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A tutela jurídica da hierarquia e da disciplina militar:

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17/09/2005 às 00:00
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CAPITULO 2: A TUTELA CONSTITUCIONAL

            Consoante já anunciado, a hierarquia e a disciplina militar possuem tutela específica na Constituição Federal, fazendo-se necessário a compreensão da peculiar estrutura normativo-penal da Constituição e o seus reflexos no afazer interpretativo desse institutos.

            Como, diferentemente das leis – que possuem uma estrutura proposicional do tipo se A, então B – as normas constitucionais, apesar de possuir natureza e função que lhe conferem posição diferenciada no universo normativo [44], limitam-se a enunciar princípios; a sua aplicação exige que sejam não apenas interpretadas, mas, sobretudo, densificadas e concretizadas pelos operadores da Constituição.

            Entretanto, nem todas as normas constitucionais apresentam essa estrutura normativo-material diferenciada. A rigor, isso se verifica – principalmente – com as normas que integram a parte dogmática das constituições, onde se encontram compendiados os direitos fundamentais. As demais normas não são princípios, mas simples regras de direitos, que, por isso, são interpretadas e aplicadas com os mesmo métodos e critérios utilizados para a atuação dos preceitos infraconstitucionais em geral [45].

            Diante do problema hermenêutico criado pela constitucionalização dos direitos fundamentais – e porque a positivação desses direitos tinha que se fazer sob estruturas normativo-materiais, necessariamente abertas e indeterminadas, avessas, portanto, aos procedimentos lógico-subsuntivos de aplicação das leis em geral – cuidaram os estudiosos de formular uma teoria hermenêutica que se poderia considerar terminologicamente adequada, na medida em que responde à necessidade de interpretar e aplicar princípios.

            Nessa estrutura normativo-constitucional, faz-se necessário a compreensão da hierarquia e disciplina militar como princípios e/ou regras constitucionais e seus efeitos na organização, preparo e emprego das Forças Armadas.

            Reconhecida, afinal, a especificidade da matéria constitucional – ainda que restrita à parte dogmática das constituições - torna-se evidente que a chamada interpretação especificamente constitucional, ao fim e ao cabo, é apenas uma hermenêutica de princípios, de pautas axiológicas para cuja efetividade deve-se substituir a idéia retrospectiva de interpretação pela idéia prospectiva de concretização.

            2.1 A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

            O termo hermenêutica tem proveniência grega provavelmente em razão de Hermes – o Deus mensageiro do Olimpo aos homens. Esse Deus trazia ao conhecimento humano o que era ininteligível; o que ultrapassava a compreensão. Assim, em sua origem, a hermenêutica tinha o sentido de transmissão de mensagens, de "dar a conhecer algo oculto".

            A hermenêutica é a ciência cujo objeto é o estudo da atividade interpretativa do homem envolvendo o logos [46] como razão e também como discurso. Como discurso ou fala, a interpretação vem traduzir pensamento em palavras, movimentando o logos na direção contrária, ou seja, do âmbito externo para o âmbito interno do sentido - o pensamento.

            Quando a interpretação conjuga a conduta humana com o Direito posto e os fatos, a hermenêutica adquire o caráter jurídico. Nesse sentido, a hermenêutica jurídica pode ser concebida como um conjunto de regras que orienta a tarefa interpretativa elucidando suas estruturas e funcionamento, com o objetivo de estudar o conteúdo, sentido e finalidade dos princípios e leis para aplicá-los da melhor maneira.

            Desse modo, o ordenamento positivado fixa normas abstratas e genéricas em linguagem clara e precisa, contudo, sem prever as minúcias da infinidade de casos concretos que possam surgir. É neste momento que se faz presente a atuação do executor das normas, na medida em que ele analisa, diante de si, a lei e o fato social para, conforme o caso concreto, determinar o sentido e alcance daquela.

            Dentro da hermenêutica jurídica, encontramos a hermenêutica constitucional, considerada um dos mais importantes espécies da Hermenêutica Jurídica contemporânea.

            A hermenêutica constitucional carrega uma série de particularidades que a tornam específica, sem que isto signifique uma cisão com a estrutura da hermenêutica jurídica. A interpretação constitucional seria um caso especial da interpretação legal e sua singularidade, como salienta CELSO RIBEIRO BASTOS [47], apenas justifica a diferenciação do seu tratamento.

            Pode-se entender a hermenêutica constitucional como a técnica jurídica que estuda, especula e elabora enunciados orientados à compreensão do conteúdo, alcance e significado das normas constitucionais. É o processo que se desenvolve sob uma perspectiva metodológica no sentido de determinar a norma jurídica constitucional relativa a um suposto de fato.

            Oportuno se faz diferenciar hermenêutica e interpretação. A primeira, como já abordado, é o ramo da ciência direcionado ao estudo e determinação de regras para a interpretação. É o domínio teórico que busca sistematizar os instrumentos – ou seja, princípios e regras – de interpretação com o fim de alcançar o significado da lei.

            A hermenêutica jurídica tem existência autônoma e situa-se em um campo de maior abstração. Trata-se de um momento lógico, anterior à interpretação [48], que pontua os enunciados sobre regras jurídicas no sentido de elucidar-lhes o alcance, validade, origem e sentido. Pela definição do Dicionário jurídico:

            "A hermenêutica jurídica é a ciência auxiliar do direito que tem a tarefa de interpretar normas, buscando seu sentido e alcance, tendo em vista uma finalidade prática, criando condições para uma decisão possível, ou melhor, condições de aplicabilidade da norma com o mínimo de perturbação social, empregando, para tanto, as várias técnicas interpretativas. Objetiva estabelecer princípios e regras tendentes a tornar possíveis a interpretação e explicação não só das leis como também do direito como sistema." [49]

            Já por interpretação, entende-se:

            "Ato de esclarecer a lei, descobrindo o seu sentido e alcance, extraindo tudo o que nela se contém, revelando sua significação apropriada para a vida real e conducente a uma decisão. Ato de desvendar o sentido dos símbolos lingüisticos contidos na Constituição para obtenção de uma decisão de problema prático. É a investigação metódica da lei, a fim de apreender-lhe o sentido não apenas gramática, mas em função lógica, sistemática, histórica e teleológica, ou seja, a sua conexão harmônica com o sistema jurídico, o motivo por que foi feita e o intuito para que foi feita." [50]

            A atividade interpretativa encontra-se no bojo da hermenêutica e é eminentemente concreta; reporta-se a uma situação de fato. É o ato de explicar o sentido de algo, é a revelação do significado de uma expressão verbal [51]. LIMONGI [52] observa que interpretar é aplicar as pautas perquiridas e ordenadas pela hermenêutica, para o bom entendimento dos textos legais. AURÉLIO AGOSTINHO [53] acrescenta que o intérprete deve preliminarmente recorrer aos ensinamentos da hermenêutica para descobrir o sentido e alcance de um determinado dispositivo legal. Interessante é o exemplo dado por CELSO RIBEIRO BASTOS:

            "O hermenêuta oferece os enunciados que servirão à interpretação. O intérprete os toma como um dado prévio, e deles se utilizará segundo sua arte interpretativa. A interpretação, pode-se dizer assim, é verdadeiramente uma arte. Como as tintas que se apresentam ao pintor, os enunciados hermenêuticos são deixados ao tirocínio do intérprete." [54]

            É por esta razão que o autor supra afirma que interpretar é uma arte que se aproxima da retórica uma vez que precisa convencer e persuadir o interlocutor do caminho traçado para conformar norma e fato.

            É oportuno lembrar que sujeito (intérprete) e objeto (Constituição) são pólos distintos dentro da atividade hermenêutica. O texto constitucional carrega, em si, um significado intrínseco que delimita o campo de atuação do intérprete e evita que ele aja arbitrariamente. Esta relação hermenêutica é bem ilustrada por VASCONCELOS DINIZ:

            "

Como objeto da interpretação, a Constituição tem uma objetividade diante do intérprete que não tolera a captação de outros significados para além daqueles que ela transmite por meio do diálogo hermenêutico. Ao mesmo tempo, o intérprete não assume uma posição de inércia, não se contenta com a mera reprodução fiel do sentido por ele captado, mas também toma parte na produção deste". [55]

            Evidencia-se o papel operante e dinamizador da interpretação. Sua finalidade é fazer a ordem jurídica funcionar, tornando dinâmico o Direito [56]. Não há exagero na afirmação de que a interpretação é força motriz do Direito. É pela tarefa interpretativa que se constitui a ponte entre a abstração, a generalidade da lei e a individualidade do caso particular.

            2.3 REGRAS E PRINCÍPIOS

            Hodiernamente, a doutrina tem sido pacífica na compreensão de que princípios e regras são espécies emanadas de uma mesma origem: o superconceito norma jurídica. Nesse sentido, CLAUDIUS ROTHENBURG assevera que:

            "Tanto as regras como os princípios são normas porque ambos dizem o que deve ser. Ambos podem ser formulados com a ajuda das expressões deônticas básicas do mandamento, da permissão e da proibição." [57]

            Assim, a distinção entre ambos é uma distinção entre dois tipos de normas, uma vez que:

            "Sobre essa identidade básica é que se vão traçar diferenças, a respeito da diversa feição normativa que cada qual apresenta, justificando uma natureza peculiar tanto aos princípios quanto às regras, mas que não deve ocultar o que lhes é igual em essência." [58]

            2.3.1 Regras

            Regras são normas jurídicas que regulam o comportamento e a conduta social, estabelecendo um dever ser, ou seja, nos dizem como devemos agir em determinadas situações específicas. Uma regra é prescrição abstrata e genérica, uma previsão jurídica editada para disciplinar, aprioristicamente, um número indeterminado de atos ou fatos da vida real. Ela descreve os traços genéricos destes prováveis atos ou fatos em uma tarefa de abstração.

            De acordo com a doutrina de DWORKIN, esboçada na obra levando os direitos a sério, as regras "são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão." [59] Em outras palavras, é estritamente necessário que haja identidade entre fato e norma para que esta seja aplicada. Os pressupostos de fato referidos pela regra devem estar presentes para que ela seja válida. Se assim for, em qualquer caso há de se aplicar a regra. Neste sentido, INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO ensina:

            "Por isso se afirma que, na aplicação aos casos ocorrentes, as regras valem ou não valem, incidem ou não incidem, umas afastando e/ou anulando as outras sempre que as respectivas conseqüências jurídicas sejam antinômicas ou reciprocamente excludentes." [60] (grifei)

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            A essa lógica de aplicação das regras, RONALD DWORKIN intitula disjuntividade. As regras são aplicadas de forma disjuntiva, ou seja, ocorrendo a hipótese de incidência e sendo a norma válida, a conseqüência jurídica deve necessariamente ocorrer.

            VALDIRENE LAGINSKI entende que, com base na disjuntividade:

            "Toda norma jurídica tem de ser forçosamente lícita ou ilícita e só com a estrutura disjuntiva é possível conceitualizar ambas as possibilidades. A proposição disjuntiva caracteriza-se pelo fato de que a um mesmo sujeito se atribui uma pluralidade de determinações que se excluem entre si. Por meio da cópula ‘ou’ as duas determinações se põem por uma parte em exclusão mútua do sujeito-objeto." [61]

            Deduz-se, então, não ser viável que duas ou mais normas incidam sobre um mesmo caso. Uma regra afasta a outra. Uma regra anula a outra. Isto para que seja zelada a coerência do ordenamento jurídico, evitando situações antinômicas. Ainda assim, dada a complexidade do corpo normativo, não é possível eliminar totalmente as antinomias. Desta feita, quando elas ocorrem, apenas uma das regras será válida.

            Quando se verifica a incompatibilidade de normas que pertencem ao mesmo ordenamento e têm o mesmo âmbito de validade, uma delas será extirpada. Nessas situações extremas, torna-se visível a inevitável criatividade judicial do direito, quando "o sistema permite que o intérprete atue ao mesmo tempo como legislador mais e menos, na medida em que a escolha de uma das normas em conflito implica rejeição da outra, e vice-versa." [62]

            O próprio ordenamento jurídico dispõe de critérios para equacionar conflitos antinômicos. São de ordem cronológica, hierárquica e de especialidade, comumente conhecidos em latim como lex posterior derogat priori; lex superior derogat inferiori; lex specialis derogat generali. São invocados pelos aplicadores do direito para solucionar conflitos, já que, a incidência de uma regra fatalmente afasta outra.

            "Se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida. A decisão de saber qual delas é válida e qual deve ser abandonada ou reformulada, deve ser tomada recorrendo-se a considerações que estão além das próprias regras. Um sistema jurídico pode regular esses conflitos através de outras regras, que dão precedência à regra promulgada pela autoridade de grau superior, à regra promulgada mais recentemente, à regra mais específica ou outra coisa desse gênero." [63]

            2.3.2 Princípios

            Princípio é um termo de raiz latina; vem de principium, initium e significa origem, começo, exórdio. Foi traduzido na Filosofia por ANAXIMANDRO com sentido de fundamento, causa do movimento. ARISTÓTELES, por sua vez, foi quem primeiro enumerou os significados possíveis da palavra, como por exemplo, ponto de partida efetivo de uma produção ou causa externa de um processo ou movimento. Para os PRÉ-SOCRÁTICOS, princípio é o elemento constitutivo das coisas ou dos conhecimentos. [64]

            O estudo dos princípios no que tange o enquadramento filosófico reclama, indispensavelmente, o estudo de três fases: a jusnaturalista, a positivista e a pós-positivista. A sucessão de cada uma delas vai denunciar a gradativa importância que foi sendo reconhecida aos princípios dentro do ordenamento jurídico.

            O jusnaturalismo enquadra os princípios em uma esfera abstrata e metafísica. [65] São axiomas jurídicos inspiradores de um ideal de justiça com eficácia restrita ao campo ético-valorativo. Nesta medida o papel dos princípios se distancia da normatividade e perde força vinculante. RUY SAMUEL ESPÍNDOLA [66] arremata que os princípios são, dentro da concepção jusnaturalista, normas universais de bem obrar; princípios de justiça, constitutivos de um Direito ideal.

            A fase juspositivista é, como todos sabemos, o primado da lei, e é serviço dela que os princípios são posicionados. Derivam da lei e são todos como uma fonte normativa subsidiária dos textos legais. Ocupando o plano meramente teórico, os princípios exercem o papel de integração do Direito quando surgem lacunas. Nesta fase, os princípios são como válvulas de segurança que garantem o reinado absoluta da lei. Infere-se, portanto, que o juspositivismo mitiga a normatividade dos princípios ao relegá-los como meros acessórios das normas, empregando-lhes maior papel instrumental e completivo que normativo e vinculante.

            Pós-positivismo: A terceira fase é recente e denota a "hegemonia axiológico-normativa dos princípios." [67] É a fase em que os princípios alcançam a força de normas jurídicas vinculantes, vigentes e eficazes, ultrapassando o restrito papel de integração do Direito, como intencionava o juspositivismo.

            Cabe ressaltar que a expressão princípio tem sido utilizada indistintamente, em vários campos do saber humano, a fim de estruturar sistemas ou conjuntos articulados de conhecimentos sobre objetos cognoscíveis. MARIA HELENA DINIZ parte do conceito abstrato de princípio antes de avançar para o campo jurídico:

            "Princípio- a) Origem ou causa da ação; causa primária; b) o que contém ou faz compreender as propriedades ou caracteres essenciais da coisa; c) cada uma das proposições diretivas ou características a que se subordina o desenvolvimento de uma ciência; regras fundamentais de qualquer ciência ou arte; d) norma de ação enunciada por uma fórmula; e) fundamento; f) o que contém em si a razão de alguma coisa..." [68] (grifei)

            Apesar desta multiplicidade de significações, pode-se afirmar que princípios são diretrizes basilares que organizam qualquer sistema. São o marco fundante e justificador dos conhecimentos, mas que não têm apenas papel de iniciar determinada organização; têm, com igual importância, atuação no funcionamento e consistência do sistema, sua sobrevivência, coerência e validade.

            Mesmo partindo para o campo do Direito, percebemos que a palavra em estudo incorpora diversas conotações. Ora refere-se à formulação dogmática de conceitos estruturados sobre o direito positivo, ora designa determinado tipo de normas jurídicas, ou ainda estabelece postulados teóricos. É bem verdade que esta polissemia pode vir a abrigar confusão de conceitos.

            Assim, princípio jurídico pode ser entendido como o pensamento diretivo que domina e serve de base para a formação de disposições singulares de direito de uma instituição jurídica, de um código ou de todo o Direito Positivo. O princípio encarna a teleologia do sentido de uma lei, seu motivo determinante e sua razão formadora. [69]

            Os princípios são o mandamento nuclear do sistema. [70] Constituem as proposições primárias do direito e estão vinculados aos valores fundantes da sociedade. Por assim ser, impõem ao operador do direito interpretação consentânea a tais valores. É onde pode-se diagnosticar o cunho axiológico da interpretação principiológica.

            Jamais um ordenamento jurídico será integrado, exclusivamente de regras. Há, nele, também, princípios de direito. É a sábia lição de EROS ROBERTO GRAU [71], que ensina que, dentro do corpo normativo, tais princípios serão: princípios gerais do Direito ou princípios positivos do Direito. A grosso modo, pode-se dizer que os segundos são os primeiros em sua forma aplicada, mas tal discussão não será aprofundada no presente estudo.

            Adentrando no contexto da Constituição, tem-se entendido que os princípios constitucionais são os já conhecidos e conceituados princípios, agora formulados e inseridos em um conjunto de normas "mais altas" do ordenamento – a Lei Maior. Nesta oportunidade, emerge questionar se um princípio passa a ser constitucional apenas e tão somente por sua inserção na Constituição. Tal indagação é satisfeita pela lição de ROTHEMBURG, quando afirma que:

            "a localização não é irrelevante, quer em razão da evidência que assim se empresta aos princípios, quer pela superioridade formal de que se revestem no quadro - hoje largamente predominante – das constituições rígidas." [72]

            Aspecto peculiar é a natureza desses valores. São valores superiores que informam a Constituição, munindo-a dos instrumentos indispensáveis à consecução de seus próprios objetivos. É o que CARMEM LÚCIA ROCHA diz:

            "Os princípios constitucionais são os conteúdos intelectivos dos valores superiores adotados em dada sociedade política, materializados e formalizados juridicamente para produzir uma regulação política no Estado. Aqueles valores superiores encarnam-se nos princípios que formam a própria essência do sistema constitucional, dotando-o, assim, para o cumprimento de suas funções, de normatividade jurídica. A sua opção ético-social antecede a sua caracterização normativo-jurídica." [73]

            Sob esses aspectos, a hierarquia e a disciplina militar apresentam-se como verdadeiros princípios jurídicos a orientar toda a organização, funcionamento e emprego das instituições militares

            Salientando algumas características inerentes aos princípios, é importante lembrar que eles são, eminentemente, abstratos, linhas diretoras. Desta feita, não se trata de imperativos categóricos. Diferente do caráter coercitivo, mandamental e relativamente taxativo das regras, os princípios têm atuação oscilante, apontam tendências, sopesam valores. Eles estabelecem orientações estimativas de cunho axiológico, enunciando motivos para decidir em um certo sentido sem impor ao intérprete aplicador uma única decisão concreta. [74]

            Neste compasso, admitem convivência e conciliação com outros princípios eventualmente concorrentes. Por não serem, em absoluto, incompatíveis ou mutuamente exclusíveis, a aplicação dos princípios não implica violação de outros. É, portanto, autorizado inferir que estão ausentes as antinomias na medida em que não há colisão, mas sim um juízo de peso e importância à luz das situações fáticas. Oportuna é a lição de ROBERT ALEXY:

            "(...) os princípios ordenam que algo deve ser realizado em maior ou menor medida possível, levando em conta as possibilidades jurídicas e fáticas. Não contêm eles mandatos definitivos, senão prima facie. Do fato de que um princípio é válido para um caso não quer dizer que o princípio valha para este caso como resultado definitivo." [75]

            Assim, fica evidenciada a elasticidade da aplicação principiológica. É um jogo de balanceamento, ponderação e relativização ante as circunstâncias do caso concreto. Desta feita, não se fala em hierarquização fixa, abstrata e apriorística. Os operadores do direito devem agir atendendo à razoabilidade, que significa mais prudência e bom senso. "Os princípios jurídicos são mandatos de otimização e não ordenações de vigência – podem e devem ser aplicados na medida do possível e com diferentes graus de efetivação" [76]

            A presença dos princípios constitucionais provoca imediata orientação de todo o direito na direção fixada pelos mesmos, não de forma simplesmente informadora, característica de disposições subsidiárias, mas como diretivas contidas na Carta Magna, de maneira vinculante [77]. CARMEM LÚCIA ROCHA, mais uma vez, ensina que:

            "a verdade que fica é a de que os princípios são um indispensável elemento de fecundação da ordem jurídica positiva. Contêm em estado de virtualidade grande número de soluções que a prática exige." [78]

            Finalmente, a relativa imprecisão dos princípios viabiliza a celebração de pactos de convivência. Realmente, se assim não fosse "as disputas ideológicas seriam intermináveis e os conflitos delas resultantes não permitiriam a promulgação oficial de leis fundamentais." [79]

            2.4 A TEORIA DOS PRINCÍPIOS

            "Uma concepção do direito que negue a separação absoluta entre o direito e a moral, e que não acuda a princípios de justiça material preestabelecidos é uma doutrina perigosa." [80] É contra essa doutrina perigosa que se insurge RONALD DWORKIN ao elaborar a Teoria da Resposta Correta, cujo proposta é acoplar ao argumento jurídico a argumentação moral e, assim, resgatar uma jurisdição legal, justa e moral. Para tanto, utiliza a via da interpretação principiológica, sem que isso implique conferir poder político ao juiz ou depreciar a segurança jurídica. Pertinente é o trecho de ALBERT CALSAMIGLIA:

            "Parte-se do pressuposto de que a argumentação moral se caracteriza pela construção de um conjunto consistente de princípios que justificam e dão sentido a nossas intuições. As intuições de nossos juízos são os dados básicos, mas estes dados e estes juízos devem acomodar-se ao conjunto de princípios. Esta tarefa reconstrutivo-racional do pensamento moral não é exclusiva deste, já que Dworkin a estende ao pensamento jurídico. Por isto se pode afirmar (...) que o propósito de Dworkin é reinstaurar a relação íntima entre a argumentação moral e a jurídica." [81]

            INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO complementa este raciocínio ao condenar a discricionariedade e o voluntarismo, alertando que:

            "Diante desse panorama, em que se evidencia a necessidade de sinalizar os caminhos da interpretação constitucional – para não sucumbirmos às tentações do voluntarismo -, cumpre renovar a advertência de que os resultados de toda atividade hermenêutica só se tornarão legítimos e socialmente vinculantes se as manifestações da consciência jurídica individual dos aplicadores da constituição puderem ser identificadas como formas de expressão da consciência jurídica geral." [82]

            A proposta de DWORKIN, quando um juiz se deparar com um caso difícil – assim entendido como aquele em que há incerteza devido à existência de várias normas determinando sentenças distintas ou devido à inexistência de norma aplicável ao caso -, é de não lançar mão de suas percepções ou preferências, mas sim de construir, com base nos princípios, um raciocínio dialético que pondere os valores e os interesses conflitantes na demanda. [83] Assim procedendo, objetiva-se eliminar o poder político de escolha do juiz e resgatar o foco da decisão justa e razoável.

            Servindo-se dos princípios, de sua dimensão de peso e importância, de sua generalidade e do caráter axiológico, o juiz encontrará a resposta correta dentro do próprio ordenamento jurídico. Quando existe conflito, não se pode deixar o tema à mercê do poder discricionário, o juiz deve dar vitória ao princípio que tem maior peso, e sua tarefa será justificar o princípio eleito. Sugere-se uma negação do poder político do juiz sem reduzir sua atividade a uma mera operação mecânica. O juiz não subordina a lei, ele se move dentro do sistema (constitucional) de regras e princípios, posicionando-se apenas como um garantidor de direitos.

            Todo este raciocínio se construiu a partir da diferença lógica que – como visto – existe entre regras e princípios. As regras, dado o seu caráter categórico e estanque não se compatibilizam, diferente do que ocorre com os princípios, com um processo de jurisdição flexível, dialético e em perene construção.

            A sociedade vai se tornando gradativamente mais complexa, e bem assim o direito. Casos difíceis são extraordinários em direitos minimamente desenvolvidos. Por tudo isso, é compulsório concluir que o Direito – mormente na esfera constitucional – deve dispor de modelos e métodos que possibilitem um caminhar conjunto da interpretação das leis e da jurisdição ideal com a sociedade.

            Assim, emerge a importância da Teoria dos Princípios, em função de suas características basilares para o atendimento das necessidades da interpretação moldada à Constituição.

            Sendo o marco axiológico inspirador e filtrante de todo o texto constitucional, demonstrou-se que os princípios carregam toda uma bagagem ética, uma base de valores que, por serem fundamentais, devem permear o exercício do Direito em todos os seus campos e fases.

            Dessa maneira, os princípios atuam como funil garantidor da moralidade e da justiça quando da entrega da tutela jurisdicional. A aplicação de toda a Constituição necessariamente deve ser referendada pelo crivo axiológico dos princípios, que estariam auxiliando a atividade interpretativa como um sensor da moralidade, equidade e justiça. Isso remete à lição de FLÁVIA VIVEIROS:

            "o momento interpretativo é aquele em que mais avulta a importância dos valores. Empregar um princípio para argumentar durante o processo interpretativo modifica, radicalmente, as possibilidades de solução para o problema a enfrentar, dotando-as de um marcado traço estimativo." [84]

            Ao reconhecer a normatividade dos princípios, abandona-se a concepção de que são normas meramente programáticas e subsidiárias, entendimento que enfraquece a aplicabilidade prática dos princípios e sua força de vinculação. Os princípios, como espécies de normas - parte jurídica e dogmática do ordenamento jurídico - assumem a tarefa de regular casos.

            Este potencial normativo confere autoridade no processo interpretativo, dotando os princípios de vinculatividade e eficácia positiva para auxiliar a interpretação constitucional. Por conseguinte, os dispositivos da Carta Magna devem ser concretizados pelo intérprete em consonância com a fonte principiológica, sendo que nenhum aspecto pode fugir aos princípios, neles se baseando por todos os ângulos.

            Dessa forma, a Teoria dos Princípios tem se revelado presente no trabalho de construção de significado das normas constitucionais, o que reflete na longevidade da Carta Magna.

            Em vista desse quadro, a interpretação princiológica vem autorizar o intérprete a desprender-se, do apego cego à literalidade da lei – que, por vezes, pode culminar em injustiças - para operar com a dimensão de peso e importância dos princípios.

            Esta dimensão confere aplicação comedida e balanceada dos valores veiculados pelos princípios. Confere a plasticidade necessária, não proporcionada pelo caráter estático e maquinal das normas. Isto porque os princípios admitem convivência e conciliação com outros eventualmente concorrentes. Por não serem, em absoluto, incompatíveis, a aplicação principiológica não implica violação de outros princípios. Prova disso é que, enquanto regras podem ser antinômicas, os princípios mostram-se conflituais Esta característica revela-se essencial para a interpretação constitucional na medida em que esta vem se deparando com casos mais e mais difíceis, com valores antagônicos, não raro, igualmente relevantes, que devem ser sopesados e não formatados dentro da lógica subsuntiva.

            Assim, operando a dimensão de peso e importância dos princípios, o intérprete encontra respaldo para respeitar a complexidade de valores imbuída nos casos da atualidade, de modo que o direito se flexibilize apegando-se antes à busca do justo que a letra da lei. Pela dimensão de peso e importância, o hermeneuta medita, confrontando os interesses em choque na demanda. Avalia-se, com base na importância de cada um dos valores presentes na lide, qual deve preponderar, construindo e direcionando a jurisdição no rumo da solução justa.

            Portanto, canalizar e ponderar para examinar dialeticamente a força relativa de cada princípio na oportunidade da interpretação constitucional faz-se imprescindível na tarefa de zelar pela justiça.

            Vale ressaltar que a objetividade inerente aos princípios remete claramente ao modelo da resposta correta de Ronald Dworkin, na medida em que tal modelo combate veementemente a discricionariedade judicial. Com efeito, não é autorizado nem aceitável que uma demanda seja equacionada com base no subjetivismo e discricionariedade do juiz, este deve esmerar-se em encontrar a solução dentro do direito, argumentando dialeticamente e servindo-se da Teoria dos Princípios em uma incansável tarefa de interpretação construtiva.

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Sobre o autor
Alexandre Reis de Carvalho

capitão-aviador da Força Aérea Brasileira, bacharel em Direito pela USP, especialista em Ordem Jurídica e Ministério Público pela FESMPDFT

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Alexandre Reis. A tutela jurídica da hierarquia e da disciplina militar:: aspectos relevantes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 806, 17 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7301. Acesso em: 7 mai. 2024.

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