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Inelegibilidade do analfabeto funcional

03/10/2004 às 00:00
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Parecer ministerial fundamentado acerca da conceituação de “analfabeto”, para fins eleitorais, concluindo que o termo abrange também o analfabetismo funcional.

Processo n.º 1680662004

RECURSO ELEITORAL

Recorrente: Hoover Aparecido Rosa Barbosa

Recorrido: Juiz Eleitoral da 97.ª Zona (Cachoeira Alta)

Relatora: Juíza Carmency Rosa Maria Alves de Oliveira

Assunto: Registro de Candidatura. Indeferimento. Analfabeto

"A conclusão é uma só e assustadora: um número expressivo de estudantes não aprende a ler na escola brasileira; essa escola produz um grande contingente de analfabetos ou de analfabetos funcionais – quer dizer, pessoas que, embora dominem as habilidades básicas do ler e do escrever, não são capazes de utilizar a escrita na leitura e na produção de textos na vida cotidiana ou na escola, para satisfazer às exigências do aprendizado."

Colendo Tribunal,

Excelentíssima Relatora,


O caso

Recorre Hoover Aparecido Rosa Barbosa contra a decisão que indeferiu seu pedido de registro de candidatura ao cargo de vereador de Cachoeira Alta/GO, por considerá-lo analfabeto funcional. O pedido de registro não foi instruído com prova da escolaridade exigida (certificado ou diploma de conclusão do ensino fundamental, 8.ª série, inclusive).

Submetido a exame aplicado pelo juiz eleitoral, foi reprovado por não obter o aproveitamento mínimo exigido (50%), alcançando apenas 30%.

Destaco da sentença: "Justifica-se também este cuidado em face da responsabilidade do cargo de vereador, eis que fiscalizador do Poder Executivo e fonte de leis (...) Hodiernamente, até mesmo o concurso para gari é mais difícil que o teste aplicado na dada de hoje, sendo uma irresponsabilidade permitir que aventureiros possam concorrer."


Sustenta o recorrente

Não obteve o aproveitamento mínimo exigido pelo juiz por motivos adversos (nervosismo, ansiedade e outros). A lei não define o que seja analfabeto. De acordo com o dicionário (Aurélio), analfabeto é quem não sabe ler e escrever. O recorrente não é analfabeto, tanto que possui habilitação para conduzir automóveis e para conseguí-la precisou obter pelo menos 70% de aproveitamento na prova escrita de legislação de trânsito.


Disse o promotor eleitoral

A Constituição considera inelegível o analfabeto. No parecer, leio: "O exercício da democracia demanda, imprescindivelmente, um nível mínimo de educação, formação cultural e social (...) Da conhecida divisão da funções do Poder, descritas por Montesquieu, tem-se que o Poder Legislativo, através de seus integrantes, exerce um papel fundamental de controle e delimitação na criação do Direito, onde se espera de seus integrantes, eleitos pelo voto popular, tenha o máximo de conhecimento (...) submetido à avaliação, fls. 23/24, o recorrente obteve 3,0 (três) pontos, constando em sua avaliação incorreções que inviabilizam a sua identificação como alfabetizado, principalmente pela importância do cargo concorrido e das funções a ele inerentes. Embora não tenha o legislador infraconstitucional adotado uma postura mais centrada em relação à qualificação técnica daqueles que concorrem a cargos políticos, cabe ao Poder Judiciário fazer cumprir a Constituição, dando-lhe efetividade e impedindo que situações incongruentes, dentre elas a de considerar alfabetizado aquele que, limitadamente, sabe escrever o próprio nome, venha a prejudicar o direito de toda a coletividade".


Analiso

O analfabetismo é elencado pela Constituição como causa de inelegibilidade (art. 14, § 4º).

O ônus da prova da escolaridade é do candidato, partido ou coligação que requerer o registro da candidatura (art. 28, VII, da Resolução n.º 21.608/2004, do TSE).

A ausência do comprovante de escolaridade poderá ser suprida por declaração de próprio punho, podendo o juiz, se for o caso, determinar a aferição, por outros meios, da condição de alfabetizado (art. 28, § 4º, da Resolução n.º 21.608/2004).

Sobre os tais outros meios de prova da alfabetização, o TSE tem decidido:

"Alfabetização. Não há ilegalidade em procurar o juiz averiguar se quem pretende registro como candidato atende a esse requisito de elegibilidade, mediante a realização de teste, dispensado se trazida prova suficiente." (Ac. no 13.000, de 12.9.96, rel. Min. Eduardo Ribeiro. No mesmo sentido os acórdãos nos 13.277, de 23.9.96, da lavra do mesmo relator, e 13.185, de 23.9.96, rel. Min Ilmar Galvão.)

"Inelegibilidade. Analfabetismo. 1. Teste. Não é ilegal nem ilegítima a realização de teste pelo juiz, com o intuito de verificar, a propósito, as condições do candidato. Precedentes do TSE. 2. Cabe ao Tribunal, ao julgamento do recurso oposto à sentença, apreciar livremente a prova existente nos autos. (...)" (Ac. no 13.379, de 24.9.96, rel. Min. Nilson Naves.)

"Inelegibilidade. Analfabetismo. Não se convencendo o juiz, com base nos elementos dos autos, de que o pretendente a registro de candidatura atende ao requisito constitucional de ser alfabetizado, possível a realização de teste. O não-comparecimento a esse conduzira a que a decisão seja tomada tendo em vista as demais provas. Verificar se foram bem avaliadas, não é tema do especial." (Ac. no 13.898, de 28.9.96, rel. Min. Eduardo Ribeiro.)

Ser habilitado a conduzir automóveis, por si só, não é prova de alfabetização, se o aproveitamento no exame aplicado pelo Juiz Eleitoral foi considerado insuficiente. Decidiu o TSE:

"(...) Inelegibilidade. Analfabetismo. Não se substitui a conclusão do exame feito perante o juiz eleitoral por indícios inconcludentes de que o postulante é alfabetizado." (Ac. no 12.827, de 27.9.92, rel. Min. Eduardo Alckmin.)

O nervosismo e a ansiedade, por serem familiares à submissão a provas, exames e concursos, não invalidam o baixo aproveitamento obtido pelo candidato.

É fato. A legislação não conceitua o termo "analfabeto". Não é mesmo de boa técnica legislativa determinar conceitos, principalmente quando o que se busca conceituar seja alheio às ciências jurídicas.

O conceito de alfabetização não é jurídico e nem legal, como também não o é, por exemplo, o conceito de propaganda. É no âmbito da ciência da educação e do ensino, denominada de pedagogia, que o intérprete da lei deve buscar e tomar emprestado o conceito de alfabetização.

No período de 29/03/2004 a 02/04/2004, o Salto para o Futuro veiculou uma série de cinco programas, denominada Alfabetização, leitura e escrita, na qual a questão foi devidamente tratada. Anexo a esse parecer o roteiro integral de três dos programas veiculados.

No roteiro do terceiro programa da série, intitulado "O que é ser alfabetizado e letrado?", a Prof.ª Maria das Graças Costa Val assim conceitua alfabetização e letramento:

"A apropriação da escrita é um processo complexo e multifacetado, que envolve tanto o domínio do sistema alfabético-ortográfico quanto a compreensão e o uso efetivo e autônomo da língua escrita em práticas sociais diversificadas. A partir da compreensão dessa complexidade é que se tem falado em alfabetização e letramento como fenômenos diferentes e complementares.

De início, pode-se definir alfabetização como o processo específico e indispensável de apropriação do sistema de escrita, a conquista dos princípios alfabético e ortográfico que possibilitam ao aluno ler e escrever com autonomia. Noutras palavras, alfabetização diz respeito à compreensão e ao domínio do chamado "código" escrito, que se organiza em torno de relações entre a pauta sonora da fala e as letras (e outras convenções) usadas para representá-la na escrita.

Já letramento pode ser definido como o processo de inserção e participação na cultura escrita. Trata-se de um processo que tem início quando a criança começa a conviver com as diferentes manifestações da escrita na sociedade (placas, rótulos, embalagens comerciais, revistas, etc.) e se prolonga por toda a vida, com a crescente possibilidade de participação nas práticas sociais que envolvem a língua escrita (leitura e redação de contratos, de livros científicos, de obras literárias, por exemplo).

O termo letramento foi criado, portanto, quando se passou a entender que, nas sociedades contemporâneas, é insuficiente o mero aprendizado das "primeiras letras", e que integrar-se socialmente, hoje, envolve também "saber utilizar a língua escrita nas situações em que esta é necessária, lendo e produzindo textos". Essa nova palavra veio para designar "essa nova dimensão da entrada no mundo da escrita", que se constitui de um "conjunto de conhecimentos, atitudes e capacidades necessários para usar a língua em práticas sociais" (cf. Batista, 2003).

É possível encontrar pessoas que passaram pela escola, aprenderam técnicas de decifração do código escrito e são capazes de ler palavras e textos simples, curtos, mas não são capazes de se valer da língua escrita em situações sociais que requerem habilidades mais complexas. Essas pessoas são alfabetizadas, mas não são letradas. Essa condição é particularmente dolorosa e indesejável, embora freqüente, dentro da própria escola, porque acarreta dificuldades para o aprendizado dos diferentes conteúdos curriculares, ou mesmo inviabiliza esse aprendizado.

Por isso é que se tem afirmado que alfabetização e letramento são processos diferentes, cada um com suas especificidades, mas complementares, inseparáveis e ambos indispensáveis. O desafio que se coloca hoje para os professores é o de conciliar esses dois processos, de modo a assegurar aos alunos a apropriação do sistema alfabético-ortográfico e a plena condição de uso da língua nas práticas sociais de leitura e escrita."

Contudo, é igualmente correto afirmar que um alfabetizado não letrado é, na verdade, um analfabeto funcional.

De fato, no passado podia-se dizer, em síntese, que a "alfabetização, em seu sentido estrito, designa, na leitura, a capacidade de decodificar os sinais gráficos, transformando-os em sons, e, na escrita, a capacidade de codificar os sons da língua, transformando-os em sinais gráficos."

Porém, ao longo do último século, "esse conceito de alfabetização foi sendo progressivamente ampliado, em razão de necessidades sociais e políticas, a ponto de já não se considerar alfabetizado aquele que apenas domina as habilidades de codificação e de decodificação, ´mas aquele que sabe usar a leitura e a escrita para exercer uma prática social em que a escrita é necessária´"

Magda Soares ensina que:

(...) até os anos 40 do século passado, os questionários do Censo indagavam, simplesmente, se a pessoa sabia ler e escrever, servindo, como comprovação da resposta afirmativa ou negativa, a capacidade de assinatura do próprio nome. A partir dos anos 50 e até o último Censo (2000), os questionários passaram a indagar se a pessoa era capaz de "ler e escrever um bilhete simples", o que já evidencia uma ampliação do conceito de alfabetização: já não se considera alfabetizado aquele que apenas declara saber ler e escrever, genericamente, mas aquele que sabe usar a leitura e a escrita para exercer uma prática social em que a escrita é necessária.

Essa ampliação do conceito revela-se mais claramente em estudos censitários desenvolvidos a partir da última década, em que são definidos índices de alfabetizados funcionais (e a adoção dessa terminologia já indica um novo conceito que se acrescenta ao de alfabetizado, simplesmente), tomando como critério o nível de escolaridade atingido ou a conclusão de um determinado número de anos de estudo ou de uma determinada série (em geral, a 4ª série do Ensino Fundamental), o que traz, implícita, a idéia de que o acesso ao mundo da escrita exige habilidades para além do apenas aprender a ler e a escrever. Ou seja: a definição de índices de alfabetismo funcional utilizando-se, como critério, anos de escolaridade, evidencia o reconhecimento dos limites de uma avaliação censitária baseada apenas no conceito de alfabetização como "saber ler e escrever " ou "saber ler um bilhete simples ", e a emergência de um novo conceito, que incorpora habilidades de uso da leitura e da escrita desenvolvidas durante alguns anos de escolarização.

A ampliação do conceito de alfabetização se manifesta também na escola. Até muito recentemente, considerava-se que a entrada da criança no mundo da escrita se fazia apenas pela alfabetização, pelo aprendizado das "primeiras letras", pelo desenvolvimento das habilidades de codificação e de decodificação. O uso da língua escrita, em práticas sociais de leitura e produção de textos, seria uma etapa posterior à alfabetização, devendo ser desenvolvido nas séries seguintes.

Desde meados dos anos 80, porém, concepções psicológicas, lingüísticas e psicolingüísticas de leitura e escrita vêm mostrando que, se o aprendizado das relações entre as "letras " e os sons da língua é uma condição do uso da língua escrita, esse uso também é uma condição da alfabetização ou do aprendizado das relações entre as "letras "e os sons da língua.

(...)

Assim, alfabetizar não se reduziria ao domínio das "primeiras letras". Envolveria também saber utilizar a língua escrita nas situações em que esta é necessária, lendo e produzindo textos. É para essa nova dimensão da entrada no mundo da escrita que se cunhou uma nova palavra: letramento. Ela serve para designar o conjunto de conhecimentos, de atitudes e de capacidades necessários para usar a língua em práticas sociais.

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Por meio desse conceito, a escola ampliou, assim, o seu conceito de alfabetização. O que boa parte dos dados do SAEB mostra é que muitas crianças, embora alfabetizadas, não são letradas (ou manifestam diferentes graus de analfabetismo funcional, já que os dois conceitos tendem a se sobrepor). Em outras palavras, não são capazes de utilizar a língua escrita em práticas sociais, particularmente naquelas que se dão na própria escola, no ensino e no aprendizado de diferentes conteúdos e habilidades.

Assim: as dificuldades que enfrentamos, hoje, na alfabetização, são agravadas tanto pelo passado (a herança do analfabetismo e das desigualdades sociais), quanto pelo presente (a ampliação do conceito de alfabetização e das expectativas da sociedade em relação a seus resultados)."

Dos ensinamentos pedagógicos acima transcritos, conclui-se que, na atualidade, não basta saber ler e escrever para que o indivíduo seja considerado alfabetizado. É necessário que saiba, também, fazer uso da escrita na leitura e na produção de textos na vida cotidiana ou na escola, para satisfazer às exigências do aprendizado.

Mais do que ler e escrever mecanicamente, o alfabetizado funcional deve compreender o que leu e saber redigir um texto autônomo (uma carta, um bilhete etc.) ou, em outras palavras, conseguir usar a escrita, tirar proveito dela, valer-se da linguagem escrita para atividades sociais do cotidiano.

O vereador exerce relevante função pública. Além de legislador dos assuntos da comuna, é fiscal das atividades do prefeito, em especial da arrecadação e dos gastos públicos, dos atos e contratos administrativos. Sendo analfabeto funcional, isto é, sabendo ler e escrever sem conseguir fazer uso da escrita, não poderá desempenhar as funções do cargo, frustrando a vontade do eleitor, mal ferindo o interesse público e lesando o erário (já que receberá remuneração sem conseguir contra-prestar o serviço).

Assim, quando a Constituição erigiu o analfabetismo como causa de inelegibilidade, abrangeu também o analfabeto funcional.

No caso dos autos, o recorrido foi submetido a um exame constituído de duas partes. A primeira consistiu na leitura de um pequeno texto simples, redigido em linguagem clara e objetiva (texto jornalístico), seguido de oito perguntas que versam sobre o seu conteúdo, de modo que as respostas indicam se o candidato conseguiu ler e entender o que leu.

A segunda parte revestiu-se de um ditado, também de um pequeno texto jornalístico e, portanto, em linguagem clara, objetiva, direta e simples, objetivando identificar se o candidato sabe escrever, de modo que cada erro de ortografia, gramática ou pontuação implicou no desconto de 0,1 ponto.

O exame, por óbvio, não é capaz de identificar se o candidato é letrado, visto que não exige redação ou produção de textos. Em outras palavras, o exame não exigiu que o candidato soubesse usar a escrita.

O exame limitou-se a exigir que o candidato soubesse ler e entender o que leu (primeira parte) e escrever um texto previamente redigido por outrem (copiar texto ditado).

Das oito perguntas formuladas, o candidato soube responder acertadamente à apenas duas, sendo que duas outras foram respondidas parcialmente corretas. Assim, ou o candidato não conseguiu ler o texto ou, se fez, não o entendeu. Ou, ainda, não conseguiu redigir as respostas.

Em relação ao ditado, o que o candidato escreveu, apesar de ter utilizado letra de forma, é ininteligível. Não é possível ler e nem entender o que foi escrito. Das poucas palavras possíveis de serem identificadas, a maioria possui erros graves de ortografia. Há casos de erros ortográficos que impedem, inclusive, de identificar a palavra ditada.

Os conhecimentos rudimentares da escrita, apresentados pelo candidato, não autorizam que ele possa ser considerado alfabetizado.


O parecer

Pelo conhecimento e improvimento do recurso, mantendo-se a decisão que indeferiu o registro da candidatura de Hoover Aparecido Rosa Barbosa, que é inelegível por não comprovar ser alfabetizado.

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Sobre o autor
Reginaldo Melo Junior

promotor de Justiça em Goiás

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO JUNIOR, Reginaldo. Inelegibilidade do analfabeto funcional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 453, 3 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16607. Acesso em: 29 abr. 2024.

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