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Tutela específica das obrigações de fazer e não fazer

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01/04/2002 às 00:00
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5. Evolução da tutela às obrigações de fazer e não fazer

Nos tempos modernos, nunca esteve o credor de obrigação de fazer e não fazer totalmente afastado da execução específica. Nosso Código de Processo Civil, mesmo antes da Lei nº 8.952/94, remontando a antiga sistemática da praxe luso-brasileira, disciplinava, no âmbito do processo executivo, um procedimento próprio para assegurar ao credor de tal tipo de obrigação, a realização compulsória do fato devido, desde que possível de implementação por terceiro, sem necessidade, pois, de coagir pessoalmente o devedor. Distinguiam-se, assim, as obrigações fungíveis e as infungíveis. Para aquelas havia como promover a execução forçada específica ou in natura. Para as últimas, diante da obstinação do inadimplente, só restava ao credor contentar-se com as perdas e danos a serem exigidas por meio de execução indireta.

É bom recordar que essa dicotomia executiva prevista para as obrigações de fazer e de não fazer não era estranha ao Código Napoleão, pois além da regra geral de que tais obrigações, quando inadimplidas, se resolviam em perdas e danos (art. 1.142), encontravam-se nele também previsões de casos de execução in natura das que fossem exeqüíveis sem a coação física sobre a pessoa ou a vontade do devedor.

Com efeito, o art. 1.144 do Código Francês dispunha, a propósito da matéria pertinente à obrigação de fazer, que o credor, no caso de inexecução, poderia ser autorizado a, ele mesmo, fazê-la executar a expensas do devedor. E, no caso de obrigação de não fazer, o art. 1.143 assegurava ao credor o direito de demandar a destruição de tudo aquilo que fosse realizado pelo devedor em desrespeito à convenção; e permitia ao credor obter autorização para, ele mesmo, proceder à destruição, a expensas do devedor.

O Código Civil brasileiro contém iguais previsões nos artigos 881 e 883, ou seja, em se tratando de obrigação positiva, "se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à custa do devedor, havendo recusa ou mora"; e, em se tratando de obrigação negativa, "praticado pelo devedor o ato, a cuja abstenção se obrigara, o credor pode exigir dele que o desfaça, sob pena de se desfazer à sua custa, ressarcindo o culpado perdas e danos".

O que havia, antes da reforma do art. 461 era a dificuldade de obter a execução, in natura, que somente poderia dar-se, em juízo, após o trânsito em julgado da sentença condenatória e dentro de um complicado procedimento executivo (arts. 634, 637 e 642-643). No mais das vezes, o que prevalecia, pela inoperância e complexidade do procedimento legal, era o recurso à execução indireta, contentando-se o credor em reclamar problemáticas e insatisfatórias perdas e danos.

As inovações do art. 461 do CPC não vieram modificar as regras materiais das obrigações de fazer e não fazer, pois estas já consagravam o cabimento da execução específica, desde que se tratasse de obrigação fungível (isto é, realizável "por terceiro", no lugar do devedor). O grande marco da reforma está em facilitar e tornar mais efetivo o uso da execução específica de tais obrigações.

Até mesmo as obrigações infungíveis, antes do Código de 1973 e ainda no regime do Código de 1939, já contavam com a execução indireta, ou seja, com um processo que usava a cominação de multas para coagir ao credor a realizar a prestação devida in natura. Era a antiga ação cominatória, em que a multa poderia ser cominada na própria citação do réu (CPC, de 1934, arts. 302, XII, e 303, caput ). Não é novidade, destarte, a preocupação do ordenamento jurídico pátrio com a execução específica das obrigações de fazer e não fazer.


6. Cotejo entre o sistema do art. 273 e do art. 461

Aparentemente, o CPC teria adotado dois regimes distintos de antecipação de tutela nos arts. 273 e 461, De fato, no art. 273 exige-se que a parte apresente prova inequívoca conducente à verossimilança do alegado, comprove perigo de dano de difícil reparação e que os efeitos da providência a ser antecipada não sejam irreversíveis.

Já no art. 461 a lei reclama, como condição da tutela antecipada, a relevância do fundamento da demanda e o justificado receio de ineficácia do provimento final, caso não se adiante a prestação jurisdicional provisoriamente. Ora, falar-se em relevância do fundamento não é outra coisa que exigir-se a verossimilhança de tudo o que arrola o autor para pretender a tutela jurisdicional. Não há, portanto, diferença profunda, no aspecto do fumus boni iuris, entre o art. 273 e o art. 461.

Quanto à situação de perigo é exatamente a mesma nas duas hipóteses: o risco de dano grave e de difícil reparação, de que fala o art. 273 é justamente o fundado temor de que o provimento final se torne ineficaz, caso a medida do art. 461 não seja antecipada.

Correta, portanto, a observação de KAZUO WATANABE no sentido de que os requisitos legais exigidos pelo art. 461 "estão mais para a tutela antecipatória do art. 273 do que para o processo cautelar. É que estamos diante de tutela antecipatória e não de tutela cautelar [9].

A irreversibilidade é de exigir-se, como regra, porque a antecipação de tutela é forma de execução provisória e toda execução da espécie tem de ser praticada de forma a prever a eventualidade do retorno ao status quo ante.

Mas, embora a lei arrole a irreversibilidade como obstáculo à antecipação de tutela, a regra, tanto para o art. 273 como para o art. 461, deve ser interpretada como linha de princípio e não como vedação irremovível. Em regra, não quer a lei que os efeitos da medida antecipatória sejam irreversíveis. Mas, se o risco de lesão corrido pelo direito do autor, também apontar para dano irreparável, se consumado, o juiz terá de fazer um balanço entre as duas situações de perigo para decidir qual delas tutelar. Não poderá simplesmente cruzar os braços em face da probabilidade de a prestação jurisdicional, pela falta de prevenção, tornar-se uma completa inutilidade para a parte vencedora da causa.


7. O modelo interdital da antecipação de tutela

Salvo alguns procedimentos especiais, como o possessório, o do despejo, o da ação de depósito etc., em que numa só ação e numa única relação processual se acerta o direito subjetivo da parte e se procede à sua realização forçada, o sistema comum do CPC brasileiro, fiel às heranças européias, separava totalmente a prestação jurisdicional cognitiva da prestação executiva. A cada uma delas correspondia uma ação a ser exercitada em relações processuais diferentes. Primeiro, se condenava o devedor, por sentença, que encerrava o processo de conhecimento. O provimento que fechava o processo de conhecimento era, por sua vez, o que servia ao credor para abrir o processo de execução. Assim era também nas raízes romanas do processo civil, onde se forçava o credor a usar duas ações sucessivas para alcançar a execução forçada de seu direito: a actio e a actio iudicati.

Mas mesmo em Roma já se admitiam os interditos, em que o Pretor, pela natureza e relevância do direito em litígio, podia decretar providências satisfativas imediatas, restaurando a situação ofendida pelo ato censurado do réu. Foi desses precedentes romanos que herdamos as ações possessórias de força nova.

Quando o legislador brasileiro se voltou para a tutela antecipada, nos moldes autorizados pelo atual texto do art. 273, nada mais fez do que restaurar o antigo poder interdital do pretor romano, aprimorando-o para colocar em consonância com a funcionalidade da moderna efetividade esperada da tutela jurisdicional.

As providências de antecipação de tutela compreendem medidas executivas lato sensu, realizáveis, portanto, no mesmo processo de conhecimento já instaurado [10]. Não se sujeitam a processo de execução separado.

Na dicção do art. 273, o CPC autoriza a tutela antecipada se há prova inequívoca do que alega o autor e seu direito pode ser havido com verossímil diante de tal prova, sendo certo que se não for antecipada a satisfação do direito subjetivo haverá o perigo de sua inutilização e, conseqüentemente, da frustração do próprio provimento judicial definitivo. Quando esse afinal fosse pronunciado já encontraria uma situação de prejuízo irremediável para o respectivo titular. Já não mais existiria condição de exercitar o direito cuja proteção fora objeto da ação e da sentença.

Essa antecipação de tutela, portanto, é de se fazer como imperativo da eficácia da própria função jurisdicional e se justifica, tal como a tutela cautelar, pela necessidade de afastar o periculum in mora (risco de dano irreparável ou de difícil reparação) a que se acha exposto o direito verossímil e inequivocamente comprovado (fumus boni iuris) (art. 273, I).

Outra hipótese em que se torna viável a antecipação de tutela de mérito, é a do perigo de sujeitar-se longamente o titular do direito à privação de seu exercício por resistência do demandado que abusa do direito de defesa ou age com propósito manifestamente protelatório (art. 273, II). Aqui, não há risco de dano de difícil reparação, no sentido de inviabilizar-se o exercício do direito subjetivo quando se der o provimento definitivo. O que ocorre é a evidência da conduta ilícita do réu, e a submissão do autor a uma situação flagrantemente injusta. Diante disso, não deve a justiça resignar-se a aguardar que o processo corra sua longa marcha servindo apenas a prolongar a duração da injustiça manifesta. O exercício do direito de defesa se torna abusivo e ao juiz compete coibir todos os expedientes temerários e maliciosos que possam acobertar as diversas manifestações do abuso de direito no curso do processo. Enquanto, no inciso I do art. 273 se realiza a tutela contra o perigo de dano ao bem jurídico litigioso, no inciso II pratica-se a tutela da evidência, afastando-se a intolerável injustiça imposta ao autor pela malícia do réu, que se aproveita da demora natural do processo para abusivamente continuar prejudicando o direito subjetivo do primeiro.

Em todos os casos, seja de perigo de dano de difícil reparação, seja de evidência do direito abusivamente resistido, a antecipação de tutela exige do juiz a cautela de só implementá-la com garantia de reversibilidade. É que a Constituição garante o contraditório a todos os litigantes, de modo que ninguém pode ser privado de bens ou direitos senão depois de cumprido o devido processo legal (CF, art. 5º, LIV e LV). Quer isto dizer que se a parte, por antecipação de tutela vem a ser privada de determinada situação jurídica, isto se justifica por situação anômala em que risco grave de frustração afeta a efetividade do processo. Não pode, todavia, o afastamento do risco redundar na privação do réu de todo o direito de defesa e muito menos, se deve tolerar que, com a antecipação se elimine o contraditório.

Daí a exigência de que a medida antecipada seja sempre reversível (art. 273, 2º). Pode-se permitir ao autor a satisfação imediata do direito litigioso, mas sempre de modo a resguardar ao réu a possibilidade de restaurar sua situação jurídica, caso após o debate exauriente da causa, venha a ser ele, e não o autor, o vitorioso no pleito judicial.

Há, dessa maneira, no esquema do art. 273 e seus § §, a observância do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade. Quebra-se momentaneamente o contraditório, mas sem eliminá-lo de todo. Cumprida a medida antecipatória, restabelece-se o contraditório e a ampla defesa. E afinal qualquer que seja o vitorioso, o juiz terá condição de proporcionar-lhe o adequado bem da vida, ou seja, aquele a que efetivamente corresponde sua comprovada situação jurídica em face do litígio acertado em juízo.

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Duas garantias estarão confrontadas: a de efetividade da tutela jurisdicional, devida ao autor e acobertada pela medida antecipatória, e a de intangibilidade da situação do réu, antes do julgamento definitivo, resguardada pela vedação ao autor de obter provimento provisório de efeito irreversível.

Mesmo quando o risco de irreversibilidade estiver presente, mas afetar o perigo corrido por ambas as partes, caberá ao juiz determinar qual o perigo mais relevante, segundo os interesses contrapostos e, à luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade dispensar a tutela àquele que se revelar mais carente dela. Se a posição que, diante da prova inequívoca disponível, se apresenta como a que deva sair vitoriosa no provimento final, é a do autor, e se esta solução só protegerá seu direito se a medida de efeitos irreversíveis lhe for de imediato proporcionada e, parece claro que o princípio da razoabilidade se aplica para determinar seja deferida a antecipação, ainda que isto implique sujeitar o réu ao risco da irreversibilidade.

Em suma: como princípio, não se antecipam provimentos de efeitos irreversíveis; mas se o único meio de assegurar a efetividade da tutela de que o autor se apresenta predominantemente merecedor (em relação ao réu) exige medida faticamente irreversível, não poderá esta ser-lhe vedada, sob pena de subtrair-lhe a garantia fundamental de pleno acesso à justiça.

São preciosas, a respeito as lições de MARINONI e CARREIRA ALVIM, apoiadas na autoridade de FAZZALLARI e TOMMASEO:

"Admitir que o juiz não pode antecipar a tutela, quando a antecipação é imprescindível para evitar um prejuízo irreversível ao direito do autor, é o mesmo que afirmar que o legislador obrigou o juiz a correr o risco de provocar um dano irreversível ao direito que justamente lhe parece mais provável. Tutela sumária funda-se no princípio da probabilidade. Não só a lógica, mas também o direito à adequada tutela jurisdicional exigem a possibilidade de sacrifício, ainda que de forma irreversível, de um direito que pareça improvável em benefício de outro que pareça provável. Caso contrário, o direito que tem a maior probabilidade de ser definitivamente reconhecido poderá ser irreversivelmente lesado. Como corretamente conclui TOMMASEO, ‘sacrificare l’improbabile al probabile, in questo consiste l’etica della giurisdizione d’urgenza’" (‘sacrificar o improvável ao provável, nisto consiste a ética da jurisdição de urgência’). [11]


8. Modalidades de execução

O processo de execução é programado para proporcionar ao credor a satisfação efetiva de seu direito subjetivo, mediante resultados práticos que correspondam à prestação descumprida pelo devedor, ou que a compensem por equivalentes econômicos. Os atos de satisfação específica, porém, nem sempre são praticáveis pelos agentes do judiciário. Por isso, às vezes, os atos da execução forçada se limitam a realizar a prestação. Nesse sentido, pode-se falar em:

a)execução própria, que visa resultados materiais satisfativos diretamente por obra dos agentes executivos estatais; e

b)execução imprópria, cujos atos não compreendem a realização direta da satisfação do direito subjetivo do credor, mas apenas exercem coação para levar o devedor a adimplir.

Na execução própria, outrossim, pode acontecer: a) a execução específica, mediante entrega do bem devido, in natura; e b) a execução sub-rogatória, quando se proporciona algo diverso ao credor, mas que equivalha, em sentido prático, à prestação devida, ou que, pelo menos, indenize a falta da prestação específica.

A reforma do art. 461 do CPC se fez com o evidente e confessado propósito de imprimir "novo ritmo e nova eficiência ao processo de execução", no caso das problemáticas obrigações de fazer e não fazer [12].

Nesse campo, o procedimento inovado da execução se caracteriza pela preocupação de proporcionar, sempre que possível, a execução específica, e, para tanto, são previstos:

a)medidas sub-rogatórias, as mais variadas, cuja prática imediata, pode até dispensar a actio iudicati, proporcionando, ainda dentro do processo de conhecimento, a imediata satisfação do direito do credor;

b)a "astreinte" - multa diária aplicável, de ordinário, após a sentença, ou antecipadamente, nos casos de relevância da pretensão e do risco de frustração da sentença, caso se tenha de aguardar o trânsito em julgado da condenação. Aqui, o procedimento executivo para exigir a multa, será o das execuções por quantia certa;

c)quando as medidas sub-rogatórias não puderem substituir totalmente a actio iudicati, o juiz poderá servir-se delas para simplificar ou amoldar o complexo procedimento normal das execuções de fazer às peculiaridades do caso concreto;

d)além da multa, vários meios de apoio podem ser empregados no reforço da tutela específica, utilizáveis tanto na antecipação de tutela como na execução normal após a coisa julgada; meios estes aplicáveis de forma mandamental, de modo a dispensar, a seu respeito, o rito da actio iudicati.

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Sobre o autor
Humberto Theodoro Júnior

professor titular de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, doutor em Direito, advogado

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Tutela específica das obrigações de fazer e não fazer. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 56, 1 abr. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2904. Acesso em: 29 abr. 2024.

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