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A defesa técnica como elemento da liberdade substantiva.

Aplicação da doutrina de Amartya Sen ao processo penal

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25/08/2009 às 00:00
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3. ‘FUNCIONAMENTOS’ E ‘CAPACIDADES’ NO CONTEXTO DA DEFESA TÉCNICA

Com relação ao conceito de liberdade substantiva, Sen afirma que são aquelas liberdades exigidas para o indivíduo ter uma "vida que tenha razão de valorizar" (2000, p. 94). Leva em conta as oportunidades reais de os indivíduos atingirem seus objetivos, que exige, além dos bens necessários para sua sobrevivência, uma série de "características pessoais relevantes que governam a conversão de bens primários na capacidade de a pessoa promover seus objetivos". (SEN, 2000, p. 95)

Um exemplo aplicado a este estudo. Um indivíduo é processado, em sede de ação penal, e não tem a mínima noção de que um bom advogado fará a diferença no resultado final da demanda. Outro, porém, ao ouvir rumores de que há atividade persecutória estatal sobre sua pessoa providencia, de imediato, um advogado para acompanhar a demanda. Isso fará muita diferença entre um e outro acusado.

3.1. ‘Funcionamentos’, ‘Capacidades’ e Bem-Estar

Pois bem. Retomando. Na doutrina de Sen, as pessoas são dotadas de funcionamentos [06], que contêm estados (beings) e ações (doings) que influenciam o modo em que vivem. "Os funcionamentos relevantes podem variar desde coisas elementares como estar nutrido adequadamente, estar em boa saúde, livre de doenças que podem ser evitadas e da morte prematura, etc., até realizações mais complexas, tais como ser feliz, ter respeito próprio, tomar parte na vida da comunidade, e assim por diante." (SEN, 2001, p. 79)

A combinação dos funcionamentos – não necessariamente todos ao mesmo tempo – é chamada de capacidade (capability). Ademais, não se trata de qualquer combinação de funcionamentos. São combinações alternativas de funcionamentos cuja realização seja possível para a pessoa. Para Sen (2000, p. 95), a capacidade é a "liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos". Um adendo para expormos um exemplo no intuito de apresentar o conceito de "conjunto capacitário" [07]. Dois sujeitos são processados penalmente. Um deles – com abastada condição financeira – decide não constituir advogado. O juiz lhe nomeia um. O outro não tem sequer onde cair morto, caindo nas malhas da assistência judiciária gratuita. O primeiro é um rico e poderoso criminoso do colarinho branco que teve oportunidade de escolher entre contratar um advogado de renome, competência e "melhores resultados". O segundo, autor de furto famélico, teve que aceitar a assistência judiciária gratuita, já que não tinha oportunidade de escolher.

Em tese, teria a liberdade de escolher, mas efetivamente falando, não teria condições econômicas de pagar um advogado como o do primeiro sujeito em questão. Há de se levar em consideração, portanto, além do conceito de pobreza absoluta, o de pobreza relativa, no qual as pessoas se privam de um bem-estar maior por falta de "funcionamentos" e "capacidades", que seriam, talvez, os instrumentos de mensuração dessa pobreza relativa:

Creio que as contribuições mais significativas de Sen ao debate sobre desigualdade e pobreza são, em primeiro lugar, a dimensão de avaliação dos estados sociais em termos dos seres e fazeres, e do espaço aberto aos indivíduos para escolher entre seres e fazeres alternativos, isto é, em termos dos funcionamentos e capacidades dos indivíduos para levarem adiante seus planos de vida. Esta dimensão avaliatória representaria o grau de liberdade efetivamente gozado pelos indivíduos em uma sociedade, segundo a ética do desenvolvimento de Sen. Em segundo lugar, penso que Sen elabora, para além de uma noção de pobreza absoluta — que corresponderia ao alcance de uma condição de vida abaixo do mínimo fisicamente adequado, conceito mais biológico do que social —, uma noção de pobreza relativa. Esta seria afetada pelo nível de desigualdade socioeconômica prevalecente em uma sociedade, e as noções de funcionamentos e capacidades estariam aptas a aferi-lo. (KERTZNETZKY, 2000, p. 117)

3.2. ‘Conjunto Capacitário’ e Oportunidades Reais

Assim, "conjunto capacitário" consiste nos "vetores de funcionamentos alternativos dentre os quais a pessoa pode escolher". (SEN, 2000, 96) O conjunto capacitário seria a liberdade que uma pessoa teria para escolher as combinações alternativas dentre funcionamentos. Tomando como base o exemplo anterior, o conjunto capacitário do primeiro sujeito é maior que o do segundo sujeito. No primeiro, há possibilidade de escolher as combinações de funcionamentos, na segunda, não. Esta empreitada tem vital importância, pois as combinações de funcionamentos, segundo Sen, refletem as suas realizações efetivas (o que a pessoa realmente faz), enquanto o conjunto capacitário aponta as alternativas que se tem (oportunidades reais para obter bem-estar). O bem-estar de uma pessoa, incluindo a preservação desse bem-estar – neste contexto, por meio da defesa técnica -, depende dos funcionamentos realizados. Com relação às capacidades, na realização do bem-estar, Sen explica:

A relevância da capacidade de uma pessoa pra seu bem-estar surge de duas considerações distintas porém inter-relacionadas. Primeiro, se os funcionamentos realizados constituem o bem-estar de uma pessoa, então a capacidade para realizar funcionamentos (quer dizer, todas as combinações alternativas de funcionamentos que uma pessoa pode escolher ter) constituirá a liberdade da pessoa – as oportunidades reais – para ter bem-estar. Essa liberdade de bem-estar (well-being freedom) pode ter relevância direta na análise ética e política. (...) A segunda conexão entre bem-estar e capacidade consiste diretamente em fazer o próprio bem-estar realizado depender da capacidade para realizar funcionamentos. Escolher pode em si ter uma parte valiosa do viver, e uma vida de escolha genuína com opções representativas pode ser concebida – por essa razão – como mais rica. Nesta concepção, pelo menos alguns tipos de capacidade contribuem diretamente para o bem-estar, tornando a vida da pessoa mais rica de oportunidades de escolha refletida. Mas mesmo quando a liberdade na forma de capacidade é valorada apenas instrumentalmente (e o nível de bem-estar não é visto como dependente da extensão da liberdade de escola como tal), a capacidade para realizar funcionamentos deve ser, ainda assim, uma parte importante da avaliação social. O conjunto capacitário fornece informação sobre os vários vetores de funcionamentos que estão ao alcance de uma pessoa, e esta informação é importante independentemente de como exatamente o bem-estar é caracterizado. (SEN, 2001, p. 80-81)


4. A DEFESA TÉCNICA COMO PROMOÇÃO DE CAPACIDADES

Pode-se dizer que a legislação processual penal, no que tange à defesa técnica, atende formalmente aos critérios de funcionamentos e capacidades propostos por Sen. Segundo o ordenamento jurídico brasileiro, a defesa técnica é necessária, indeclinável, plena e efetiva (FERNANDES, 2005, p. 284). Em tese, suprimiria a falta de funcionamentos do acusado, já que, em vias normais, poderia constituir advogado da sua confiança. Ou o juiz lhe nomearia um, nas hipóteses previstas em Lei. De acordo com o regime de nulidades previsto no Código de Processo Penal, "caso o processo venha a se desenvolver sem defensor, porque, apesar de o réu não ter advogado contratado, também não lhe foi nomeado pelo juiz, o processo estará irremediavelmente nulo (art. 564, III, c)." (FERNANDES, 2005, p. 285-286) Adiante, no próximo tópico, discorrer-se-á sobre a nulidade no cenário da defesa técnica efetiva. Retomemos, por ora, o assunto. Por indeclinável, entende-se que o acusado não pode renunciar a defesa técnica. Por que haja evidências e provas de que o acusado tenha cometido um crime, não se pode violar o devido processo legal, muito menos os seus direitos e as suas garantias fundamentais. "O direito de defesa é ao mesmo tempo garantia da própria justiça, havendo interesse público em que todos os acusados sejam defendidos, pois só assim será assegurado efetivo contraditório, sem o qual não se pode atingir uma solução justa." (FERNANDES, 2005, p. 286)

4.1. Defesa Técnica como Direito Indeclinável

Com relação à temática defesa técnica indeclinável, percebe-se que o legislador supriu a falta de "funcionamentos" do acusado ao proferir que todos têm direito à defesa técnica, sob pena de nulidade do processo-crime. O acusado que não esteja no pleno exercício das suas faculdades mentais – seja devido a enfermidade mental, ou por falta de condições educacionais e culturais que o façam compreender a gravidade da situação – não poderá renunciar ao seu defensor técnico. Suprido este "funcionamento", neste aspecto – por meio de um defensor técnico –, o acusado terá uma ampliação do seu conjunto capacitário. Notemos, no entanto, que essa ampliação do "conjunto capacitário" compreende todas as pessoas, independentemente de situação sócio-econômica. Esse "funcionamento" a ser suprido desde sempre – sob pena de nulidade – dispõe, de certa forma, que todos os acusados tenham pelo menos um "funcionamento" em comum a ser mesclado com outros "funcionamentos" em cada uma das diversas "capacidades" individuais.

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Por defesa plena, Fernandes (2005, p. 286-287) entende que o acusado deve ter assegurada a efetiva contraposição – durante todo o processo penal e, mesmo, durante a fase pré-processual do inquérito policial – à acusação, consistindo: "garantia de contraditório, garantia do direito à prova, garantia ao duplo grau de jurisdição". Para que a defesa plena seja considerada um "funcionamento" suprido para equilibrar a relação processual, é preciso que – além da realização formal das garantias – haja efetiva oportunidade para obtenção de bem-estar. O contraditório tem a função de dar ciência ao acusado de que há persecução estatal em curso para que venha a se defender, seja no processo ou no inquérito policial, se neste for possível. O acusado tem direito de produzir prova a seu favor, tal como a possibilidade de recorrer da decisão, se esta não lhe satisfizer.

Muitas vezes, o acusado não sabe que existe o contraditório, a ampla defesa, a possibilidade de produzir prova em seu favor e o duplo grau de jurisdição. Os "vetores de funcionamentos" a serem supridos pelo advogado devem sobrepujar essa deficiência do acusado, tornando seu "conjunto capacitário", pelo menos, nivelado com o de um acusado que não tenha essas deficiências. Caso contrário o advogado não supra essas deficiências, não há como se falar em defesa técnica como elemento de liberdade substantiva do acusado, pois aquele não provê aquilo que deveria balizar o segundo para este seja efetivamente defendido perante a acusação. E quando o advogado resolve que a melhor defesa é manter-se inerte? Eis um caso, no mínimo, pitoresco:

TJRS: ‘O advogado constituído devidamente intimado para todos os atos do processo não está obrigado a trabalhar. No critério do bacharel, eminentemente subjetivo, dentro da prerrogativa constitucional da ampla defesa, a melhor defesa foi a inércia. Não há como confundir deficiência com falta de defesa. (RJTJERGS 151/212).’ Com o devido respeito à decisão, se o Tribunal considerou que houve falta de defesa, e não deficiência de defesa, seria caso de nulidade absoluta. (MIRABETE, 2004, p. 661)

4.2. O Formal e o Ideal na Escolha do Defensor Técnico

Num plano ideal, o acusado deve ter a oportunidade de escolher o seu advogado, o profissional encarregado da sua defesa técnica, já que se estabelece entre ambos uma relação de confiança. Eis alguns exemplos do direito de escolha do advogado:

STF: ‘Revelia. Defensor constituído pelo acusado revel. Garantia de ampla defesa. O direito de o acusado constituir defensor de sua confiança para atuar no processo crime a que responde, ainda que nele seja revel, é um desdobramento da garantia constitucional da ampla defesa – portanto, impostergável (RT 610/433).’ (...) TJSP: ‘Processo-crime. Nulidade. Substituição do defensor constituído pelo réu por dativo por ter ele se tornado revel. Inadmissibilidade. Preliminar acolhida. Inteligência do art. 153, § 15, da CF. (...) A Constituição Federal assegura ao réu a ampla defesa (art. 153, § 15), e nesta está ínsito o direito de ser ele defendido por advogado de sua confiança, pois o direito de livre escolha do defensor constitui desdobramento do direito de defesa, que em nossos dias se proclama sem restrições (RT 568/276). (MIRABETE, 2004, p. 672)

Nem mesmo o juiz poderá substituir o defensor do acusado por um de sua escolha, sendo, portanto, só o próprio acusado quem pode constituir novo defensor. A atuação do juiz é em último caso:

Quando o defensor deixa de realizar os atos de seu mister, como, por exemplo, deixa de apresentar as alegações finais, o juiz deve intimar o acusado a constituir outro defensor. Caso não o faça, aí sim o juiz poderá nomear advogado para defendê-lo. Havendo defensor nomeado, o acusado tem direito a substitui-lo por outro, desde que seja por defensor constituído. (art. 263). (FERNANDES, 2005, p. 289)

Neste ponto, há de se indagar se o acusado tem mesmo oportunidade real de escolher o seu defensor. Num primeiro momento, numa perspectiva jurídico-formal, pode-se dizer que sim. No entanto, nem todos têm "funcionamentos" suficientes – no sentido de renda ou conhecimento disponível – de escolher o advogado da sua escolha ideal. Devido a isso, o "conjunto capacitário" do acusado estaria prejudicado com relação a outro acusado dotado de mais "funcionamentos". A "capacidade" do primeiro seria inferior a do segundo, embora ambos sejam considerados tratados com justiça em conformidade com os meandros técnico-jurídicos vigentes. Daí, o primeiro não teria o elemento da liberdade substantiva da defesa técnica, ainda que juridicamente falando tenha defensor técnico, já que não teria como realizar a combinação de "funcionamentos" como melhor lhe aprouver segundo sua vontade. Na aplicação da doutrina de Sen a este aspecto do Direito Processual Penal, o advogado comprometido e eficiente supriria "vetores de funcionamentos" que o acusado não têm, fornecendo-lhe mais "capacidades", ou seja, liberdade substantiva de realmente se defender, se assim o quiser. No intento de exemplificar o advogado como alguém que vá suprir os "vetores de funcionamento" carecidos pelo acusado, importante notar:

Mas isso só pode ocorrer quando os litigantes estiverem representados em juízo por advogados, isto é, por pessoas que, em virtude da sua condição de estranhos ao conflito e do seu conhecimento de Direito, estejam em condições psicológicas e intelectuais de colaborar para que o processo atinja sua finalidade de eliminar conflitos e controvérsias com a realização da justiça. A serenidade e os conhecimentos técnicos são as razões que legitimam a participação do advogado na defesa das partes. (CINTRA, 2006, P. 316)

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Sobre o autor
Roger Moko Yabiku

Advogado, jornalista e professor universitário. Bacharel em Direito e Jornalismo, graduado pelo Programa Especial de Formação Pedagógica de Professores de Filosofia, MBA em Comércio Exterior, Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal e Mestre em Filosofia (Ética). Professor do CEUNSP e da Faculdade de São Roque - UNIESP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YABIKU, Roger Moko. A defesa técnica como elemento da liberdade substantiva.: Aplicação da doutrina de Amartya Sen ao processo penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2246, 25 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13366. Acesso em: 5 mai. 2024.

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