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Norberto Bobbio:

perfil intelectual do jurista e do teórico da democracia

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4. A tentativa fragmentada de erguer uma Teoria Geral da Política

Uma terceira dimensão do pensamento intelectual de Norberto Bobbio consiste na procura de uma Teoria Geral da Política que possa abranger os vários domínios de análise conceptual e disciplinar e o «garimpamento» dos clássicos, como lhe chamou Celso Lafer [82] Conceptualização que constrói em redor de cinco pilares: Estado, Democracia, Poder e Ideologias, Intelectuais. A política é aquilo que Hobbes designou como a «conversação da humanidade» e como conversação é um diálogo entre diversas perspectivas e interpretações da realidade e, no caso de Bobbio, um diálogo com os outros e consigo mesmo.

§ 1º - O Estado

O pilar Estado é para Bobbio o ponto de partida dos estudos sobre o sistema político, interessando mais que o seu desenvolvimento histórico a relação entre as suas estruturas, funções, elementos constitutivos, mecanismos, órgãos e com outros sistemas contíguos. Bobbio considera a Teoria do Estado como uma disciplina fragmentada entre duas disciplinas didacticamente distintas: primeiro, a filosofia política que coloca fundamentalmente três perguntas: a) a melhor forma de governo ou a óptima república; b) o fundamento do Estado e do poder político e a consequente justificação da obrigação política; c) a essência da categoria do político ou da politicidade com a relevante discussão e distinção entre ética e política.

Em segundo lugar, a ciência política entendida como a investigação no campo da vida política capaz de responder a três questões: a) o princípio de verificação ou de falsificação como critério de aceitabilidade dos seus resultados; b) o uso de técnicas da Razão que permitam dar uma explicação causal do fenómeno investigado; c) a abstenção ou abstinência dos juízos de valor, a chamada «avaloratividade».

Bobbio trata a problemática do Estado em quatro obras fundamentais, que são apostilas de seminários teóricos que lecciona aos seus alunos em Turim: Diritto e Stato nel pensiero di Emmanuel Kant, Turim, Giappichelli (1969), Estado, governo e sociedade, S. Paulo, Editora Paz e Terra, La teoria delle forme di governo della storia del pensiero politico, Turim, Giappichelli (1976), Studi Hegeliani. Diritto, società civile e Stato. Importa reter, também, as súmulas aos nemen júris «Estado» e «Poder» que inclui no Dicionário de Política, em co-autoria com Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, publicado pela UTET- Editrice Torrinese.

§ 2º - A Democracia

O segundo pilar é o da Democracia, a que Bobbio dedica algumas das obras mais significativas da sua extensa bibliografia: O Futuro da Democracia, publicado originariamente pela Einaudi (1984) e com versão portuguesa das Publicações Dom Quixote (1988); Liberalismo e democrazia, Milão, Franco Angeli, 1991, Dal fascismo alla democrazia, Milão, editado por Michelangelo Bovero, Baltidini e Castoldi (1997) e inédito fora de Itália. É sua também a anotação ao termo homónimo incluído no Dicionário de Política.

Como já referimos, a perspectiva de Bobbio é procedimental no que concerne à discussão filosófica e política (e também jurídico-constitucional) da bondade da democracia sobre as demais formas de governo. Bobbio dessubstancializa a discussão da democracia apelando às tradições liberal, democrática e socialista que alimentam a história da ideias ocidental. O fundamental é o método e a salvaguarda do método – les régles du jeux – sem o qual não há democracia possível, apesar (e por causa) das várias concepções de justiça e felicidade em confronto na sociedade civil. Mas quando fala em democracia parte de uma definição mínima de democracia que busca em Kelsen, mas enriquece em Schumpeter, Dahl, Duverger, e noutros. O cuidado que experimenta no esmiuçar dos conceitos, na seriação das suas espécies é a afirmação que ninguém tem o exclusivo da verdade: o que pode ser democracia para uns pode não ser para outros. Mas é também o reconhecimento que nada substitui a perda da liberdade: é a sua insistência na democracia o que destaca a liberdade como valor por si privilegiado. Como sublinha, com particular felicidade, Alfonso Ruiz Miguel: [83]

Esse maior apego à liberdade tem muito a ver com um terceiro Bobbio (os outros seriam o Bobbio filósofo e o Bobbio ideólogo), talvez o mais oculto: o Bobbio cultural ou se se quiser o Bobbio Homem. É o Bobbio (…) que na sua juventude foi amigo de Leone Ginzburg e de Cesare Pavese e que pertence à privilegiada geração dos Geymonat, dos Argan, dos Levi, dos Foá….que influenciada principalmente por Gobetti, Croce, Solari e Einaudi, se forma no final da ditadura fascista e se dispõe a lutar contra ela, cumprindo cada um o seu destino ideológico, mas mantendo todo o compromisso por um sistema democrático radicalmente novo. A frustração da unidade antifascista, o naufrágio dos puros ideais a seguir à Libertação podem ajudar a explicar a difícil aliança que formam em Bobbio o seu imesiricordioso realismo político e o seu insatisfeito sentido crítico.

É o reconhecimento do bem avaro e raro da democracia (e da liberdade) - ele que viu perder à irracionalidade das paixões e da utopia, a Primeira República, sob o bengalim do fascismo militarista de Mussolini - que leva à sua «intolerância» perante os assédios do radicalismo à democracia representativa: recusa a miríade da democracia directa propalada pela revolta estudantil que varre Itália (e a Europa) nos anos 60 e que conduz à contestação das autoridades universitárias e à diabolização das régles du jeux. Teima na velha ideia liberal que a democracia é um mau sistema de governo mas todos os outros comparados com ela são bem piores e recusa liminarmente as novas utopias do poder popular, que considera a passadeira para a ditadura e a autocracia [84].

Mas Bobbio não restringe a análise procedimental da democracia ao sistema político visto de um ponto de vista teórico. Importa-lhe, também, a aplicação prática, a sua resistibilidade aos problemas da contextura social das sociedades contemporâneas, designadamente a italiana que mais conhece.

§ 3º- As ideologias

Intimamente ligado com o ponto anterior é a importância que a problemática das ideologias tem no seu pensamento político e na visão da modernidade da vida política. Ela é o terceiro pilar. Como sublinha Andrea Greppi [85] «o pensamento político de Bobbio caracteriza-se por uma paciente busca de um determinado modo de aproximar-se à política, de um método, em que se destaca uma forte componente «realista» e «anti-utópica», com as dificuldades e oscilações que cada um destes termos implica. Caracteriza-se, antes de mais, «por prestar uma atenção prioritária às diferentes formas da linguagem ideológica, na medida em que a linguagem ocupa um lugar essencial nos processo de formação do consenso e exercício do poder». Influindo na complexidade do debate ideológico e das várias expressões do pluralismo como acentua também Chantal Mouffe [86].

Ora Bobbio dedica grande parte dos trabalhos ensaísticos à problemática da ideologia, numa tripla perspectiva: por um lado, produzindo a mais sistemática apologia do liberalismo, ideologia e método analítico em que se revê; cruzando-o com o socialismo, na perspectiva de uma associação sincrética mais que sintética; finalmente, aproveitando-o para uma certa retoricização do Poder numa múltipla avaliação da argumentícia weberiana e schmittiana [87] (ou seja as relações entre ética/moral e poder, ciência e política, poder e burocracia, legitimidade e potência).

Há na vertente da fenomenologia das ideologias e do poder um conjunto de obras suas muito significativas, embora grande parte dos escritos de Bobbio continuem inéditos: os já citados Liberalismo e Democracia [88], editado em francês pelas Éditions du Cerf, Paris (1996), Gramsci e la concezione della societá civile, Milão, Feltrinelli (1976), A Ideologia e o poder em crise, editado em francês por Le Monnier, Florence (1981), mas com versão em língua portuguesa disponível no Brasil, Il profilo ideologico del Novecento italiano, Turim, Einaudi (1985) [89] e duas obras referenciais sobre o socialismo: Quale Socialismo?, Turim, Einaudi (1976), Direita e Esquerda- razões e significados de uma distinção política, Editorial Presença (1994).

A sua caracterização das ideologias da esquerda completa-se com a análise que Bobbio desenvolve nos prefácios dos livros dos liberais italianos que mais o influenciaram na aproximação e militância no liberal-socialismo: Carlo Rosselli e Piero Gobetti. Do primeiro retém a importância de Socialismo Liberal (publicado só depois da sua morte em França e Itália, dele existindo tradução portuguesa no Brasil sob coordenação de Carlos Henrique Cardim, S. Paulo, 1988), para a renovação da esquerda italiana e para o programa político do efémero Partido de Acção de que Rosselli é um dos fundadores teóricos. Do segundo, relembra a importância da revista «La Rivoluzione liberale» para o fortalecimento de uma oposição liberal ao fascismo emergente e para a formação do Partido de Acção, como sublinha em prólogo à edição inglesa da obra do intelectual italiano (On Liberal Revolution, Piero Gobetti, editado por Nadia Urbinati e prefaciado por Norberto Bobbio, Yale University Press)

§4º O Poder; Os Intelectuais

Uma última referência cabe à problemática dos intelectuais que é na visão de Bobbio um pilar fundamental na análise do sistema político, na vitalidade da democracia, na preservação da paz. Saliento a sua compilação de ensaios Os Intelectuais e o Poder. Dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea, com edição portuguesa da Editora UNESP, S. Paulo (Brasil) (1996), bem como de três volumes de testemunho sobre as principais figuras da cultura italiana do século publicados pela editora Passigli de Florença: Italia civile (1964), Maestri e compagni (1984), Italia fedele (1986) ainda inéditos fora de Itália.

Em ‘’Os Intelectuais e o Poder, Bobbio sublinha que ‘’a tarefa do intelectual é a de agitar ideias, levantar problemas, elaborar programas ou apenas teorias gerais; a tarefa do político é a de tomar decisões’’, orientação de autocontenção militante a que regressa, sistematicamente, ora para justificar um pudor mal-disfarçado em não se envolver na luta politico-partidária e na compita pelo acesso às benesses do poder (que rejeita), ora para se resguardar dos tempos em que o compromisso, a preclusão dos princípios, faz o mister na política italiana e europeia.

Essa linha de envolvimento subtil na política, irrepremivelmente de sabor aristocrático, reforça-se noutra passagem da mesma obra ‘’se eu tivesse de designar um modelo ideal de conduta, diria que a conduta do intelectual deve ser caracterizada por uma forte vontade de participar nas lutas políticas e sociais do seu tempo que não o deixe se alienar ao ponto de não sentir aquilo que Hegel chamava ‘o elevado rumor da história do mundo’, mas ao mesmo tempo mantendo aquela distância crítica que o impeça de se identificar completamente com uma parte, até ficar ligado por inteiro a uma palavra de ordem. «Independenza, ma non indiferenza».

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Bobbio acredita que cabe aos intelectuais uma patronagem dos principais problemas da humanidade, uma espécie de reserva crítica última de sociedades conturbadas ou à procura dos seus valores, porque são eles os últimos guardiões da consciência ética, tão menosprezada ou delapidada pelos políticos. Dá particular conta desse propósito, na Autobiografia em palavras que destina ao papel da Società Europea di Cultura [90]:

A Sociedade nascera para opor uma resistência moral à «guerra fria» que parecia que deveria preparar a Terceira Guerra Mundial. Opúnhamos à política dos políticos, a que chamávamos «política vulgar», a «política da cultura», que era a política própria dos intelectuais acima das divisões políticas, cuja tarefa específica deveria ser a de defender as próprias condições de sobrevivência da cultura ameaçadas pela contraposição entre os blocos. Tínhamo-nos comprometido a não discutir entre nós sobre questões de política contingente. Unia-nos o reconhecimento do património cultural comum à França, como à Rússia, tanto à Inglaterra como à Checoslováquia, tanto à Itália como à Polónia. A Europa da cultura não conhecia a «cortina de ferro», que era uma divisão política e só política. A nossa Europa não era a do Leste contraposta à do Oeste [91].


5. Guerra e paz: um cosmopolitismo generoso e exigente

A reflexão sobre a guerra ocupa um lugar considerável na obra política de Norberto Bobbio, sobretudo no período subsequente à sua jubilação da actividade docente na Universidade de Turim e acompanha a sua colaboração, como analista político, no periódico La Stampa. Ela é condicionada pela lição de Hobbes e de Kant, mais que todos os outros filósofos, os «clássicos» que Bobbio venera.

Em 1989, aquando da queda do Muro de Berlim, Bobbio publica (em Turim, pela Einaudi) os seus escritos hobbesianos sob o título Thomas Hobbes em que inclui uma análise detalhada sobre a problemática da guerra, como corporização do poder soberano [92]. Mas não esquece as lições que extraíra de Kant no início da sua actividade ensaística no domínio da filosofia do direito e do contributo do jusnaturalismo para a filosofia, o constitucionalismo, a moral [93].

De Kant apropria-se da solução oferecida pelo projecto federalista, fundado sobre a convicção que a ultrapassagem da condição estrutural da anarquia internacional (outro princípio hobbesiano) não pode ser concretizada senão pela abolição da política da força, que é prerrogativa dos Estados obcecados pela sua soberania, e por uma concepção universalizada dos direitos humanos:

A constituição do estado civil resolve o problema das relações entre os indivíduos no estado de natureza. Esse evento constitui o triunfo do direito sobre o Estado não-jurídico, ou somente provisoriamente jurídico. Mas com a constituição do Estado, ou seja, com a supressão do estado natural entre os indivíduos, o triunfo do direito não é ainda completo. Aquele mesmo estado de natureza que estava em vigor antes da constituição do Estado entre os indivíduos, continua vigorando nas relações entre os Estados. O triunfo do direito na sociedade humana não será completo enquanto não for instaurado um estado jurídico civil e não-natural também entre os Estados [94].

Neste quadro se insere o conjunto de textos, particularmente rico e significativo, consagrado à teoria da guerra e da paz, à natureza da guerra nuclear e à inaceitabilidade moral e ética das suas exigências de salvaguarda de um «equilíbrio de potências sustentado no terror» (contemplado por exemplo em ‘’Il problema della guerra e le Vie della Pace’’, publicado em 1979, em Bolonha pela Il Mulino). Ou a compilação de ensaios que com o título L’État et la démocracie internacionale. De l’histoire des idées à la science politique são dados à estampa pelas Éditions Compléxe [95].

Um pacifismo activo, que Bobbio contrapõe ao passivo, porque incapaz de combater a guerra, e que projecta em três frentes: 1) um pacifismo instrumental que defende o desarmamento e a resolução pacífica de todos os conflitos entre potências; 2) um pacifismo institucional desdobrando-se em duas vertentes – um pacifismo jurídico, que busca a paz pelo Direito através de organizações internacionais: um pacifismo social, que identifica a guerra com a opressão de uma classe no plano interno, e pela expansão imperialista no plano internacional; 3) um pacifismo de fins que procura agir sobre os homens, convencendo-os que a guerra deve ser erradicada.

Perante a queda do comunismo que antecipara de um ponto de vista filosófico, rejeita a visão do fim da história difundido entre outros por Francis Fukuyama. Num «mundo de espantosas injustiças» teima «não se pode pensar que a esperança da revolução tenha morrido, só porque a utopia comunista faliu» E questiona ‘’estarão as democracias que governam os países mais ricos do mundo em condições de resolver os problemas que o comunismo não conseguiu resolver?’’ [96]

O seu envolvimento cívico e político passa, igualmente, por artigos de opinião que publica em La Stampa de Turim e noutros influentes jornais italianos, pela intervenção em conferências e pela participação em protestos contra a ingerência e o abuso da força nas relações internacionais, ao lado dos pacifistas dos anos 80/90 e que sairiam em compilação sob o título ‘’Il terzo assente’’, em 1989, na editora Sonda, de Turim (traduzido para espanhol pela Editora Cátedra) [97].

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Sobre o autor
Arnaldo Manuel Abrantes Gonçalves

mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela IEP-UCP, licenciado em Direito pela FD-UNL, professor convidado do Instituto Politécnico de Macau (China)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Arnaldo Manuel Abrantes. Norberto Bobbio:: perfil intelectual do jurista e do teórico da democracia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1102, 8 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8615. Acesso em: 18 mai. 2024.

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