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A defesa técnica como elemento da liberdade substantiva.

Aplicação da doutrina de Amartya Sen ao processo penal

A defesa técnica como elemento da liberdade substantiva. Aplicação da doutrina de Amartya Sen ao processo penal

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A doutrina do economista Amartya Sen é aplicável ao Direito Processual Penal brasileiro, fulminar a defesa técnica que seja apenas formalmente efetiva, em harmonia com a Súmula 523 do STF.

RESUMO

A defesa técnica não deve ser encarada como mera formalidade, embora tenha sido vista dessa maneira muitas vezes nos tribunais. O objetivo deste trabalho inédito é demonstrar a aplicabilidade da doutrina do economista Amartya Sen (Prêmio Nobel de Economia em 1998) no Direito Processual Penal brasileiro, introduzindo o conceito de defesa técnica realmente efetiva como princípio de hermenêutica da Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal (STF) na declaração de nulidades, de modo a fulminar a defesa técnica que seja apenas formalmente efetiva. Também se deve conceber a defesa técnica como um elemento da liberdade substantiva suprida pelo advogado diante das eventuais deficiências culturais, educacionais e sócio-econômicas do seu cliente. O presente trabalho foi realizado por meio de pesquisa bibliográfica, com a tentativa de realizar conexões entre as teorias de Sen e o processo penal brasileiro. Conclui-se, preliminarmente, que a defesa técnica encarada somente no aspecto de efetividade formal, apesar de aplicar o Direito, comete mais injustiças que justiça propriamente dita. Portanto, a defesa técnica que seja somente formalmente efetiva, mas não realmente efetiva, deve ser considerada nulidade absoluta por haver cerceamento do direito constitucional da ampla defesa do acusado. A defesa técnica deve ser, ao mesmo tempo, formal e realmente efetiva, atendendo aos planos fático do mundo da vida e deontológico da Lei.

Palavras-chave: Direito Processual Penal, Defesa Técnica, Amartya Sen, liberdade substantiva, nulidades.

ABSTRACT

Technical defense should not be seen just a mere formality, as usually has been done in courts of Law. This exclusive paper intends to demonstrate that the doctrine of economist Amartya Sen (Nobel Prize of Economics in 1998) can be applied to the brazilian Criminal Law Process, introducing the concept of technical defense really effective as a interpretative principle to the "Súmula" 523 of the Brazilian Supreme Federal Court (STF) while recognizing nullities of the process, eliminating the mere procedure and formal technical defense. It also intends do demonstrate that technical defense as freedom implemented by a lawyer to help a client with eventual lack of cultural, educational, social and economical background. This paper, a bibliographic research, tries to realize connections between Sen’s theories and brazilian criminal law process. The first conclusion is that if technical defense is only formal, besides enforcing the Law, makes more injustice than justice. Therefore, the merely formally effective technical defense, but not really effective, should be considered absolutely null for obstructing the constitutional principle of the accusatory system. Technical defense should be, at the same time, formally and really effective in attention to the world of real life and the deontological world of the Law.

Keywords: Criminal Law Process, Technical Defense, Amartya Sen, freedom, nullities.


1. INTRODUÇÃO

As atividades persecutória e judiciária do Estado, em nome do contraditório e da ampla defesa, devem contemplar que o acusado tenha condições de se defender daquilo que lhe é imputado. Há necessidade, portanto, de alguém que lhe promova a defesa técnica. Ou seja, um profissional habilitado para lhe guiar diante dos meandros jurídicos que se lhe apresentam. Em momento algum, a defesa técnica deve ser encarada como mera formalidade. A legislação pátria dispõe que a defesa técnica deve ser efetiva, contudo, verifica-se uma visão formalista do fenômeno processual. A abordagem meramente jurídica, por vezes, constitui mais injustiças que aplicação de justiça propriamente dizendo, já que não raro os defensores técnicos desempenham uma performance mais formal que realmente efetiva.

Para fins deste trabalho, não se aborda a fundo a desigualdade social, muito menos a realidade sócio-econômica da população carcerária ou dos possíveis infratores, para se ater mais à questão do advogado (defensor técnico) como agente que supre as deficiências do seu cliente. Obviamente, quem tem melhores condições financeiras contrata um advogado de maior renome, reputação e "resultados", diga-se de passagem. Desta forma, a defesa técnica não pode ser encarada como "tem um advogado que realizou os atos em juízo e tudo bem". A defesa técnica deve realmente ser eficiente, pois, muitas vezes, se está defendendo quem não tem o mínimo de condições educacionais e culturais de entender todo o processo e se defender no mundo jurídico.

Essas pessoas conhecem o mundo do ser (sein), não o do dever ser (sollen). E o que seria normal no "mundo do ser" não é necessariamente o que deve ser feito no "mundo do dever ser". Com certeza Hans Kelsen não faz parte do rol de leituras daqueles mais acostumados com espetáculos pão e circo, como as telenovelas, que contribuem para o processo de imbecilização da sociedade brasileira. Não se tecerá uma crítica mais veemente ao Direito típico do sistema capitalista, apenas tentar-se-á expor a fragilidade do seu discurso e sua prática na temática da defesa técnica.

1.1. As nulidades na Súmula 523 do STF

O Supremo Tribunal Federal (STF), em sua Súmula 523, dispõe: "No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prejuízo para o réu". Então, consagra-se o pas de nullité sans grief. Mas o dano a ser considerado para o réu não pode ser apenas de ordem formal ou puramente jurídico-processual. Há, então, necessidade de se recorrer a princípios de hermenêutica que interpretem a Súmula 523 de modo a sanar eventuais visões meramente formalistas do processo penal.

Portanto, neste texto objetiva-se, em caráter introdutório, demonstrar a aplicabilidade da doutrina do economista indiano Amartya Sen ao Direito Processual Penal, principalmente no que diz respeito ao direito de defesa técnica. Em todas ações penais, a defesa técnica não pode ser realizada só como "mera formalidade" para atendimento da legislação e da Constituição. O direito de defesa técnica pode ser entendido como um elemento da liberdade substantiva [01] necessária ao bem-estar da pessoa, nos termos de Sen, a ser encarado de modo a ser realmente efetivado, propondo limites à atividade persecutória do Estado que, não raro das vezes, tem no formalismo um aliado nato.

Não se defende a impunidade. Porém, defende-se que a ação penal seja desenvolvida com a inclusão do conceito da defesa técnica como elemento da liberdade substantiva, com um defensor que realmente venha a suprir as eventuais deficiências culturais e educacionais do acusado. É necessária uma visão garantista do processo penal, já que a concepção meramente formalista pode acarretar em injustiças de difícil reparo. Daí, se propõe o conceito de defesa técnica realmente efetiva como princípio de hermenêutica da Súmula 523 do STF.

1.2. A Acusação e a Defesa diante da Desigualdade Social

Qual a problemática da defesa técnica? Em regra, a ação penal é pública e tem como titular o Ministério Público. A função persecutória do Estado é realizada por profissionais altamente gabaritados, que ingressam na carreira por meio de rigoroso concurso público, estando, em geral, acima da média dos demais operadores do Direito. Os membros do Ministério Público, se for realizada uma analogia com o Império Romano – dentro do devido respeito, é claro –, constituem a Guarda Pretoriana [02] contemporânea, cuja missão primordial é proteger e resguardar a ordem jurídica. [03] Os acusados, via de regra, têm de enfrentá-los. Eis, portanto, a essencialidade da defesa técnica no desenrolar da ação penal. Contudo, há de se fazer ressalvas também estruturais e não exclusivamente jurídicas. Aqui cabe o nosso primeiro adendo. É notória a falta de conhecimento que assola o País. A quinta edição do Indicador Nacional de Analfabetismo (Inaf), divulgada pelo Instituto Paulo Montenegro e pela Ação Educativa, contém números assoladores:

No Brasil, 75% das pessoas na faixa etária dos 15 aos 64 anos não conseguem ler e escrever plenamente. O número inclui os analfabetos absolutos – sem qualquer habilidade de leitura e escrita – e os 68% considerados analfabetos funcionais. Estes identificam letras e palavras, mas não conseguem utilizá-las no cotidiano e têm dificuldades para compreender e interpretar textos. Apenas um em cada quatro brasileiros consegue ler, escrever e utilizar essas habilidades para continuar aprendendo. (LOIOLA, 2006, grifos nossos)

Independentemente de classificações doutrinárias, a legislação brasileira – Constituição Federal, Códigos e demais leis – é escrita. Está à disposição de qualquer um que seja alfabetizado. E por uma ficção legal, nos ditames do artigo 3º, da Lei de Introdução ao Código Civil, ninguém pode alegar desconhecer a Lei, em caso de seu descumprimento. [04] Será que os 68% dos brasileiros, – não incluindo os totalmente analfabetos – que não conseguem ler e escrever plenamente, têm condições intelectuais de compreender isso? Segundo cálculo com base nas informações do Inaf, apenas 46.887.681 dos 187.550.726 [05] de brasileiros "consegue ler, escrever e utilizar essas habilidades para continuar aprendendo". Quando se instaura uma ação penal, a maior parte dos brasileiros sequer tem noção do que ocorre e como ocorre. A massa deve ter uma idéia de que cometeu algo contra a Lei e que "vai para a cadeia", na linguagem popular, por causa disso. Mesmo que o acusado irrefutavelmente tenha cometido um crime, há de se suprir essa deficiência educacional e cultural para que haja efetiva realização da justiça e não somente reprodução de um aparato burocrático-estatal. Argumenta-se que isto deveria estar a cargo do advogado escolhido para realizar a sua defesa técnica, o que seria a justificativa deste texto. Interessante citar a lição a seguir:

Não se pode imaginar ampla defesa sem defesa técnica, essencial para se garantir a paridade de armas. De um lado, tem-se, em regra, o Ministério Público composto de membros altamente qualificados e que conta, para auxiliá-lo, com a Polícia Judiciária, especializada na investigação criminal. Deve, assim, na outra face da relação processual, estar o acusado amparado também por profissional habilitado, ou seja, por advogado. (FERNANDES, 2005, p. 284)

Para Júlio Fabrini Mirabete, o advogado, o defensor técnico, é alguém que suprirá eventual deficiência em termos de capacitação jurídica do acusado:

O defensor, procurador ou representante da parte, é o advogado, sujeito especial no processo porque sua atuação é obrigatória. Por faltar capacidade para o exercício do jus postulandi (capacidade postulatória) à parte (acusado), é necessário suprir tal deficiência com a outorga de procuração ao advogado que, além de representar o cliente no processo, atua para que a tutela jurisdicional seja prestada com acerto e justiça." (MIRABETE, 2003, p. 336-337)

1.3. Amartya Sen: o ser e o fazer

Metodologicamente, este estudo se compõe exclusivamente de pesquisa bibliográfica, tendo em vista que não há bibliografia que faça relação entre a doutrina de Amartya Sen e o processo penal. Mas afinal, quem é Amartya Sen? Prêmio Nobel de Economia em 1998, atualmente é professor de Economia e Filosofia na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Antes disso, lecionou na Delhi School of Economics, na London School of Economics, University of Oxford e foi reitor da University of Cambridge. Com livros traduzidos em mais de 30 idiomas, a pesquisa de Amartya Sen inclui várias áreas como economia, filosofia, teoria das decisões, teoria da escolha social, economia do bem-estar, teoria da mensuração, desenvolvimento econômico, saúde pública, estudos de gênero, filosofia moral e política e economia da paz e da guerra. Nasceu em Santiniketan, então na Índia, mas hoje parte integrante do território de Bangladesh. Colaborou com o economista paquistanês Mahbud ul Haq na elaboração do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que mensura o desenvolvimento de uma população não só pelos aspectos econômicos, mas também segundo as características sociais, culturais e políticas que podem influenciar na qualidade de vida.

Salienta-se também que 20 páginas seriam insuficientes para discorrer sobre toda essa problemática, porém, tentou-se abordar sucintamente o problema da defesa técnica com base na bibliografia existente. Primeiramente, versar-se-á sobre as noções básicas dos termos liberdade substantiva, "functionings" (funcionamentos) e "capabilities" (capacidades), utilizados por Sen, tal como sua aplicação no contexto pretendido.

No entendimento de Celia Kerstenetzky (2000, 114), o conceito de funcionamentos abrange propósitos humanos que não se detenham no ter, mas que vão além, levando em conta o ser (being) e o fazer (doing). O advogado complementaria o "being" e o "doing" do cliente, já que aquele é alguém que pode fazer algo que o segundo não pode: um profissional com a qualificação de realizar a defesa técnica. "As capacidades, por sua vez, refletiriam as oportunidades de escolha por diferentes conjuntos de funcionamentos que estariam abertas para os indivíduos, representando a extensão da sua liberdade efetiva (...)." (KERSTENETZKY, 2000, 118). Em seguida, discorrer-se-á sobre a defesa na ação penal e a apresentação da defesa técnica realmente efetiva como princípio de hermenêutica. As conclusões deste estudo são preliminares, portanto, sujeitas à revisão, após pesquisas mais rigorosas. Afinal, as verdades humanas são provisórias.


2. DEFESA TÉCNICA COMO ELEMENTO DE LIBERDADE SUBSTANTIVA

Destarte a concepção liberal tradicional de liberdade como a ausência de opressão do Estado sobre o indivíduo e da possibilidade deste fazer aquilo que a Lei não lhe veda, ou seja, de liberdade negativa, verificamos no cotidiano, essa idéia já estar ultrapassada e incompleta. A liberdade também deve ser encarada de modo positivo, quer dizer, de uma forma a que realmente não haja opressão injusta sobre o indivíduo e que ele realmente possa desfrutar da sua liberdade. A afirmação de Norberto Bobbio, nesse sentido, é esclarecedora:

Mas uma coisa é proclamar esse Direito, outra é desfrutá-lo, efetivamente. A linguagem dos direitos tem indubitavelmente função prática, que é emprestar uma força particular às reivindicações dos movimentos que demandam para si e para os outros a satisfação de novos carecimentos materiais e morais; mas ela se torna enganadora se obscurecer ou ocultar a diferença entre o Direito reivindicado e o Direito reconhecido e protegido. Não se poderia explicar a contradição entre a literatura que faz a apologia da era dos direitos e aquela que denuncia a massa dos ‘sem-direitos’. Mas os Direitos de que fala a primeira são somente os proclamados nas instituições internacionais e nos congressos, enquanto os Direitos que fala a segunda são aqueles que a esmagadora maioria da humanidade não possui de fato (ainda que sejam solene e repetidamente proclamados)." (BOBBIO, 1992, p. 10, grifos nossos)

Bobbio defende que o problema não é mais justificar os Direitos do homem, mas sim, de protegê-los. "Trata-se de um problema não filosófico, mas político." (BOBBIO, 1992, p. 24) Na mesma linha, segue a doutrina de Amartya Sen. O economista indiano sugere uma liberdade que possa realmente ser desfrutada, contudo, há necessidade que haja uma série de funcionamentos em cada indivíduo, que combinados em capacidades, possam lhe proporcionar uma liberdade substantiva. O indivíduo, assim, não teria um Direito-liberdade somente no papel, mas teria possibilidades efetivas de concretizá-lo, ou não, segundo sua vontade.

2.1. As Diferentes Privações de Liberdade

Para Sen, a falta de liberdade substantiva relaciona-se diretamente com a pobreza econômica, que priva "as pessoas de saciar a forme, de obter uma nutrição satisfatória ou remédios para doenças tratáveis, a oportunidade de vestir-se ou morar de modo apropriado, de ter acesso à água tratada ou saneamento básico". E ainda:

Em outros casos, a privação de liberdade vincula-se estreitamente à carência de serviços públicos e assistência social, como, por exemplo, a ausência de programas epidemiológicos, de um sistema bem planejado de assistência médica e educação ou de instituições eficazes para a manutenção da paz e da ordem locais. Em outros casos, a violação da liberdade resulta diretamente de uma negação de liberdades políticas e civis por regimes autoritários e de restrições impostas à liberdade de participar da vida social, política e econômica da comunidade. (SEN, 2000, p. 18).

Entende-se que a defesa técnica configura-se como um elemento da liberdade substantiva do acusado, cuja falta ou ineficiência acarreta na negação de liberdades civis, mesmo que ele esteja domiciliado num País democrático. A análise de Sen poderia se estender, portanto, à necessidade de uma defesa técnica eficiente, e não somente formal. O Direito Brasileiro versa que a defesa técnica é necessária, como se pode verificar no artigo 261, do Código de Processo Penal: "Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor." Antônio Scarance Fernandes complementa:

Pode o acusado constituir advogado de sua confiança para a defesa. Mas, se não o fizer, ser-lhe-á obrigatoriamente nomeado defensor pelo juiz (art. 263, primeira parte), que não pode renunciar à defesa (art. 265). Ainda, com o mesmo objetivo de que se estabeleça o equilíbrio entre a acusação e a defesa e se dê a todos os acusados tratamento isonômico, garante-se ao acusado pobre a assistência judiciária gratuita (CF, art. 5º, LXXIV). (FERNANDES, 2005, p. 286)

2.2. A Advocacia e a Defesa Técnica como Serviços Públicos

Para Cintra et al (2006, 239), a advocacia é um ministério privado e indispensável serviço público, tal como preceitua o artigo 133 da Constituição Federal e o artigo 2º, §§ 1º e 2º da Lei 8.906, de 4 de julho de 1994. E conclui que é "exercício privado da função pública e social". A defesa técnica realizada pelos advogados, nessa ótica, é serviço público, embora seja exercida, via de regra por profissionais liberais. Sua ausência alija o acusado do seu direito de defesa, desequilibrando a correta administração da justiça, de tal maneira que a defesa técnica efetiva deve ser encarada como serviço público e elemento da liberdade substantiva, sem a qual o sujeito não tem como efetivar o exercício do seu Direito de liberdade. Nesse sentido:

"A defesa, no processo penal, apresenta-se sob dois aspectos: defesa técnica e autodefesa. A primeira é sem dúvida indisponível, na medida em que, mais do que garantia do acusado, é condição de paridade de armas, imprescindível à concreta atuação do contraditório e, conseqüentemente, à própria imparcialidade do juiz." (GRINOVER ET AL, 2006, p. 87)

No plano deontológico, do dever ser, a questão está fechada e praticamente perfeita. Contudo, no plano ontológico, do ser, existem algumas considerações, principalmente no tocante à eficiência da defesa técnica. A privação da defesa técnica eficiente é algo muito sério, que deve ser levando em conta, principalmente, num contexto de subdesenvolvimento, como o nosso. Não basta estar escrito que o sujeito tem direito a advogado e fornecer-lhe um, se for o caso. O seu defensor há de agir de modo realmente eficiente para surtir efeito, para que verdadeiramente possa suprir a privação do mesmo. Como diz Sen (2000, p. 53): "O processo de desenvolvimento, quando julgado pela ampliação da liberdade humana, precisa incluir a eliminação da privação dessa pessoa."


3. ‘FUNCIONAMENTOS’ E ‘CAPACIDADES’ NO CONTEXTO DA DEFESA TÉCNICA

Com relação ao conceito de liberdade substantiva, Sen afirma que são aquelas liberdades exigidas para o indivíduo ter uma "vida que tenha razão de valorizar" (2000, p. 94). Leva em conta as oportunidades reais de os indivíduos atingirem seus objetivos, que exige, além dos bens necessários para sua sobrevivência, uma série de "características pessoais relevantes que governam a conversão de bens primários na capacidade de a pessoa promover seus objetivos". (SEN, 2000, p. 95)

Um exemplo aplicado a este estudo. Um indivíduo é processado, em sede de ação penal, e não tem a mínima noção de que um bom advogado fará a diferença no resultado final da demanda. Outro, porém, ao ouvir rumores de que há atividade persecutória estatal sobre sua pessoa providencia, de imediato, um advogado para acompanhar a demanda. Isso fará muita diferença entre um e outro acusado.

3.1. ‘Funcionamentos’, ‘Capacidades’ e Bem-Estar

Pois bem. Retomando. Na doutrina de Sen, as pessoas são dotadas de funcionamentos [06], que contêm estados (beings) e ações (doings) que influenciam o modo em que vivem. "Os funcionamentos relevantes podem variar desde coisas elementares como estar nutrido adequadamente, estar em boa saúde, livre de doenças que podem ser evitadas e da morte prematura, etc., até realizações mais complexas, tais como ser feliz, ter respeito próprio, tomar parte na vida da comunidade, e assim por diante." (SEN, 2001, p. 79)

A combinação dos funcionamentos – não necessariamente todos ao mesmo tempo – é chamada de capacidade (capability). Ademais, não se trata de qualquer combinação de funcionamentos. São combinações alternativas de funcionamentos cuja realização seja possível para a pessoa. Para Sen (2000, p. 95), a capacidade é a "liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos". Um adendo para expormos um exemplo no intuito de apresentar o conceito de "conjunto capacitário" [07]. Dois sujeitos são processados penalmente. Um deles – com abastada condição financeira – decide não constituir advogado. O juiz lhe nomeia um. O outro não tem sequer onde cair morto, caindo nas malhas da assistência judiciária gratuita. O primeiro é um rico e poderoso criminoso do colarinho branco que teve oportunidade de escolher entre contratar um advogado de renome, competência e "melhores resultados". O segundo, autor de furto famélico, teve que aceitar a assistência judiciária gratuita, já que não tinha oportunidade de escolher.

Em tese, teria a liberdade de escolher, mas efetivamente falando, não teria condições econômicas de pagar um advogado como o do primeiro sujeito em questão. Há de se levar em consideração, portanto, além do conceito de pobreza absoluta, o de pobreza relativa, no qual as pessoas se privam de um bem-estar maior por falta de "funcionamentos" e "capacidades", que seriam, talvez, os instrumentos de mensuração dessa pobreza relativa:

Creio que as contribuições mais significativas de Sen ao debate sobre desigualdade e pobreza são, em primeiro lugar, a dimensão de avaliação dos estados sociais em termos dos seres e fazeres, e do espaço aberto aos indivíduos para escolher entre seres e fazeres alternativos, isto é, em termos dos funcionamentos e capacidades dos indivíduos para levarem adiante seus planos de vida. Esta dimensão avaliatória representaria o grau de liberdade efetivamente gozado pelos indivíduos em uma sociedade, segundo a ética do desenvolvimento de Sen. Em segundo lugar, penso que Sen elabora, para além de uma noção de pobreza absoluta — que corresponderia ao alcance de uma condição de vida abaixo do mínimo fisicamente adequado, conceito mais biológico do que social —, uma noção de pobreza relativa. Esta seria afetada pelo nível de desigualdade socioeconômica prevalecente em uma sociedade, e as noções de funcionamentos e capacidades estariam aptas a aferi-lo. (KERTZNETZKY, 2000, p. 117)

3.2. ‘Conjunto Capacitário’ e Oportunidades Reais

Assim, "conjunto capacitário" consiste nos "vetores de funcionamentos alternativos dentre os quais a pessoa pode escolher". (SEN, 2000, 96) O conjunto capacitário seria a liberdade que uma pessoa teria para escolher as combinações alternativas dentre funcionamentos. Tomando como base o exemplo anterior, o conjunto capacitário do primeiro sujeito é maior que o do segundo sujeito. No primeiro, há possibilidade de escolher as combinações de funcionamentos, na segunda, não. Esta empreitada tem vital importância, pois as combinações de funcionamentos, segundo Sen, refletem as suas realizações efetivas (o que a pessoa realmente faz), enquanto o conjunto capacitário aponta as alternativas que se tem (oportunidades reais para obter bem-estar). O bem-estar de uma pessoa, incluindo a preservação desse bem-estar – neste contexto, por meio da defesa técnica -, depende dos funcionamentos realizados. Com relação às capacidades, na realização do bem-estar, Sen explica:

A relevância da capacidade de uma pessoa pra seu bem-estar surge de duas considerações distintas porém inter-relacionadas. Primeiro, se os funcionamentos realizados constituem o bem-estar de uma pessoa, então a capacidade para realizar funcionamentos (quer dizer, todas as combinações alternativas de funcionamentos que uma pessoa pode escolher ter) constituirá a liberdade da pessoa – as oportunidades reais – para ter bem-estar. Essa liberdade de bem-estar (well-being freedom) pode ter relevância direta na análise ética e política. (...) A segunda conexão entre bem-estar e capacidade consiste diretamente em fazer o próprio bem-estar realizado depender da capacidade para realizar funcionamentos. Escolher pode em si ter uma parte valiosa do viver, e uma vida de escolha genuína com opções representativas pode ser concebida – por essa razão – como mais rica. Nesta concepção, pelo menos alguns tipos de capacidade contribuem diretamente para o bem-estar, tornando a vida da pessoa mais rica de oportunidades de escolha refletida. Mas mesmo quando a liberdade na forma de capacidade é valorada apenas instrumentalmente (e o nível de bem-estar não é visto como dependente da extensão da liberdade de escola como tal), a capacidade para realizar funcionamentos deve ser, ainda assim, uma parte importante da avaliação social. O conjunto capacitário fornece informação sobre os vários vetores de funcionamentos que estão ao alcance de uma pessoa, e esta informação é importante independentemente de como exatamente o bem-estar é caracterizado. (SEN, 2001, p. 80-81)


4. A DEFESA TÉCNICA COMO PROMOÇÃO DE CAPACIDADES

Pode-se dizer que a legislação processual penal, no que tange à defesa técnica, atende formalmente aos critérios de funcionamentos e capacidades propostos por Sen. Segundo o ordenamento jurídico brasileiro, a defesa técnica é necessária, indeclinável, plena e efetiva (FERNANDES, 2005, p. 284). Em tese, suprimiria a falta de funcionamentos do acusado, já que, em vias normais, poderia constituir advogado da sua confiança. Ou o juiz lhe nomearia um, nas hipóteses previstas em Lei. De acordo com o regime de nulidades previsto no Código de Processo Penal, "caso o processo venha a se desenvolver sem defensor, porque, apesar de o réu não ter advogado contratado, também não lhe foi nomeado pelo juiz, o processo estará irremediavelmente nulo (art. 564, III, c)." (FERNANDES, 2005, p. 285-286) Adiante, no próximo tópico, discorrer-se-á sobre a nulidade no cenário da defesa técnica efetiva. Retomemos, por ora, o assunto. Por indeclinável, entende-se que o acusado não pode renunciar a defesa técnica. Por que haja evidências e provas de que o acusado tenha cometido um crime, não se pode violar o devido processo legal, muito menos os seus direitos e as suas garantias fundamentais. "O direito de defesa é ao mesmo tempo garantia da própria justiça, havendo interesse público em que todos os acusados sejam defendidos, pois só assim será assegurado efetivo contraditório, sem o qual não se pode atingir uma solução justa." (FERNANDES, 2005, p. 286)

4.1. Defesa Técnica como Direito Indeclinável

Com relação à temática defesa técnica indeclinável, percebe-se que o legislador supriu a falta de "funcionamentos" do acusado ao proferir que todos têm direito à defesa técnica, sob pena de nulidade do processo-crime. O acusado que não esteja no pleno exercício das suas faculdades mentais – seja devido a enfermidade mental, ou por falta de condições educacionais e culturais que o façam compreender a gravidade da situação – não poderá renunciar ao seu defensor técnico. Suprido este "funcionamento", neste aspecto – por meio de um defensor técnico –, o acusado terá uma ampliação do seu conjunto capacitário. Notemos, no entanto, que essa ampliação do "conjunto capacitário" compreende todas as pessoas, independentemente de situação sócio-econômica. Esse "funcionamento" a ser suprido desde sempre – sob pena de nulidade – dispõe, de certa forma, que todos os acusados tenham pelo menos um "funcionamento" em comum a ser mesclado com outros "funcionamentos" em cada uma das diversas "capacidades" individuais.

Por defesa plena, Fernandes (2005, p. 286-287) entende que o acusado deve ter assegurada a efetiva contraposição – durante todo o processo penal e, mesmo, durante a fase pré-processual do inquérito policial – à acusação, consistindo: "garantia de contraditório, garantia do direito à prova, garantia ao duplo grau de jurisdição". Para que a defesa plena seja considerada um "funcionamento" suprido para equilibrar a relação processual, é preciso que – além da realização formal das garantias – haja efetiva oportunidade para obtenção de bem-estar. O contraditório tem a função de dar ciência ao acusado de que há persecução estatal em curso para que venha a se defender, seja no processo ou no inquérito policial, se neste for possível. O acusado tem direito de produzir prova a seu favor, tal como a possibilidade de recorrer da decisão, se esta não lhe satisfizer.

Muitas vezes, o acusado não sabe que existe o contraditório, a ampla defesa, a possibilidade de produzir prova em seu favor e o duplo grau de jurisdição. Os "vetores de funcionamentos" a serem supridos pelo advogado devem sobrepujar essa deficiência do acusado, tornando seu "conjunto capacitário", pelo menos, nivelado com o de um acusado que não tenha essas deficiências. Caso contrário o advogado não supra essas deficiências, não há como se falar em defesa técnica como elemento de liberdade substantiva do acusado, pois aquele não provê aquilo que deveria balizar o segundo para este seja efetivamente defendido perante a acusação. E quando o advogado resolve que a melhor defesa é manter-se inerte? Eis um caso, no mínimo, pitoresco:

TJRS: ‘O advogado constituído devidamente intimado para todos os atos do processo não está obrigado a trabalhar. No critério do bacharel, eminentemente subjetivo, dentro da prerrogativa constitucional da ampla defesa, a melhor defesa foi a inércia. Não há como confundir deficiência com falta de defesa. (RJTJERGS 151/212).’ Com o devido respeito à decisão, se o Tribunal considerou que houve falta de defesa, e não deficiência de defesa, seria caso de nulidade absoluta. (MIRABETE, 2004, p. 661)

4.2. O Formal e o Ideal na Escolha do Defensor Técnico

Num plano ideal, o acusado deve ter a oportunidade de escolher o seu advogado, o profissional encarregado da sua defesa técnica, já que se estabelece entre ambos uma relação de confiança. Eis alguns exemplos do direito de escolha do advogado:

STF: ‘Revelia. Defensor constituído pelo acusado revel. Garantia de ampla defesa. O direito de o acusado constituir defensor de sua confiança para atuar no processo crime a que responde, ainda que nele seja revel, é um desdobramento da garantia constitucional da ampla defesa – portanto, impostergável (RT 610/433).’ (...) TJSP: ‘Processo-crime. Nulidade. Substituição do defensor constituído pelo réu por dativo por ter ele se tornado revel. Inadmissibilidade. Preliminar acolhida. Inteligência do art. 153, § 15, da CF. (...) A Constituição Federal assegura ao réu a ampla defesa (art. 153, § 15), e nesta está ínsito o direito de ser ele defendido por advogado de sua confiança, pois o direito de livre escolha do defensor constitui desdobramento do direito de defesa, que em nossos dias se proclama sem restrições (RT 568/276). (MIRABETE, 2004, p. 672)

Nem mesmo o juiz poderá substituir o defensor do acusado por um de sua escolha, sendo, portanto, só o próprio acusado quem pode constituir novo defensor. A atuação do juiz é em último caso:

Quando o defensor deixa de realizar os atos de seu mister, como, por exemplo, deixa de apresentar as alegações finais, o juiz deve intimar o acusado a constituir outro defensor. Caso não o faça, aí sim o juiz poderá nomear advogado para defendê-lo. Havendo defensor nomeado, o acusado tem direito a substitui-lo por outro, desde que seja por defensor constituído. (art. 263). (FERNANDES, 2005, p. 289)

Neste ponto, há de se indagar se o acusado tem mesmo oportunidade real de escolher o seu defensor. Num primeiro momento, numa perspectiva jurídico-formal, pode-se dizer que sim. No entanto, nem todos têm "funcionamentos" suficientes – no sentido de renda ou conhecimento disponível – de escolher o advogado da sua escolha ideal. Devido a isso, o "conjunto capacitário" do acusado estaria prejudicado com relação a outro acusado dotado de mais "funcionamentos". A "capacidade" do primeiro seria inferior a do segundo, embora ambos sejam considerados tratados com justiça em conformidade com os meandros técnico-jurídicos vigentes. Daí, o primeiro não teria o elemento da liberdade substantiva da defesa técnica, ainda que juridicamente falando tenha defensor técnico, já que não teria como realizar a combinação de "funcionamentos" como melhor lhe aprouver segundo sua vontade. Na aplicação da doutrina de Sen a este aspecto do Direito Processual Penal, o advogado comprometido e eficiente supriria "vetores de funcionamentos" que o acusado não têm, fornecendo-lhe mais "capacidades", ou seja, liberdade substantiva de realmente se defender, se assim o quiser. No intento de exemplificar o advogado como alguém que vá suprir os "vetores de funcionamento" carecidos pelo acusado, importante notar:

Mas isso só pode ocorrer quando os litigantes estiverem representados em juízo por advogados, isto é, por pessoas que, em virtude da sua condição de estranhos ao conflito e do seu conhecimento de Direito, estejam em condições psicológicas e intelectuais de colaborar para que o processo atinja sua finalidade de eliminar conflitos e controvérsias com a realização da justiça. A serenidade e os conhecimentos técnicos são as razões que legitimam a participação do advogado na defesa das partes. (CINTRA, 2006, P. 316)


5. O PROBLEMA DA DEFESA TÉCNICA EFETIVA

Neste tópico, discorre-se sobre o problema da defesa técnica efetiva. Fernandes (2005, p. 287) afirma que a defesa técnica "deve ser efetiva, não sendo suficiente a aparência de defesa". E completa: "O fato de ter o réu defensor constituído, ou de ter sido nomeado advogado para sua defesa, não é suficiente. É preciso que se perceba, no processo, atividade efetiva do advogado no sentido de assistir o acusado." (p. 287) Para fins deste trabalho, far-se-á uma diferenciação entre (a) defesa técnica formalmente efetiva e (b) defesa técnica realmente efetiva. Ambas têm em comum a plena regularidade perante o ordenamento jurídico. Contudo, a defesa técnica realmente efetiva vai além da mera formalidade jurídica. É nela que se tentará desenvolver a aplicação da doutrina de Amartya Sen ao direito de defesa técnica. Certamente, nem tudo é construído de certezas absolutas, ou divisões entre paridades incompatíveis e inexoravelmente díspares. Então, pode haver defesa técnica que seja, ao mesmo tempo, formal e realmente efetiva, o que, no nosso entender, seria a defesa técnica ideal.

5.1. A Súmula 523 e o Princípio do Prejuízo

Há momentos em que os órgãos de atuação jurisdicional não aceitam a defesa técnica formalmente efetiva [08]. Para tentar dirimir o problema o Supremo Tribunal Federal promulgou a Súmula 523: "No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prejuízo para o réu." A Súmula 523 do STF consagra o brocardo pas de nullité sans grieff, o princípio do prejuízo como ensinam Grinover et al (2006, p. 29). Deve haver prova do prejuízo para o réu, mesmo que a defesa seja deficiente. Encarando do ponto de vista formal-jurídico, a defesa deficiente que não causa prejuízo ao réu é nulidade relativa, devendo ser provada pela parte, pois "somente uma análise do conjunto de provas, alegações etc., ou até uma nova prova de circunstância que poderia ter sido deduzida, levarão à conclusão sobre a efetividade do prejuízo ao direito de defesa". (GRINOVER ET AL, 2006, p. 32) Abaixo, exemplos favoráveis e contrários da aplicação do princípio do prejuízo:

TACRSP: Quando a defesa técnica, em sua manifestação, não é benéfica ao réu, em sua sorte processual, defesa não é. Vale dizer, é inexistente, nula, prejudicial ao ofendido, nulificando a garantia constitucional, a promessa estatal pro cive. (RT 575/396. (MIRABETE, 2004, p. 661).

Processual penal – Defesa ineficaz – Inocorrência – Improvimento do apelo. Se houve intervenção do procurador do réu em todas as fases do procedimento, manifestando-se nos momentos próprios e de acordo com a conveniência da teses esposada, não há de se cogitar de falta de defesa ou de deficiência apta a anular o processo, máxime se nas razões recursais o próprio apelante afirma que sua condenação guarda coerência com a prova existente nos autos, posto que essa concordância mostra não ter sofrido qualquer prejuízo decorrente da atuação do seu patrono, tenha sido este brilhante, ou não, e, conseqüentemente, afasta o reconhecimento de nulidade (inteligência da Súmula n. 523, do STF) (TJAP, Acr n. 372.95-Santana, Rel. Des. Mário Gurtyev, Câmara Única, j. 6/6/1995, DOE n. 1.105 de 30/06/1995). (MOSSIN, 2005, p. 302)

A mesma Súmula 523 do STF foi interpretada, como visto nos dois exemplos, ora conforme a real efetividade (mas segundo o princípio do prejuízo), ora de acordo com a mera formalidade. Certamente, os julgadores têm seus motivos diante de cada caso concreto, porém, não se poderiam passar desapercebidas as posições de interpretação com relação à defesa técnica.

5.2. Defesa Técnica Formal e Realmente Efetiva

Na ementa contida na obra de Mossin, há uma clara demonstração do que seria a defesa técnica formalmente efetiva. Houve atendimento das exigências legais para a configuração de defesa técnica, sem que se considerasse a eficiência da atuação do advogado. O defensor técnico, aquele que deveria suprir a deficiências de "vetores de funcionamentos" do acusado, não agiu para realmente compensá-las. O acusado, se teve oportunidade de escolher seu advogado, o fez pela relação de confiança que deveria existir entre ambos, na esperança de que – na qualidade de técnico qualificado – desempenhasse a melhor defesa possível. Contudo, no caso em tela, o resultado foi o mesmo que se o acusado não tivesse oportunidade de escolher seu defensor. A defesa técnica foi considerada somente num plano formal, não num plano real. O "vetor de funcionamento" que seria suprido pelo seu advogado não ocorreu efetivamente, o que prejudicou o seu "conjunto capacitário" considerado no plano real. Não lhe foi dada a devida oportunidade de defesa técnica, embora no âmbito técnico-jurídico, tudo tenha transcorrido na mais perfeita legalidade e normalidade. O acusado, em tese, foi ludibriado em sua defesa técnica, pois, ao escolher seu advogado, o fez na crença de tê-lo constituído como o melhor procurador para gerir seus interesses no processo-crime no qual era perseguido. Não tendo suprido esse "vetor de funcionamento", não teve como completar seu "conjunto capacitário", deflacionando seu rol de "capacidades", em prejuízo da sua liberdade substantiva.

Mais outro adendo. Para ter validade no ordenamento jurídico, toda defesa técnica realmente efetiva deve ser uma defesa técnica formalmente efetiva. Não se trata de um jogo de "vale-tudo", portanto, a legislação, como um todo, deve ser respeitada. Aliás, cometer atos ilícitos em nome da defesa técnica realmente efetiva seria um marco de irracionalidade e "non-sense" jurídico. A jurisprudência citada por Mirabete (2004, p. 661) contextualiza a questão da defesa técnica realmente efetiva por não aceitar a mera formalidade da atuação do advogado. O advogado como prestador de serviço público veio suprir um "vetor de funcionamento" ausente no acusado. E, realmente, o fez, ampliando o "conjunto capacitário" do acusado, o que, por si só, promoveu-lhe mais "capacidades" e, conseqüentemente, liberdade substantiva.

Hipoteticamente, o acusado pôde efetivamente escolher seu advogado e este realmente desempenhou o papel de defensor técnico. Então, a defesa técnica sendo formalmente efetiva (plano deontológico) será justa se for realmente efetiva (plano ontológico). Pode-se propor que a defesa técnica realmente efetiva seja um princípio de hermenêutica no momento de avaliar problemas relativos à Súmula 523 do STF ou que lhes sejam similares. Não basta que o advogado seja eficiente só aos olhos da Lei. A efetividade da defesa técnica deve ser real, constada ontologicamente para que a formalidade concebida para dar segurança à legislação não seja utilizada instrumental e cabalmente para justificar o injustificável.


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aparentemente, a doutrina do economista Amartya Sen nada tem, ou pouco tem, a ver com Direito Processual Penal. A tentativa deste trabalho é mostrar que não se pode encarar o Direito como puro "dever ser", sob o risco de se causar arbitrariedades no plano real, o "mundo do ser". Partiu-se da idéia de que a liberdade substantiva é algo que pode, realmente, ser usufruído. Não basta que a liberdade substantiva seja exposta como acessível, formalmente a todos, mas materialmente disponível apenas a alguns. A liberdade substantiva decorre da oportunidade real de escolha. Neste estudo, tentou-se demonstrar que a defesa técnica realmente efetiva é um elemento da liberdade substantiva. O fato de um acusado poder, realmente, escolher o advogado de sua preferência pode influir na sua liberdade substantiva. Caso escolha um advogado que venha a lhe promover uma defesa técnica realmente efetiva, o acusado terá suprido o "vetor de funcionamento" que não tem, possibilitando-lhe mais "conjuntos capacitários" no seu rol de "capacidades" (combinações de "funcionamentos") e, por conseguinte, maior amplitude de liberdade substantiva. Se escolher um advogado que lhe faça uma defesa técnica formalmente efetiva, o acusado terá suprido apenas de modo formal o "vetor de funcionamento" que não tem. A assistência meramente formal lhe causará prejuízos na constituição do seu "conjunto capacitário", tolhendo-lhe suas "capacidades" (menos possibilidades de combinações de "funcionamentos"), ou seja, sua liberdade substantiva será menor.

Exemplificando. Um sujeito tem um advogado que meramente realiza todos os atos processuais, desde a fase do inquérito policial até a sentença transitar em julgado. Esse advogado apresentou todas as peças pertinentes, contudo sua argumentação deixou a desejar, ou não enfrentou adequadamente as teses da acusação, seja por sua deficiência profissional ou por reles desleixo. Não haveria nulidade nem prejuízo para o réu nesse caso, se a interpretação da Súmula 523 do STF for realizada no aspecto puramente formal. Afinal, o advogado realizou todos os atos processuais pertinentes o processo e não haveria de se falar em nulidade.

Numa interpretação da Súmula 523 do STF pela doutrina de Amartya Sen, o advogado em questão deveria não somente acompanhar todos os atos processuais tempestivamente, mas também atuar com eficiência e eficácia, de modo a ter desenvoltura profissional e tal nível de atenção à sua atuação no processo para que realmente possa defender o seu cliente. De que adiantaria uma peça, um recurso ou uma ação autônoma de impugnação propostos tempestivamente, porém, sem maior compromisso para rebater a acusação com efetividade?

Realizar somente os atos processuais "de qualquer jeito", então, seria passível de nulidade, pois seria quase o mesmo, em termos efetivos, de não se ter feito nada em prol do cliente. Nesse contexto, constata-se que a defesa técnica vista somente do ponto de vista formal não é suficiente. Para a correta administração da justiça, há necessidade que a defesa técnica seja formal e realmente efetiva, para ser válida, no plano deontológico, e justa no plano ontológico. O mais usual é se verificar se a defesa técnica é efetiva somente em termos formais. Então, a verificação da defesa técnica realmente efetiva, no mundo do ser, poderia ser utilizada como princípio de hermenêutica nos casos afeitos ao assunto, como os da Súmula 523 do STF. Ademais, propõe-se uma nova redação para a Súmula 523 do STF: "No processo penal, a falta de defesa realmente efetiva – e não somente a falta de defesa formalmente efetiva - constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prejuízo para o réu." Além da formalidade legal, há de se aplicar medidas de eqüidade para que não ocorram maiores injustiças, mesmo com o cumprimento estrito da Lei. Aliás, um Estado Social e Democrático de Direito com justiça não poderia, jamais, acolher a assertiva de Karl Marx de que o Direito Burguês é o tratamento igual dos desiguais. Uma sociedade realmente justa preza pela real efetividade da defesa técnica dos acusados. Se assim não o for, é covardia. Não vale.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 16. tiragem. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

CINTRA, Antonio C. de Araujo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Candido R. Teoria Geral do Processo. 22. ed. São Paulo: RT, 2006.

FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2005.

GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Carlos Magalhães. Nulidades no Processo Penal. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

KERSTENETZKY, Celia Lessa. Desigualdade e pobreza: lições de Sen. Revista Brasileira de Ciências Sociais, fev. 2000, v. 15, n. 42, p. 113-122.

LOIOLA, Mariana. Longo Aprendizado. Ajuda Brasil. Rio de Janeiro, 30 de nov. 2066. Disponível em: <http://www.ajudabrasil.org/noticias.asp?idNoticia=772>. Acesso em :15 nov. 2006. 15h38’.

MIRABETE, Julio F. Processo Penal. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2003

________________ Código de Processo Penal Comentado. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2004.

MOSSIN, Heráclito Antônio. Nulidades no Direito Processual Penal. 3. ed. Barueri: Manole, 2005.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2006.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Processo e Hermenêutica na Tutela Penal dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Del Rey, 2004.

SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como Liberdade. 5. reimp. Tradução Laura Teixeira Motta. Revisão técnica Ricardo Donimelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

__________________ Desigualdade Reexaminada. Tradução Ricardo Donimelli Mendes. Rio de Janeiro: Record, 2001.


Notas

  1. O termo foi escrito originalmente em inglês como "freedom". A outra palavra designativa de liberdade, "liberty", foi encarada como liberdade negativa, como os Direitos Humanos de Primeira Geração, por exemplo. No decorrer deste texto, ver-se-á que o elemento de liberdade substantiva coincide com o conceito de "vetor de funcionamento" na constituição de "conjuntos capacitários".
  2. Em termos resumidos, a Guarda Pretoriana era um corpo militar de elite destinado a proteger os Imperadores Romanos e seus asseclas. Obviamente, não fazemos comparação da Guarda Pretoriana com o Ministério Público com relação ao poder político adquirido pela primeira, apenas salientamos que ambas corporações são constituídas por membros com habilidades acima da média.
  3. De maneira alguma pretendemos desprestigiar os demais profissionais da área jurídica. Há uma preocupação meramente exemplificativa, no intuito de explicar a necessidade de uma defesa técnica realmente eficaz e não meramente formal, como se explicará posteriormente, neste texto.
  4. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942.
  5. Estimativa da população brasileira, de acordo com o Governo Federal, em 2006.
  6. Os funcionamentos ("functionings") são vistos pelo economista indiano, numa interpretação particular, como as "virtudes" de Aristóteles, que, numa conceituação simples, seriam as qualidades necessárias para que o ser humano atinja um bem maior, que, para os gregos antigos, era a felicidade. Sen, por outro lado, simplesmente escreve que o conceito de funcionamentos "reflete as várias coisas que uma pessoa pode considerar valioso fazer ou ter." (2000, p. 95)
  7. Traduzido de "capability set". O "conjunto capacitário" é a liberdade que uma pessoa tem de "escolher dentre vidas possíveis". (Sen, 2001, p. 80)
  8. Mirabete (2003, p. 344) define como "virtual" a defesa deficiente.

Autor

  • Roger Moko Yabiku

    Roger Moko Yabiku

    Advogado, jornalista e professor universitário. Bacharel em Direito e Jornalismo, graduado pelo Programa Especial de Formação Pedagógica de Professores de Filosofia, MBA em Comércio Exterior, Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal e Mestre em Filosofia (Ética). Professor do CEUNSP e da Faculdade de São Roque - UNIESP.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YABIKU, Roger Moko. A defesa técnica como elemento da liberdade substantiva. Aplicação da doutrina de Amartya Sen ao processo penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2246, 25 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13366. Acesso em: 6 maio 2024.