. O discurso acerca da juridicidade ou normatividade dos princípios passou por três fases distintas, segundo a análise de Paulo Bonavides: a jusnaturalista, a positivista e a pós-positivista. [02]

A fase jusnaturalista foi a primeira e mais antiga, dominando a dogmática dos princípios até o advento da Escola Histórica ou Positivista do Direito; posicionando os princípios numa esfera abstrata e metafísica, por representarem ético-valorativamente os postulados de justiça. Assim, sua normatividade era basicamente nula ou, no mínimo, duvidosa. [03] Essa corrente "concebe os princípios gerais de Direito, segundo assinala Flórez- Valdés, em forma de "axiomas jurídicos" ou normas estabelecidas pela reta razão. São, assim, normas universais de bem obrar. São os princípios de justiça, constitutivos de um Direito ideal. São, em definitivo, um conjunto de verdades objetivas derivadas da lei divina e humana. [04]

Na segunda fase, denominada de juspositivista, os princípios entram nos Códigos como fonte normativa subsidiária dos textos legais. No dizer de Gordillo Cañas, servem como "válvula de segurança", e não como algo que se sobrepunha à lei, ou lhe fosse anterior, senão que, extraídos da mesma, foram ali introduzidos, para estender sua eficácia de modo a impedir o vazio normativo. [05]

No entanto, com o fim da Segunda Guerra Mundial o positivismo jurídico perde sua força em face das atrocidades cometidas com o respaldo de uma ordem jurídica formalmente posta e, portanto, plenamente válida. Mas o retorno ao pensamento jusnaturalista também não apresentava ser uma saída, era preciso fazer uma reciclagem em toda a teoria jurídica, lacuna que se tornou propícia para o surgimento da teoria crítica do Direito, a qual também não apresentou resultados satisfatórios por combater o positivismo através de um discurso radicalmente oposto, valorando, excessivamente, o papel ideológico do Direito na transformação do status quo, mesmo às custas do sacrifício da lei.

Esse contexto pós-guerra até os dias atuais se convencionou chamar de pós-positivismo, o qual pode ser resumido através das sábias palavras de Barroso em:

Um conjunto de idéias difusas que ultrapassam o legalismo estrito do positivismo normativista, sem recorrer às categorias da razão subjetiva do jusnaturalismo. Sua marca é a ascensão dos valores, o reconhecimento da normatividade dos princípios e a essencialidade dos direitos fundamentais. [06]

A característica da normatividade só foi categoricamente afirmada em 1952, com a conceituação dada por Crisafulli:

Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto considerada como determinante de uma ou de muitas outras subordinadas, que a pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais particulares (menos gerais), das quais determinam, e, portanto, resumem, potencialmente, o conteúdo: sejam, pois, estas efetivamente postas, sejam, ao contrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as contém. [07]

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Para confirmar a assertiva de que os princípios são verdadeiras normas jurídicas, Crisafulli utiliza, dentre outros, o seguinte argumento:

Se os princípios fossem simples diretrizes teóricas, far-se-ia mister, então, admitir, por congruência, que, em tais hipóteses, a norma seria posta ou estabelecida pelo juiz, e não o contrário, por este unicamente aplicada, ao caso específico. [08]

De fato, princípios sem força de norma, quando da aplicação pelo magistrado para a solução do caso concreto, constituem uma criação de norma jurídica, do que se infere que o Poder Judiciário estaria usurpando das funções do Poder Legislativo. Portanto, se o magistrado não pode aplicar estas diretrizes teóricas sob pena de ultrapassar o poder que detém, não existe qualquer objetivo para os princípios serem incorporados ao sistema como simples diretrizes teóricas, precisam ser considerados, outrossim, como verdadeiras normas jurídicas.

Mas, somente nas últimas décadas do século passado os princípios jurídicos passam a ser considerados princípios constitucionais em razão da promulgação nas novas Constituições da hegemonia axiológica dos mesmos. [09] Em face deste status constitucional alcançado pelos princípios, tornou-se imperativo passar a tratá-los como direitos, enfatiza Ronald Dworkin, e reconhecer a possibilidade de que tanto uma constelação de princípios como uma regra positivamente estabelecida pode impor uma obrigação legal. [10]

Atualmente, passa a ter força na doutrina e na jurisprudência a idéia de que a norma jurídica se subdivide em princípios e regras, e que ambas possuem o mesmo grau de imperatividade, ou seja, a mesma força de impor uma obrigação legal, o que significa dizer que a solução de um caso concreto tanto pode se dar pela aplicação de uma regra quanto de um princípio.

Através da abordagem histórica das fases percorridas pela teoria jurídica dos princípios pode-se perceber que tamanha evolução foi lenta e gradual, e que os avanços foram decorrentes da ação inovadora de grandes juristas. Na opinião de Bonavides, antes de Dworkin, Müller e Alexy, Boulanger foi o mais insigne precursor da idéia de normatividade dos princípios, apesar de fazer uma distinção ainda titubeante entre princípio e regra. Ele foi o primeiro a concluir que: a verdade que fica é a de que os princípios são um indispensável elemento de fecundação da ordem jurídica positiva. Contêm em estado de virtualidade grande número de soluções que a prática exige. [11]

No entanto, antes de alcançarem a normatividade plena, os princípios foram considerados como idéias jurídicas norteadoras, chamados também de princípios abertos, ou seja, eram considerados uma ratio legis, um idéia a ser concretizada pelos legisladores na formulação das leis e pelos juristas quando da sua aplicação. Outros autores, contudo, não deixaram de confirmar a existência dos princípios abertos, mas já começaram a admitir o surgimento de princípios com caráter de norma, ou seja, considerados como uma regra jurídica de aplicação imediata, chamados de princípios normativos, segundo as anotações de Bonavides. [12]

É dentro deste contexto de dúvidas que surge o constitucionalista Italiano Crisafulli para afirmar que todo o princípio tem eficácia e que:Os princípios são normas escritas e não escritas, das quais logicamente derivam as normas particulares (também escritas e não escritas) e às quais inversamente se chega partindo destas últimas. [13]

De fato, a doutrina constitucional no assunto não se cansa de afirmar a característica da normatividade, mas, com o chamado fenômeno da constitucionalização dos princípios, eles passaram a desempenhar um papel ainda mais importante na estrutura do ordenamento jurídico: o de integrar a Constituição Federal com as demais normas infraconstitucionais de modo a formar um sistema jurídico uno, coerente e harmônico.

Os princípios jurídicos buscam dar unidade ao sistema jurídico porque deixam as portas abertas para a solução dos mais variados problemas, não se limitam a regular uma situação específica, ao contrário, preconizam fins, bens a serem tutelados, limites a serem respeitados daquilo que o Direito entendeu ser mais importante; são os princípios que possibilitam a formação de um verdadeiro sistema e que impedem a simples formulação de normas "soltas", desarticuladas e descontextualizadas.

Como bem referiu o jurista italiano Perassi: As normas constitutivas de um ordenamento não estão insuladas, mas fazem parte de um sistema onde os princípios gerais atuam como vínculos, mediante os quais elas se congregam de sorte a constituírem um bloco sistemático. [14]

Todo esse entendimento levou ao reconhecimento do princípio da unidade da Constituição. Tal princípio impede que haja hierarquia dentro da Constituição entre as duas subespécies de normas, os princípios e as regras. Há, contudo, supremacia das normas contidas na Constituição, sejam princípios sejam regras, em razão de sua posição de norma fundamental do sistema, em relação às demais normas infraconstitucionais.

Chegamos ao ponto em que os princípios jurídicos não só adquiriram normatividade, mas também são considerados as normas-chave de um ordenamento jurídico. Fazendo uma breve retrospectiva, percebe-se uma grande evolução entre o conceito de princípios jurídicos como simples idéias norteadoras do sistema para, hoje, serem considerados efetivas normas jurídicas de caráter fundamental e estruturador do sistema. Num dizer metafórico os princípios alcançaram a normatividade, e detêm a mais alta normatividade de todo o sistema, porquanto quem os decepa arranca as raízes da árvore jurídica. [15]

Dentro dessa nova visão pós-positivista, a conclusão que se chega, na visão de Bonavides, é que os princípios jurídicos são:

"Admitidos definitivamente por normas, são normas-valores com positividade maior nas Constituições do que nos Códigos; e por isso mesmo providos, nos sistemas jurídicos, do mais alto peso, por constituírem a norma de eficácia suprema". [16]

1.2. A diferença estrutural entre regras e princípios

Tomando por base essas premissas, pode-se passar a seguinte etapa, que é a distinção entre as duas subespécies de normas jurídicas, os princípios e as regras. Uma diferença importante apontada pela doutrina já foi anteriormente tratada que é o traço da maior generalidade dos princípios e de uma maior concretude das regras; os princípios são mais abstratos do que as regras.

O segundo critério diz respeito ao diferente modo de aplicação das regras e dos princípios, concepção elaborada por Ronald Dworkin, segundo o qual as primeiras obedecem à regra do tudo ou nada, ou seja, quando o suporte fático nela previsto ocorrer na prática, ela deve ser aplicada de modo automático. Nas próprias palavras de Dworkin: se ocorrerem os fatos por elas estipulados, então a regra será válida e, nesse caso, a resposta que der deverá ser aceita; se tal, porém, não acontecer, aí a regra nada contribuirá para a decisão. [17]

Normalmente não há o que contestar porque as regras regulam situações mais objetivas, como foi referido acima, enquanto os princípios, por serem mais vagos, mais genéricos, dificilmente serão aplicados por meio de simples subsunção, será preciso realizar uma apreciação mais aprofundada sobre a pertinência do valor preconizado no princípio e a hipótese fática que se pretende relacionar, ou seja, é preciso fazer um juízo de peso ou de valor para saber qual princípio deve ser aplicado ao caso concreto.

Não raras vezes, mais de um princípio pode ser aplicado à mesma hipótese em virtude de que em uma ordem pluralista, existem outros princípios, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. [18]Sendo assim, a colisão de princípios, portanto, não só é possível, como faz parte da lógica do sistema, que é dialético. [19]A dialética do sistema se manifesta pelo fato de que há uma multiplicidade de valores jurídicos que precisam ser consagrados e não podem ser excluídos do ordenamento por entrarem em colisão em face de um caso concreto, portanto, o modo como se irá resolver esta situação conflituosa é através da utilização da técnica da ponderação de bens.

O mesmo não ocorre com as regras, em havendo duas ou mais regras contrapostas, mas igualmente aplicáveis a uma mesma situação fática, somente uma poderá permanecer no ordenamento jurídico, as demais serão excluídas do sistema. Uma regra somente deixará de incidir sobre a hipótese de fato que contempla se for inválida, se houver outra mais específica ou se não estiver em vigor. [20]

Em face de um conflito de regras, primeiro procurar-se-á analisar se ambas são formalmente válidas, caso uma delas não seja, será excluída automaticamente, depois, buscar-se-á aplicar os critérios de interpretação da validade das normas, quais sejam, o da hierarquia (lei superior derroga lei inferior), o da especificação (lei específica derroga lei geral) e o cronológico (lei posterior derroga lei anterior) para saber qual regra é válida e eficaz e, portanto, plenamente aplicável ao caso concreto, e qual regra deve ser desconsiderada pelo ordenamento jurídico.

Um princípio será escolhido em face de outro(s) pela sua relavância, mas isso não significa que todo problema semelhante sempre deva ser resolvido da mesma maneira, nas palavras de Dworkin:

o princípio pode ser relevante, em caso de conflito, para um determinado problema legal, mas não estipula uma solução particular. E quem houver de tomar a decisão levará em conta todos os princípios envolvidos, elegendo um deles, sem que isso signifique, todavia, identificá-lo como "válido". [21]

A técnica da ponderação de bens ou interesses será oportunamente enfrentada quando se mostrar pertinente a sua utilização na solução do caso concreto analisado neste estudo, envolvendo os seguidores da religião Testemunhas de Jeová. Tal técnica foi aperfeiçoada pelo insigne jurista alemão Robert Alexy, tendo como cerne o princípio da proporcionalidade, objeto de análise do terceiro capítulo.

1.3. A Importância Da Pré-Compreensão

Diante de uma possível colisão de direitos fundamentais, primeiramente é preciso analisar o conteúdo de cada um dos direitos envolvidos, delimitar o âmbito de proteção e o alcance de cada uma das normas contrapostas, para poder afastar a hipótese de um mero conflito aparente de princípios. O conflito aparente se dá quando o substrato da própria norma interpretada fornece empecilhos para a sua aplicação ao caso concreto, forçando o jurista a excluí-la da problemática, sem a qual desaparece a colisão.

O conflito real de princípios ocorre quando, mesmo após a delimitação e análise dos direitos envolvidos, se conclua que qualquer um deles é perfeitamente aplicável na solução do caso concreto, mas, por preconizarem soluções diametralmente opostas, se mostra incompatível a aplicação de todos concomitantemente, um deve ter prevalência sobre o outro naquela situação específica, nada impedindo que, se alterado algum elemento da hipótese fática, outro direito mostre-se mais apropriado.

Assim, o primeiro passo a ser tomado dentro da análise do caso emblemático deste estudo, onde figuram em flagrante oposição os princípios da liberdade de religião e o princípio do direito à vida, ou melhor, de um lado está o princípio da liberdade lato sensu e seu subprincípio da liberdade religiosa, de outro, figura um bem constitucionalmente protegido: a vida humana, é desenvolver um trabalho de interpretação das normas envolvidas para descartar a hipótese de um conflito aparente de princípios.

Só que uma análise e interpretação abstrata das normas, totalmente descontextualizadas do caso concreto, dificilmente levará a uma resposta acerca da aparência ou realidade de um conflito jurídico. A necessidade de desenvolver um trabalho hermenêutico com base em um caso concreto é uma exigência unânime da doutrina atual.

Não existe interpretação totalmente desvinculada da realidade, realizada em um plano meramente hipotético, por não ser capaz de abarcar em sua generalidade a solução eficiente e justa para as mais variadas situações fáticas, em razão da multiplicidade de fatores envolvidos em cada uma. A hermenêutica moderna, portanto, não está voltada para a busca de respostas abstratas, como bem sintetiza Luis Roberto Barroso:

Toda interpretação é produto de uma época, de um momento histórico, e envolve os fatos a serem enquadrados, o sistema jurídico, as circunstâncias do intérprete e o imaginário de cada um. A identificação do cenário, dos atores, das forças materiais atuantes e da posição do sujeito da interpretação constitui o que se denomina de pré-compreensão. [22]

O caso concreto detalhado na introdução, sem dúvida, suscita o questionamento, a necessidade de buscar-se respostas através da interpretação constitucional e, portanto, dá margens à aplicação do método concretizador, formulado por Konrad Hesse, segundo o qual a dúvida é que instaura o processo interpretativo. Onde não há dúvida, não se interpreta, e raramente se faz mister também alguma interpretação. [23]

Tal método apresenta alguns pressupostos para a solução das colisões de direitos fundamentais: a pré-compreensão do intérprete, do conteúdo da norma e do problema concreto a ser solucionado. Como ensina Wilson Steinmetz, referindo as idéias de Hesse, "Não há método de interpretação autônomo, desvinculado da pré-compreensão do intérprete e do problema concreto a ser resolvido". Como se faz isso na prática é o que ele explica: De um lado a atividade do intérprete deve excluir pontos de vista estranhos ao problema; de outro, deve incluir no programa normativo e no âmbito normativo os elementos concretizantes oferecidos pela norma constitucional e a Constituição como um todo. [24]

Quando se fala em pré-compreensão do intérprete onde se pretende chegar? Em outras palavras, o que o intérprete precisa pré-compreender para desenvolver uma hermenêutica adequada?

A pré-compreensão do intérprete corresponde à capacidade de organização mental de todos os requisitos indispensáveis à solução do problema que se lhe propõe, ou seja, está relacionada à capacidade de assimilar e manipular informações, conceitos e noções relativas a um determinado problema.

Um exemplo radical, mas ilustrativo para entender o que seja a pré-compreensão do intérprete é a incapacidade mental e lógica de uma criança de três anos de idade para a resolução de uma colisão de direitos fundamentais. Por certo ela não será capaz de entender o que lhe é perguntado e muito menos de elaborar uma resposta coerente.

Um médico já experiente também não detém a capacidade de solução jurídica de tal dilema, apesar de ser apto a dar uma opinião subjetiva sobre o conflito. Todavia, espera-se que um magistrado e um jurista tenham a pré-compreensão do que se fala e detenham os subsídios necessários à solução do caso jurídico. Essa capacidade é o que Hesse convencionou chamar de pré-compreensão do intérprete.

Mas, se se procura ir mais longe, tomando-se por base a pré-compreensão de um magistrado ou de um jurista, conclui-se que eles estão ao menos formalmente aptos a resolver um problema de colisão de direitos fundamentais ou qualquer outro problema jurídico que lhes seja proposto. Ou seja, ao menos em tese, deveriam deter os subsídios necessários a resolução da questão. Mesmo assim, é corriqueiro visualizarmos decisões diferentes acerca de um mesmo problema jurídico, provenientes de órgãos judicantes da mais alta importância, tanto nacionais quanto estrangeiros, exteriorizando entendimentos divergentes sobre o mesmo dilema.

Portanto, a pré-compreensão do intérprete é requisito essencial para se começar a tentar resolver uma questão jurídica controvertida, mas a compreensão que o intérprete desenvolverá com base nesses subsídios teóricos é muito variável e será tão ou mais lógica se alguns mitos forem desmistificados, como a idéia de que a razão humana seja capaz de alcançar todas as respostas, de lidar com todas as emoções e de compreender todos os acontecimentos que ocorrem à nossa volta.

A crença de que a razão é dotada de um poder absoluto foi duramente derrubada por dois grandes nomes da nossa história, Marx e Freud, conforme analisa Barroso. Marx defendeu, em sua teoria do Materialismo Histórico, a idéia de que a razão não é fruto da liberdade de ser, criar e pensar, mas prisioneira da ideologia, e Freud afirmou que o homem não é senhor absoluto sequer da própria vontade, de seus desejos, de seus instintos, mas é guiado por um poder invisível que controla o seu psiquismo chamado de inconsciente. [25]

Estas são, sem dúvida, duas teorias que muito influenciaram o mundo, longe de serem as únicas a condenarem a supremacia da razão sobre todas as coisas, a criticarem a existência de uma razão pura e absoluta, dotada de poderes ilimitados, no entanto, detêm o mérito de alcançarem duas conclusões que até hoje não foram derrubadas por ninguém: a grande influência que a ideologia e o inconsciente exercem no ser humano, e a incapacidade que a razão tem de controlá-los, podendo, no máximo, influenciá-los através da autocrítica e do autoconhecimento.

Todos esses fatores precisam ser levados em consideração antes de se afirmar que o raciocínio lógico é capaz de resolver por si só qualquer problema, inclusive jurídico, pois não é; esta incapacidade não se deve ao fato de existir variações entre a lógica de uma pessoa e a de outra, mas ao fato de haver imensas variações entre o pensamento crítico, político, social, cultural e psíquico entre os indivíduos que irão condicionar todo o seu pensamento racional, indubitavelmente.

Mesmo que, num plano meramente hipotético, dois indivíduos tenham crescido no mesmo ambiente familiar (sejam irmãos, por exemplo), tenham recebido a mesma formação acadêmica, tido acesso aos mesmos livros e diplomas legais, ou seja, tenham, teoricamente, o mesmo nível de pré-compreensão exigido ao intérprete, ainda assim, muito provavelmente em algumas situações, desenvolverão compreensões ou defenderão opiniões distintas acerca de um mesmo problema legal, senão em razão de deterem ideologias diferentes, em razão dos esconderijos da mente traduzidos no inconsciente.

Daí o motivo das duras críticas dirigidas contra dois conceitos que integram o imaginário do conhecimento científico: a neutralidade e a objetividade. Eles não passam de mera ficção, no entender de Luís Roberto Barroso, pela impossibilidade de haver um distanciamento absoluto do jurista com a questão a ser apreciada, como é conceituada a neutralidade, bem como é inviável a existência de princípios, regras e conceitos de validade geral, independentemente do ponto de observação e da vontade do observador, o que se convencionou chamar de objetividade. [26]

No entanto, conclui Barroso, o que é possível e desejável é produzir um intérprete consciente de suas circunstâncias: que tenha percepção da sua postura ideológica (autocrítica) e, na medida do possível, de suas neuroses e frustrações (autoconhecimento). [27]No tocante à objetividade, analisa, "todos os objetos estão sujeitos à interpretação", portanto, "a objetividade possível do Direito reside no conjunto de possibilidades interpretativas que o relato da norma oferece", as quais podem ser decorrentes, por exemplo, da existência de normas contrapostas, exigindo a ponderação de interesses à vista do caso concreto. [28]

Portanto, além da pré-compreensão do intérprete, preconizada por Hesse, o operador do direito ainda deve estar à busca de uma neutralidade possível, alcançada mediante uma postura autocrítica e de análise, na medida do possível, do seu inconsciente e do seu psiquismo, a fim de conceder-lhe maiores subsídios para solucionar o caso concreto com mais racionalidade, pautado nos valores da equidade e da justiça. Ou seja, esta neutralidade possível pretende fornecer ao intérprete os elementos essenciais para melhor compreender o problema que deve solucionar.

Assim, voltando um olhar crítico ao caso concreto, é possível compreender as razões que levaram, a priori, o grupo jurídico do Hospital Escola a adotar uma posição no sentido de dar prevalência ao direito à vida da paciente em face de sua liberdade religiosa. Apenas pelo fato de serem todos indivíduos com pouca ou nenhuma vivência religiosa, criados em um ambiente familiar cujos pais ou responsáveis não eram seguidores de nenhum culto, muito menos do culto em questão, Testemunha de Jeová.

Nem é preciso fazer uma análise muito profunda no psiquismo de um grupo de pessoas que se intitulam católicas não praticantes, que foram criadas envoltas em uma cultura capitalista-ocidental, com valores predominantemente existencialistas e materialistas, para saber que dificilmente se encontrará uma só defensora da supremacia dada a um direito individual de cunho religioso de uma minoria, ao menos no Brasil, se está em jogo o bem da vida, o bem maior daqueles que não acreditam na posteridade ou detém sérias dúvidas a esse respeito.

Perceber isso já é um grande passo na direção de uma solução mais neutra e segura, pautada na vontade predominante do sistema no qual estão inseridas as normas interpretadas e o contexto dos fatos analisados, e não na pura e discricionária vontade do intérprete. Procurou-se demonstrar que do simples exercício racional do intérprete, mediante uma ponderação subjetiva de interesses, dificilmente advirá a solução mais acertada.

Essa posição inicial do grupo jurídico do Hospital Escola de Pelotas de dar prevalência ao direito à vida é a mesma adotada pelos procuradores da República Anastácio Nóbrega Tahim e Helio Telho Corrêa Filho, ao ajuizarem a Ação Civil Pública com pedido de tutela antecipada, visando obter autorização judicial para a realização forçada de transfusão de sangue em paciente testemunha de Jeová em virtude de risco de vida, acostada no anexo 1 (um) desse trabalho. O pedido foi deferido pelo Juiz da 3ª Vara Federal de Goiânia, Dr. Carlos Humberto, o que demonstra que tanto a Magistratura quanto o Ministério Público já se manifestaram no mesmo sentido da primeira posição do grupo jurídico do Hospital Escola e que esse assunto está ainda longe de estar pacificado.

Já a busca de uma objetividade possível, pautada nos melhores métodos de interpretação oferecidos pela doutrina, direcionados para a solução do caso concreto, está inserido dentro do que Hesse convencionou chamar de pré-compreensão do problema.

Para chegar a pré-compreensão do problema em si é preciso percorrer alguns métodos clássicos de interpretação constitucional sugeridos pela doutrina e apontados como os mais relevantes e eficazes no tratamento hermenêutico das normas constitucionais, bem como recorrer aos princípios de interpretação especificamente constitucionais a fim de excluir os pontos de vista estranhos ao dilema, o que será estudado ao longo de todo o capítulo segundo.

Enfim, todo esse pré-entendimento, tanto a pré-compreensão do intérprete quanto a compreensão dos fatores ideológicos e inconscientes do intérprete, é fundamental estarem bem sedimentados antes de se passar para uma segunda etapa: a pré-compreensão do problema e a compreensão geral do problema que se pretende ver solucionado. Esta segunda etapa só se perfectibilizará se a primeira for cumprida de modo satisfatório e aprofundado.

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Sobre a autora
Ana Carolina Dode Lopez

advogada em Pelotas (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPEZ, Ana Carolina Dode. Colisão de direitos fundamentais:: direito à vida X direito à liberdade religiosa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 958, 16 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7977. Acesso em: 29 abr. 2024.

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