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Colisão de direitos fundamentais:

direito à vida X direito à liberdade religiosa

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16/02/2006 às 00:00
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2 OS MÉTODOS CLÁSSICOS DE INTERPRETAÇÃO E OS PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO ESPECIFICAMENTE CONSTITUCIONAIS

Antes de tudo, é preciso esclarecer que os métodos clássicos de interpretação propostos por Savigny dificilmente resolverão definitivamente um problema de colisão de direitos fundamentais de forma segura e dentro de uma racionalidade possível; o que não significa que eles devam ser desprezados neste tipo de situação, pelo contrário, auxiliam e muito na delimitação do conteúdo do caso concreto, e em toda pré-compreensão do intérprete e do problema; tais métodos poderão não levar a uma solução jurídica final, mas, sem dúvida, farão o interprete chegar bem mais próximo dela.

Dentre os métodos clássicos se destacam o gramatical, o sistemático, o teleológico e o histórico; estes dois últimos estão intimamente relacionados, sendo apontados por parte da doutrina como diferentes denominações do mesmo método, que seria melhor denominado como método histórico-teleológico. Para resolver uma colisão de direitos fundamentais de forma segura e racional, o método gramatical não apresenta maiores utilidades, já os métodos sistemático e teleológico se mostram de enorme valia para delimitar a órbita do conflito e afastar possíveis colisões aparentes.

Assim, como o método gramatical não apresenta maior importância prática para solucionar uma colisão de direitos fundamentais, far-se-á uma análise desse método à luz do método sistemático, da mesma forma que, para uma melhor compreensão didática do tema, analisar-se-á o método histórico juntamente com teleológico.

2.1. Definição e aplicação dos métodos sistemático e gramatical

O método gramatical consiste em revelar o sentido literal do texto da norma jurídica, a fim de delimitar o conteúdo das palavras nela contida, limitando a atuação do intérprete. Deve ser tomado como o ponto de partida, mas não levará o intérprete a resolver o conflito, uma vez que se dispõe, apenas, a analisar isoladamente cada dispositivo, e o que se tem no caso concreto é um conflito de duas ou mais normas.

Tendo por base a opinião da doutrina que visualiza a importância de uma hermenêutica voltada para o caso concreto, é impositivo que se faça uma análise gramatical do texto das normas-princípio em colisão. O caput do art. 5º impõe literal ou gramaticalmente a "inviolabilidade" do direito à vida e do direito à liberdade, mas isto significa que estes direitos não podem sofrer restrições, limitações diante de certas circunstâncias?

A resposta é sem dúvida negativa, até porque nenhum direito fundamental possui caráter absoluto, ou seja, ilimitado, todos estão sujeitos a restrições legislativas. Se não fosse assim, a exclusão da legítima defesa não poderia ser aceita em face de um homicídio (art. 121 do CP), pois configura uma hipótese em que a vida humana é violada sem que se considere o ato como ilícito.

Em outras palavras, o ordenamento jurídico permite que, nesse caso, a vida humana seja sacrificada para a proteção da vida de outra pessoa que está agindo para se defender. Isso só comprova que o bem da vida não possui um caráter absoluto, uma proteção absoluta. Ao contrário, pode sofrer restrições, por exemplo, em prol da legítima defesa. Disso se conclui, via uma interpretação sistemática, que, o que aparenta ser gramaticalmente "inviolável", como a vida humana, pode ser violável.

Apesar disso, ainda é válida a tentativa de conceituação literal da palavra "inviolabilidade", o seu alcance e profundidade de sentido a fim de responder ao seguinte dilema: a inviolabilidade do direito à vida permite ou proíbe que o indivíduo possa deliberar sobre um tratamento que influirá sobre as suas possibilidades de sobreviver? O próprio indivíduo pode dispor do bem da sua própria vida ou não?

Por certo que a resposta a estas perguntas está estritamente vinculada ao sentido que se dê à palavra "inviolabilidade" no mundo jurídico; se for conceituada como a impossibilidade de qualquer indivíduo, grupo ou instituição retirar o bem da vida de uma pessoa, ou seja, no sentido de que se proíba que um terceiro viole o bem da vida de outrem, nesse caso, não existiriam impedimentos para o próprio sujeito deliberar sobre o tratamento que surtirá risco maior de sua própria vida, já que a violação do bem não adviria de um terceiro; todavia, se fosse acrescentado ao conceito a proibição do próprio indivíduo dispor de sua própria vida, provavelmente a resposta seria outra.

O fato é que não se pode confundir inviolabilidade com indisponibilidade, pois são conceitos distintos e implicam conseqüências igualmente distintas. A inviolabilidade consiste na prerrogativa ou privilégio outorgado a certas coisas ou pessoas, em virtude do que não podem ser atingidas, molestadas ou violadas", conceituação fornecida por De Plácido e Silva, em seu Vocabulário Jurídico. [29]

Indisponibilidade é, pois, indicativo da coisa de que não se pode dispor, isto é, vender, dar, ceder. [30] Dá idéia de uma proibição de despojamento de um bem, no sentido de que a pessoa não pode abrir mão deste bem; ao contrário do sentido depreendido da palavra inviolabilidade, que sugere a proibição de outros indivíduos molestarem ou atingirem o direito alheio. Enfim, quando alguém abre mão de um direito seu, está se despojando deste direito, não está automolestando, auto-atingindo ou autoviolando esse direito. Sendo assim, o sentido gramatical de "inviolabilidade" permite o despojamento do bem pelo próprio titular quando a lei não proíba expressamente essa conduta.

Mas é por meio da interpretação sistemática que se chegará a essa conclusão, ao visualizar-se que a inviolabilidade do bem possa ser afastada na hipótese de legítima defesa, ou que o bem "inviolável" da liberdade seja despojado pelo próprio titular que se submete a participar de programas como Big Brother, exemplo no qual um simples contrato entre as partes permite que bens tão importantes como a vida privada e a intimidade sofram tamanho despojamento por parte de seu titular.

A propriedade é outro bem arrolado no caput do art. 5º da CF/88 como inviolável, e, no entanto, poder sofrer grandes restrições em razão do princípio da função social da propriedade, também disposto na Constituição Federal, nos arts. 5º, XXIII, 170, III, 182, § 2º, e 186.

Ou seja, mesmo que gramaticalmente este sentido de "inviolabilidade" permita que os bens por este adjetivo protegidos possam ser despojados pelo próprio titular em algumas situações a que a lei não proíba, como é o caso do programa de televisão, e possam sofrer restrições estipuladas pela própria Lei Maior, como é o exemplo do direito de propriedade, o que efetivamente corrobora esse entendimento de que os direitos fundamentais não possuem caráter absoluto é obtido através da interpretação sistemática da Constituição Federal.

A interpretação sistemática é tida, juntamente com a teleológica, como a das mais importantes na solução de um conflito de normas. Configura o método segundo o qual o intérprete busca dar uma visão estrutural ao sistema, interpretando a norma sob a perspectiva de todo o resto do ordenamento. Neste ponto da pesquisa se buscará fazer uma correlação das demais situações previstas no ordenamento de proteção do bem da vida, como a eutanásia e o aborto, com o caso concreto da paciente.

Em outras palavras, procurar-se-á anotar semelhanças e diferenças entre os exemplos mencionados, de modo a demonstrar a vontade do sistema em cada caso, ou se existe uma só vontade geral.

O direito brasileiro considera a prática de aborto crime, previsto no Capítulo I do Código Penal, que versa sobre os crimes contra a vida, e consiste numa ação voltada à interrupção do processo da gravidez, com a morte do feto. O aborto só não será considerado crime em duas situações: se for o único meio de salvar a vida da gestante e em caso de gravidez resultante de estupro (art. 128, I e II do CP).

A eutanásia significa matar deliberadamente uma pessoa por razões de benevolência, também é proibida pelo sistema brasileiro, e será punida como crime de homicídio (art. 121 do CP) ou como o crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (art. 122 do CP), dependendo do caso concreto.

A semelhança entre as duas práticas está no fato de que ocorre uma opção pela morte, um ato positivo ou negativo que resulte na morte de uma pessoa ou futura pessoa, um feto. Nas palavras de Dworkin, no primeiro caso, opta-se pela morte antes que a vida tenha realmente começado; no segundo, depois que tenha terminado. [31]

Portanto, são atitudes que optam pela morte, querem que o fim inegável de todas as criaturas ocorra por uma vontade diretamente humana, não natural. Este ato de escolha pela morte, que é condenado pelo ordenamento jurídico brasileiro, apesar do aborto ser legalizado em vários outros países, e a eutanásia ativa ser legalizada na Holanda, é o mesmo ato de aceitação ou de recusa de um tratamento médico por parte de um paciente?

Não parece que seja, pois, se um paciente se recusa a realizar o tratamento médico indicado, mesmo sendo o único tratamento viável e capaz de salvar a sua vida, não se pode dizer que ele faz uma escolha pela morte ou, em outras palavras, uma eutanásia negativa.

Deixemos de lado os motivos religiosos por causarem ainda mais polêmica, e busquemos o exemplo de um paciente diagnosticado com câncer em um de seus órgãos, doença que se sabe não existir cura; o médico sugere a realização de uma cirurgia para retirar a parte afetada pela doença, mas recomenda como tratamento pós-operatório a radioterapia e a quimioterapia como forma de evitar que a doença volte a se desenvolver, ou pior, se alastrar por outros órgãos do corpo humano. Este é o tratamento indicado, mas quem vai decidir se irá se submeter a ele é o paciente, não há nenhuma lei que o obrigue a realizar o tratamento sugerido, nem a doutrina mais arraigada ao direito à vida entende que se deva forçar uma atitude do doente, e, no entanto, sem o tratamento, a morte do paciente pode ser rápida, dependendo do órgão afetado.

Não se pode censurar esta vontade porque, se a morte é uma das poucas certezas da vida, sendo que o máximo que a medicina alcançou foi conseguir prorrogá-la, ninguém melhor que o próprio indivíduo para saber se deseja ou não tentar adiá-la, já que nenhum tratamento médico promete certeza de cura. Os motivos que levam cada um a aceitar ou rejeitar um tratamento não cabem a um terceiro julgar, a melhor pessoa para fazer isso é a própria doente, é ela que está com sua vida em risco, é ela que está sofrendo com as ponderações de seu foro íntimo e de seus sentimentos contraditórios.

As motivações e as convicções de cada pessoa dizem respeito apenas a ela, fazem parte do seu livre-arbítrio, não cabe aos outros enumerar as motivações alheias em aceitáveis e inaceitáveis, segundo os seus próprios critérios, sua própria vivência e com um olhar externo ao problema (visão de uma pessoa sadia). Admitir a livre fundamentação de cada um é, para o operador do direito, desempenhar a neutralidade possível a que já nos referimos.

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O jurisfilósofo Ronald Dworkin admite: Apesar de acreditarmos freqüentemente que alguém cometeu um erro ao avaliar quais são seus interesses, a experiência nos ensina que, na maioria dos casos, nós é que erramos ao pensar assim. [32]

Os motivos que levaram cada um a realizar ou não um tratamento médico dizem respeito à autonomia da pessoa, a razão pode sim decorrer de convicção religiosa, do medo dos efeitos colaterais, por depressão, por pura vaidade, atitude de negação da doença, por todos estes motivos juntos, ou por nenhum deles; não está na alçada dos outros julgar a validade ou não desta motivação, porque é da esfera exclusiva da autonomia da pessoa, de acordo com uma concepção de autonomia defendida por Dworkin, centrada na integridade, segundo a qual:

...não pressupõe que as pessoas competentes tenham valores coerentes, ou que sempre façam as melhores escolhas, ou que sempre levem vidas estruturadas e reflexivas. Reconhece que as pessoas freqüentemente fazem escolhas que refletem fraqueza, indecisão, capricho ou simples irracionalidade... [33]

O homem costuma pensar que o outro deve pensar e sentir igual a ele, e que, portanto, pode interferir no modo como o outro deve agir, este sentimento que beira a ingenuidade não surpreende vindo de um ser que acredita ter sido criado à imagem e semelhança de seu criador. Todos os demais seres, portanto, dentro desta visão egoísta, seriam meras "invenções".

Nesse ponto, Dwokin sugere que é melhor reconhecer o direito geral à autonomia e respeitá-lo sempre, em vez de nos reservarmos o direito de interferir na vida dos outros sempre que acreditarmos que tenham cometido um erro. [34]

Assim, admitindo-se que nos casos de aborto e eutanásia o sistema pretendesse censurar uma escolha pela morte não natural, e que nesses casos, portanto, o sujeito não pode desempenhar sua autonomia, essa vontade geral contém exceções, não configura uma vontade absoluta. O sistema não permite que o indivíduo possa matar um semelhante, mas não pune aquele que mata em legítima defesa; da mesma forma que não permite que a pessoa escolha morrer de morte não natural, mas não aplica nenhuma sanção àquele que tenta ou chega a praticar o suicídio, porque essa não é uma conduta criminalizada.

Se, mesmo esses casos extremos sofrem restrições, apresentam exceções legais, o que se pode falar, então, do caso do indivíduo que se recusa a realizar um tratamento médico, mesmo em face de iminente risco de vida? Antes, porém, é preciso lembrar que risco de vida existe em qualquer lugar e momento, já que a morte, com toda a certeza, é mais cedo ou mais tarde inevitável aos seres vivos em geral.

A recusa do paciente em efetuar transfusão sanguínea não pode ser comparada com os casos citados de aborto e eutanásia porque, diferentemente deles, não é um ato de escolha pela morte. A recusa em realizar a transfusão sanguínea não é a causa direta da morte da pessoa, este é apenas um procedimento indicado para restaurar a saúde do paciente, apesar de não prometer a cura, pois, o que colocou a vida humana em risco foi uma doença ou a realização de um procedimento cirúrgico prévio que exige a realização da transfusão.

Portanto, se não há uma similitude entre as hipóteses fáticas do aborto e da eutanásia com a recusa da paciente em realizar uma transfusão sanguínea, não se pode estender por via de interpretação sistemática, as proibições jurídicas das primeiras para a última, não se permite por via de interpretação extensiva que se restrinja a autonomia da pessoa nesse caso da testemunha de Jeová:

Permitimos que um indivíduo prefira a morte a uma amputação radical ou a uma transfusão de sangue, desde que tenha havido uma informação prévia de tal desejo, porque reconhecemos o direito que ele tem de estruturar sua vida de conformidade com seus próprios valores. [35]

2.2. Definição e aplicação dos métodos teleológico e histórico

Já a interpretação teleológica, igualmente de suma importância para a solução de colisões de princípios fundamentais, busca desvendar a finalidade da norma dentro do ordenamento jurídico.

Sem dúvida que os princípios em colisão pretendem proteger a vida humana e a liberdade de escolha, por configurarem direitos e garantias fundamentais do ser humano, sem impor qualquer hierarquia entre ambos. Resta ainda averiguar um outro princípio da Constituição Federal de 1988 que preconiza os fundamentos do Estado Democrático de Direito em que vivemos, que é o art. 1º e seus incisos, in verbis:

"Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I- a soberania;

II-a cidadania;

III-a dignidade da pessoa humana;

IV-os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V-o pluralismo político".

Interessa para a solução do caso concreto o fundamento descrito no inciso III do art. 1º da CF: a dignidade da pessoa humana. Ainda não há um consenso doutrinário a respeito do conceito jurídico a ser atribuído à este princípio, mas, passados quinze anos da promulgação da Constituição em vigor, muito já se ponderou a respeito e uma doutrina moderna está se formando no sentido de relacioná-la tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência. [36]

Não há dignidade se a pessoa não tiver a liberdade de desenvolver em seu espírito os valores que julgar importantes, da mesma forma que não se pode falar em dignidade se o indivíduo vive em condições de miséria absoluta e não possui nem o alimento necessário à sua sobrevivência diária, pois a falta das necessidades básicas da pessoa lhe retira a condição de humana, fazendo o espírito retroagir até a condição de "homem-bicho".

Nas palavras de Barroso, em um sentido negativo, a dignidade da pessoa humana representa a superação da intolerância, da discriminação, da exclusão social, da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua liberdade de ser, pensar e criar. [37]

A dignidade da pessoa humana, concluindo, significa a valoração da liberdade de escolha em função das múltiplas diferenças na natureza humana. Se as diferenças físicas já são inúmeras, a natureza humana é ainda mais complexa, impossível de ser resumida, enfim, é ilimitada. O espírito humano ou a natureza humana, como se queira chamar, é dotado de uma capacidade irredutível de pensar, de ser, de crer. Suas convicções, seus temores, suas aspirações são incontáveis e variadas, e o respeito a elas significa o respeito à sua dignidade.

Ainda, para corroborar este entendimento, é válido citar o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem da liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e a necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum (...). [38]

Não há dignidade quando os valores morais e religiosos mais arraigados do espírito da pessoa lhe são desrespeitados, desprezados. A pergunta que se faz é a seguinte: adianta viver sem dignidade ou com a dignidade profundamente ultrajada? Se a própria pessoa prefere a morte é porque o desrespeito às suas convicções espirituais configura uma morte pior: a morte de seu espírito, de sua moral.

O Direito quer proteger a vida humana à custa da dignidade da pessoa? Quer proteger a vida de um indivíduo mesmo que isto represente ferir profundamente a sua dignidade? A resposta certamente é negativa para o Direito Brasileiro, do que se infere do art 1º, III da CF, caso contrário este artigo teria proclamado como fundamento do Estado Democrático de Direito a vida humana, e não a dignidade da pessoa humana, como fez.

Em uma interpretação teleológica e também sistemática da Constituição Federal se percebe que um dos fins do Estado é a garantia da dignidade de todos os seus cidadãos. Mas, para saber se, no caso concreto, a vida humana permite o sacrifício da dignidade e da liberdade é preciso ir ainda mais fundo na pesquisa através da aplicação do princípio da proporcionalidade.

A fim de visualizar a importância do que foi acima subsumido da interpretação teleológica, utilizar-se-á um outro método de interpretação que é inclusive considerado por muitos apenas como outro aspecto do método teleológico, chamado de histórico, ou, também denominado de método histórico-teleológico. Tal método consiste na busca do sentido da lei através dos precedentes legislativos, dos trabalhos preparatórios e da occasio legis. [39]

Fugiria do tema fazer uma análise muito profunda de estudo dos precedentes legislativos dos artigos emblemáticos desse trabalho, portanto, a análise resumir-se-á às normas equivalentes nas três últimas Constituições Federais do Brasil, quais sejam, as Constituições de 1946, 1967 e a de 1969, para se fazer uma correlação com as normas equivalentes na atual Constituição de 1988.

Nesse trabalho pôde-se perceber que tanto na Constituição de 1946, de 1967 quanto na de 1969, o texto das normas de proteção aos direitos e garantias fundamentais está contido no final das Constituições, a partir de seus artigos 141, 150 e 153, respectivamente, muito diferente do que ocorre na atual Constituição Federal, que os proclama a partir de seu art. 5º, portanto, logo no início do diploma legal.

Essa é uma grande prova da importância que os direitos fundamentais adquiriram ao longo do século passado e no Brasil, em especial, no final do século, quando encerrado o período da ditadura militar e instaurada uma ordem democrática e um Estado de Direito. Concomitantemente a isso, começa a valorização dos direitos fundamentais e, conseqüentemente, a valorização da teoria dos princípios jurídicos a fim de efetivar a defesa e proteção desses direitos.

O caput dos artigos acima referidos não diferem na essência do atual art. 5º da CF/88, e afirmam, todos, que a Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos de seus incisos. Também no que se refere ao atual inciso VI do art. 5º da CF/88, não se pôde vislumbrar mudança de conteúdo, tanto o art. 141, § 7º da Constituição de 1946, quanto o art. 150, § 5º da Constituição de 1967, quanto o art. 153, § 5º da Constituição de1969, proclamam a inviolabilidade da liberdade de crença e de consciência, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos.

A única mudança Constitucional aplicável ao caso concreto desse estudo, mas que é uma alteração bastante significativa, foi a proclamação do princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito em que vivemos, art. 1º, III da CF/88, disposição que não se encontra em nenhuma das outras Constituições analisadas.

Sem dúvida, essa "novidade" constitucional influi e muito na maneira como se deve fundamentar as decisões emanadas pelo Poder Legislativo e pelos outros poderes desse Estado de Direito. Esse artigo está a indicar a ótica sob a qual todos os membros desse Estado devam se comportar e decidir. Não é, de maneira alguma, uma disposição vazia, carente de conteúdo e deve ser levada em consideração por toda a sociedade e pelo governo escolhido por ela.

2.3. A aplicação dos princípios de interpretação especificamente constitucionais

Ainda resta referir brevemente alguns princípios de interpretação especificamente constitucionais importantes para a solução de colisões de direitos fundamentais, tais como os princípios da unidade da Constituição, da concordância prática, do efeito integrador e da efetividade.

Como o princípio da unidade da Constituição já foi anteriormente mencionado, far-se-á uma análise sucinta do seu significado. Esse princípio prescreve que as normas de índole constitucional, sejam diretas ou indiretamente prescritas na Constituição Federal, possuem supremacia sobre as demais normas do ordenamento jurídico, e que sua interpretação deve se dar em conexão de sentido com as demais normas de modo a formar um sistema jurídico coordenado e harmônico.

Em outras palavras, o princípio da unidade é uma especificação da interpretação sistemática, e impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas. [40] E o modo como se busca essa correlação lógica de normas é através dos princípios jurídicos, por meio dos princípios fundamentais, gerais e setoriais inscritos ou decorrentes da Lei Maior. [41]

Em face de um conflito de normas, há que se levar em conta, primeiro, a supremacia das normas constitucionais e, se a colisão se der num plano constitucional, é fundamental a aplicação do método sistemático e teleológico de interpretação, como se procurou fazer nos subtítulos anteriores.

O princípio da concordância prática exige a ponderação de bens ou valores para que se possa chegar a uma harmonização dos direitos em colisão, em outras palavras, sugere a aplicação do princípio da proporcionalidade para a solução deste tipo de antinomia, o qual será abordado no próximo capítulo.

O princípio do efeito integrador é um princípio de valoração dos pontos de vista formulados na interpretação. [42] De modo a dar prevalência àqueles que promovam e mantenham a unidade da Constituição, ou seja, que favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política. [43]E, como os direitos fundamentais são os maiores responsáveis por uma integração política e social, devem receber prevalência em face das outras normas jurídicas.

Por fim, temos o princípio da efetividade, que representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social. [44]Assim, os direitos fundamentais, reconhecidos como normas jurídicas, devem ser realizados efetivamente, não podem ser reduzidos a meras declarações políticas ou exortações morais. [45]

A interpretação dos direitos fundamentais deverá favorecer ao máximo a concretização de seu suporte fático e quando houver alguma restrição ou limitação ao seu conteúdo, que a interpretação seja feita de modo restritivo.

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Sobre a autora
Ana Carolina Dode Lopez

advogada em Pelotas (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPEZ, Ana Carolina Dode. Colisão de direitos fundamentais:: direito à vida X direito à liberdade religiosa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 958, 16 fev. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7977. Acesso em: 16 mai. 2024.

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