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Estupro: afastamento da presunção de violência em conjunção carnal com menor de 14 anos

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DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA DESCRITA NA ALÍNEA "A", DO ART. 224 DO CP

Baseado no Digesto – qui velle non potuit, ergo noluit – (aquele que não pode querer, logo não quer), Carpzovio estabeleceu durante a idade média a teoria da presunção e sua aplicação no Direito Penal, tema que por sinal sempre foi alvo de severas críticas da doutrina que afirma não se poder afiançar a falta, em sentido naturalístico, de consentimento dos impúberes e dos dementes; mas sim a ausência de validade jurídica deste.

Trazida para o ordenamento jurídico brasileiro, a presunção acabou inserida no Código Penal de 40 com a seguinte justificativa na exposição de motivos:

"O fundamento da ficção legal de violência, no caso dos adolescentes, é a innocentia consilli do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em relação aos fatos sexuais, de modo que não se pode dar valor algum ao seu consentimento" (nº 70 – grifei).

Passadas seis décadas, não se pode mais afirmar que tal presunção é absoluta, motivo pelo qual Mirabete aponta inúmeras absolvições em casos semelhantes a este:

"Estupro ficto. Acusado que nega com veemência a autoria do delito. Ofendida com procedimento pouco recomendável, que presta declarações contraditórias e até inverídicas. (...) Dúvida quanto à idade da ofendida na época em que teria ocorrido o pretendido congresso carnal. No juízo criminal, dúvidas e ausência de provas se equivalem" (RT: 609/363). "Sendo a vítima de crimes contra os costumes menor de 14 anos, seu consentimento na prática dos atos só tem valor quando se trata de pessoa já dissoluta, corrompida (...). Caso contrário, se a mesma é totalmente desinformada sobre sexo, sem qualquer capacidade de discernimento, sua anuência é irrelevante." (RT: 769/694) "STJ: No crime de estupro, a presunção de violência prevista no art. 224, a do CP é relativa. Assim, pode ser afastada se a vítima que com 12 anos de idade, não era ingênua ou inexperiente e tinha capacidade de autodeterminação, com clara ciência do ato que praticara". (RT: 762/580 e 720/415) "A presunção de violência inserida no art. 224, a, do CP, deve ser analisada caso a caso concretamente. Para a caracterização do crime de estupro com violência presumida, necessário se faz que, além de ser a vítima menor de 14 anos de idade, seja ela recatada, inocente e ingênua a respeito de sexo" (RT: 763/627) "Crime contra os costumes – Estupro – Violência Presumida (art. 224, a, do CP) – Delito não caracterizado – Vítima menor de 14 anos de idade que, entretanto, demonstrou ter consentido na consumação do ato sexual – A tais situações de relativização da presunção deve ser acrescida uma outra, ou seja, exclui-se a presunção de violência quando a pessoa da ofendida, embora com menos de 14 anos de idade, deixa claro e patente ter maturidade suficiente para exercer a sua capacidade de auto determinar-se no terreno da sexualidade. (...) se ela aderir prontamente ao convite de caráter sexual que o agente lhe dirige, constituiria um verdadeiro contra-senso entender que sofreu violência. O consentimento ou a adesão da pessoa ofendida mostra-se nesses casos relevante e eficaz. (RT: 678/411).(...) O estupro pressupõe o constrangimento de mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça – art. 213 do CP. A presunção desta última, por ser a vítima menor de 14 anos, é relativa. Confessada ou demonstrada a aquiescência da mulher e exsurgindo da prova dos autos a aparência, física e mental, de tratar-se de pessoa de idade superior a 14 anos, impõe-se a conclusão sobre a ausência de configuração do tipo penal. Alcance dos artigos 213 e 224, alínea a do CP". (JSTF: 223/372 –3) "STF: Não se configura o crime de estupro se a suposta vítima, embora menor de 14 anos, aparenta idade superior, possui comportamento promíscuo e admite não haver sido constrangida a manter relação sexual com o acusado, tendo o feito por livre e espontânea vontade.HC 73.662 – MG, Rel. Min. Marco Aurélio. 21-5-96 (Informativo do STF 29-5-96)" (In. Código Penal Interpretado, Saraiva, 2ª Ed., 2001, págs. 1514/1516 – grifei)

Destarte, cotidianamente a análise da imputação não deve mais basear-se única e exclusivamente no pressuposto idade; deve sim, em atendimento a visão contemporânea constatar nos autos, tal como afirmado pela jurisprudência, indícios de que a menor: "não prestou declarações inverídicas e mentirosas", "que não é pessoa dissoluta, desinformada sobre sexo e, o que lhe causaria ausência de discernimento, dada a sua inocência, ingenuidade e falta de auto-determinação, bem como ‘’não ter aderido prontamente a proposta do autor do suposto crime".

Em sã consciência, não há nada, nada mesmo nestes autos que demonstre uma vítima inocente, frágil, coagida por um bárbaro explorador de jovens indefesas. Ao revés, o que se vê nestes autos é uma menina-mulher que muda suas versões como muda de roupas, escondendo detalhes e dados importantíssimos que uma vítima de estupro jamais esqueceria.

Esta jovem, quando adentrou no carro do acusado já tinha pleno discernimento, sabendo durante todo o desenrolar dos fatos o que estava fazendo e as possíveis conseqüências, tanto que ao ficar sozinha na garagem, momento em que poderia se evadir em direção a PMERJ, que insista-se, fica bem em frente ao motel, LARISSA optou por subir ao quarto, deixar o acusado despir-lhe entre rompantes de beijos, abraços e carícias, para adiante ceder-lhe os prazeres da cópula vagínica e, como gran finale, repousar nos seus braços até a hora do almoço no dia seguinte (?)

Há na solidão de todo quarto um forte apelo sexual, principalmente quando a mulher que ali se encontra corresponde aos atos pré-sexuais de forma pacífica e incisiva, as 03:00 horas da madrugada, tomando a iniciativa, sozinha de subir ao quarto de motel ante a insistência "delicada" do seu amante. Com todo respeito não há que se exigir deste jovem de classe média baixa um rompante domador de seus instintos.

Quem não quer reage, grita, esperneia, foge, arranha o agressor; enfim, demonstra resistência, por mais frágil que seja. Jamais encaminha-se a um quarto de motel, deixa-se despir e, ao final da relação repousa tranqüilamente por horas a fio !

É impossível acreditar que uma jovem, numa praça movimentada, no final da madrugada, numa roda de amigos, com roupas típicas de mulher e com "(...) pêlos axilares raspados, mamas desenvolvidas (...) genitália externa parcialmente coberta de pêlos espessados escuros raspados (leia-se: depilados em forma triangular)" (ver fl. 51 Laudo Médico legal – grifei), que ingressa livremente no carro de um homem, direcionando-se, ainda que com fraca resistência, a um motel e, lá chegando sobe para o quarto, adere a relação sexual que lhe é prontamente ofertada, possa ser equiparada a inocente "criança" que o legislador de 40 quis proteger.

Tenho para mim que aqui cabe a lição do Ministro Marco Aurélio, lançada durante o julgamento de rumoroso caso semelhante ao presente no STF; vejamos:

"A presunção de violência prevista no artigo 224 do Código Penal cede à realidade. Até porque não há como deixar de reconhecer a modificação de costume havida, de maneira assustadoramente vertiginosa, nas últimas décadas, mormente na atual quadra. Os meios de comunicação de um modo geral e, particularmente, a televisão, são responsáveis pela divulgação maciça de informações, não as selecionando sequer de acordo com medianos e saudáveis critérios que pudessem atender às menores exigências de uma sociedade marcada pelas dessemelhanças. Assim é que, sendo irrestrito o acesso á mídia, não se mostra incomum reparar-se a precocidade com que as crianças de hoje lidam, sem embaraços quaisquer, com assuntos concernentes à sexualidade, tudo de uma forma espontânea, quase natural. Tanto não se diria nos idos dos anos 40, época em que exsurgia, glorioso e como símbolo da modernidade e liberalismo, o nosso vetusto e ainda vigente Código Penal. Aquela altura, uma pessoa que contasse doze anos de idade era de fato considerada uma criança e, como tal, indefesa e despreparada para os sustos da vida.

Ora, passados mais de cinqüenta anos – e que anos: a meu ver, correspondem, na história da humanidade, a algumas dezenas de séculos bem vividos – não se há de igualar, por absolutamente inconcebível, as duas situações. Nos nossos dias não há crianças, mas moças de doze anos. Precocemente amadurecidas, a maioria delas já conta com discernimento bastante para reagir ante eventuais adversidades, ainda que não possuam escala de valores definida a ponto de vislumbrarem toda a sorte de conseqüências que lhes pode advir. Tal lucidez é que de fato só virá com o tempo, ainda que o massacre da massificação da notícia, imposto por uma mídia que se pretende onisciente e muitas vezes sabe-se irresponsável diante do papel social que lhe cumpre, leve à precipitação de acontecimentos que só são bem-vindos com o tempo, esse amigo inseparável da sabedoria.

Portanto, é de se ver que já não socorre a sociedade os rigores de um Código ultrapassado, anacrônico e,em algumas passagens, até descabido, porque não acompanhou a verdadeira revolução comportamental assistida pelos hoje mais idosos. Com certeza, o conceito de liberdade é tão discrepante daquele de outrora que só seria comparado aos que norteavam antigamente a noção de libertinagem, anarquia, cinismo e desfaçatez.

Alfim, cabe uma pergunta que, de tão óbvia, transparece á primeira vista como que desnecessária, conquanto ainda não devidamente respondida: a sociedade envelhece; as leis, não?

Ora, enrijecida a legislação – que, ao invés de obnubilar a evolução dos costumes, deveria acompanhá-la, dessa forma protegendo-a – cabe ao intérprete da lei o papel de arrefecer tanta austeridade, flexibilizando, sob o ângulo literal, o texto normativo, tornando-o, destarte, adequado e oportuno, sem que o argumento da segurança transmuda-se em sofisma e servirá, ao reverso, ao despotismo inexorável dos arquiconservadores de plantão, nunca a uma sociedade que se quer global, ágil e avançada – tecnológica, social e espiritualmente.

De qualquer forma, o núcleo do tipo é o constrangimento e à medida em que a vítima deixou patenteado haver mantido relações sexuais espontaneamente, não se tem, mesmo a mercê da pontecialização da idade, como concluir, na espécie, pela caracterização. A presunção não é absoluta, cedendo as peculiaridades do caso como são as já apontadas, ou seja, o fato de a vítima aparentar mais idade, levar vida dissoluta, saindo altas horas (...)". (HC. Nº 73.662-9 MG – págs. 316/318 – voto condutor do Min. Marco Aurélio – grifei).

A magistral lição amolda-se como uma luva ao presente caso, pois aqui também a vítima se porta como pessoa dissoluta, saindo altas horas e com plena capacidade de discernimento, fato este atestado pelo Laudo Médico de fl. 51.


A INCIDÊNCIA DO E.C.A AO CASO CONCRETO

os rigores obsoletos do nosso Código Penal.

Pelo art. 2º da lei percebe-se que a afirmativa do Min. Marco Aurélio de que "(...) Nos nossos dias não há crianças, mas moças de doze anos (...)" ganha foros de legalidade, pois neste dispositivo o legislador fez a seguinte distinção: "Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade" (grifei).

Para a nova legislação, acima de 12 anos não há mais "criança" ingênua; mas sim, como disse o Min. Marco Aurélio: uma moça.

Esta distinção é muito importante e levou em consideração o processo de amadurecimento dos adolescentes contemporâneos, fato externado mais adiante em diversos dispositivos, como por exemplo: (a) o art. 106, que só admite a privação de liberdade quando se tratar de adolescente; (b) o art 112 aplica as sanções mais severas exclusivamente ao adolescente; (c) as garantias processuais (arts. 109/111) são direcionadas aos adolescentes, equiparando-os aos adultos. Enfim, todas as medidas mais agressivas contra a liberdade previstas no título III do ECA, que trata da "Prática de Ato Infracional", aplicam-se excepcionalmente aos adolescentes, nos termos do art. 2º.

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Em relação às crianças, José Luiz Mônaco da Silva demonstra, dada a peculiar fragilidade e inocência, procedimento distinto e protetor nos seguintes termos:

"Como já vimos anteriormente, quando a infração penal for praticada por criança, isto é, pessoa com 12 anos incompletos (cf. art. 2º do Estatuto), serão aplicadas uma das medidas dispostas no art. 101, que vão desde o encaminhamento aos pais ou responsável até a colocação em família substituta". (In. Estatuto da Criança e do Adolescente – Comentários – RT – 1994 – p. 175 – comentários ao art. 112 – grifei)

Aí está a maior prova de que chegada à adolescência, graças ao amadurecimento imposto na atual conjuntura, as responsabilidades aumentam, equiparando-se as dos adultos, tendo o legislador apenas previsto para estes punições mais brandas do que as existentes na legislação em vigor (art. 112).


REJEIÇÃO DA DENÚNCIA E A APLICAÇÃO DO ATIVISMO JUDICIAL

Parafraseando o Min. Marco Aurélio: "enrijecida a legislação – que, ao invés de obnubilar a evolução dos costumes, deveria acompanhá-la, dessa forma protegendo-a – cabe ao intérprete da lei o papel de arrefecer tanta austeridade, flexibilizando, sob o ângulo literal, o texto normativo, tornando-o, destarte, adequado e oportuno".

Destarte, cabe ao Juiz a função de tentar adequar a legislação à visão garantista do processo contemporâneo, o que tem causado muita angústia.

Como forma de superar tal situação foram criadas diversas correntes, tendo despontado dentre os juristas a denominada "Ativismo Judicial", a qual foi definida por Ary Casagrande "(...) como um grupo de Juízes inconformados com o marasmo no Judiciário (...)" (In. Ativismo Judicial – Uma Nova Postura para um Novo Tempo – Revista da AMAERJ, nº 03, junho/julho p. 13).

Inspirado nessa visão o próprio Presidente do E. STF, Min. Marco Aurélio, também entrevistado nesta edição, que por sinal tratou exclusivamente sobre o tema, afirmou: "(...) como julgador, a primeira coisa que faço, ao defrontar-me com uma controvérsia, é idealizar a solução mais justa de acordo com minha formação humanista, para o caso concreto. Somente após, recorro à legislação, à ordem jurídica, objetivando encontrar o indispensável apoio (...)" (p.11).


DA CONCLUSÃO

Este é o caso específico onde, a meu ver e com todo o respeito aos entendimentos divergentes, com segurança já se sabe de antemão que inexiste conduta típica por ausência de violência na conjunção carnal. Portanto, deixar instaurar a relação processual, levando este jovem ao banco dos réus por crime tão grave, apenas e tão somente para se apegar à execrável rigidez da forma, instruindo-se o processo integralmente para só então ser proferida a sentença é algo que no século 21 soa muito mal!

A interpretação literal na espécie conduzirá certamente a uma injustiça, pois não tem sentido impor ao acusado todo o drama do processo, com o percurso de todo o seu labirinto, descrito nas páginas imortais de Kafka, quando a primeira vista resulta convicção de inépcia da denúncia.

O Código de Processo Civil, que regula procedimento aplicável, na sua maioria, a bens disponíveis e de inferior quilate, tem remédio para pôr cobro, célere, à demanda temerária. Já no Código de Processo Penal, que tutela direitos humanos bem mais sagrados, o Legislador omitiu-se na construção de meios legais voltados para o mesmo objetivo.

Não será a imprevidência do Legislador que manietará o Juiz, condenando-o a apodrecer sob as torturantes amarras instituídas pelos romanos e bem traduzida no brocardo – summun jus, summa injuria -. Ao Juiz o destino contemporâneo impôs tarefa bem maior e mais árdua, descrita pelo magnífico mestre Dalmo d´Abreu Dallari com as seguintes palavras: "O ativismo político no sentido de garantir a aplicação do direito em qualquer circunstância, seguindo princípios, diretrizes e normas da Constituição, é um dever do Juiz". (ob. Cit. P. 7).

Por tudo que apreciei e ponderei nestes autos, estou PLENAMENTE CONVENCIDO da ausência do núcleo descrito no injusto do art. 213 do CP, ou seja, "constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça" (grifei), ainda que potencializada a conduta pela presunção instituída na alínea "a" do art. 224 do CP, conclusão a que se chega graças à postura dissoluta da vítima, sua aquiescência com o ato e, derradeiramente a postura descrita no laudo de fl. 51, que atesta - já tive oportunidade de me manifestar nesta decisão a respeito -, ter a mesma conduta inconciliável com 13 anos de idade; fato inclusive atestado pelo acusado as fl. 13.

Isto posto, REJEITO A DENÚNCIA, por entender que o acusado não manteve conjunção carnal com a vítima mediante violência, nem mesmo a presumida, o que faço com base no inciso I, do art. 43 do Código de Processo Penal.

Publicada esta em mãos do Sr. Escrivão, registre-se e sejam as partes intimadas.

P. R. I. C

Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 2002.

Alexandre Abrahão Dias Teixeira

Juiz de Direito

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Sobre o autor
Alexandre Abrahão Dias Teixeira

juiz de Direito no Rio de Janeiro, palestrante da EMERJ, diretor do IMB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Alexandre Abrahão Dias. Estupro: afastamento da presunção de violência em conjunção carnal com menor de 14 anos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/16560. Acesso em: 7 mai. 2024.

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