Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/9190
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A polêmica (i)legalidade do aborto de feto anencéfálico

A polêmica (i)legalidade do aborto de feto anencéfálico

Publicado em . Elaborado em .

A compreensão da natureza do feto anencéfalo depende do exame profundo, sério e conseqüente de questões morais (especialmente as bioéticas) e de técnicas de medicina às quais a comunidade científica brasileira ainda não dedicou a atenção merecida.

1. Introdução: uma decisão polêmica

Na tarde de 1° de julho de 2004, o Ministro Marco Aurélio de Mello proferiu uma das decisões mais polêmicas na história recente do Supremo Tribunal Federal, concedendo medida liminar em favor da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, para reconhecer "o direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto" e para determinar "o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado" nos casos em que a gestante estivesse respondendo a processo penal pela prática de aborto, tipificado como crime pelo artigo 124 do Código Penal brasileiro [01].

A medida liminar vigorou por quase quatro meses. Na tarde do dia 20 de outubro de 2004, o Pleno do STF decidiu, por maioria, revogar parte da liminar concedida, para deixar de reconhecer o direito da gestante à interrupção da gravidez, mantendo a parte da liminar que determinou a suspensão dos processos criminais em curso. Foram vencidos os Ministros Marco Aurélio (o próprio prolator da decisão que concedeu a liminar), Carlos Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence, que referendavam integralmente a decisão [02].

Na época da polêmica, a imprensa chegou a noticiar um aberto atrito entre o Ministro Marco Aurélio, relator que concedera a liminar, e o Ministro Joaquim Barbosa, recém-empossado, que criticou publicamente o colega por ousar decidir sozinho sobre uma questão extremamente polêmica.

O presente trabalho pretende apresentar as linhas gerais do debate no Brasil, explorando a dimensão metodologicamente útil da questão sob o ângulo do Direito Médico, apresentando elementos médicos e jurídicos que se interpenetram no debate do tema, sem deixar de considerar o enfoque bioético como substrato da discussão.


2. O aborto: uma questão moral difícil

O debate jurídico sobre a caracterização da "antecipação terapêutica do parto do feto anencefálico" como crime ou, dito de forma mais direta, a retirada do feto anencéfalo do ventre materno, pode conduzir a discussão sobre o aborto para o campo estritamente jurídico e, dentro desta seara, o debate pode se restringir ao Direito Penal.

Contudo, uma profunda compreensão do problema não pode prescindir da consideração de que se trata de uma questão fundamentalmente moral, ainda que seja necessário oferecer respostas ao debate nos campos estritamente jurídico e médico, os quais, cedo ou tarde, precisam se afastar da reflexão moral para oferecer diretrizes taxativas, que sirvam de referencial à conduta dos profissionais em particular e da sociedade em geral.

A propósito do tema, analisando os reflexos da "Lei Veil", que descriminalizou o aborto praticado na França em meio médico até a décima semana de gestação [03] [04], MONIQUE CANTO-SPERBER adverte [05]:

Esforçar-se para apagar a dimensão moral do problema do aborto referindo-se a uma disposição jurídica ou a um fato biológico só faz demonstrar uma falta de percepção do que está em jogo moralmente. Nenhuma tese pretensamente científica ou ontológica relativa ao estatuto do feto (por exemplo: o feto é uma pessoa desde a concepção ou então ele é uma pessoa quando nasce) pode dispensar uma reflexão moral, pois tais teses, além de indemonstráveis, não têm verdadeiro alcance quanto ao estatuto da decisão moral de abortar. Por hipótese, imaginemos que o feto é uma "pessoa" e que ele é portador de interesses ou de direitos propriamente humanos. Imaginemos até mesmo, em uma fantasmagoria científica, que há provas que estabelecem esse ponto. Daí não decorreria de modo algum que o aborto deva ser proibido moralmente. Pode-se imaginar uma situação extrema na qual haveria conflito de interesses vitais, na qual o desenvolvimento dos interesses de uma pessoa, o feto, se faria à custa dos interesses fundamentais de uma outra pessoa, a mãe. Esta poderia admitir sem reservas que matar um embrião é um mal, que em outras circunstâncias ela não faria isso, mas que naquele momento ela não pode agir de outro modo. Esse debate interior que conduz à decisão ou à recusa de abortar é um debate propriamente moral, que não podemos descartar com base em pretensas certezas ontológicas, ou em um estado de fato jurídico, porque mesmo na hipótese de que se tivesse provado que desde o primeiro dia de gestação o feto é um ser humano o lugar da decisão moral permaneceria igualmente grande.

Uma primeira dificuldade moral a ser enfrentada na admissão do aborto é o fato de a fecundação não ser atividade de um só ser humano: geralmente, se trata de uma decisão livre e consciente de um homem e de uma mulher. Nesta ordem de idéias, é razoável presumir-se que, a princípio, uma decisão de duas pessoas não pode ser revogada por uma só delas: seria necessário o acordo de pai e mãe sobre a interrupção da gravidez.

Claro que esta questão não se aplicaria às hipóteses de "aborto sentimental", ou seja, decorrente de estupro (ou de atentado violento ao pudor, segundo analogia in bonam partem amplamente aceita no Brasil) e de aborto de feto gerado por inseminação artificial heteróloga, em que o doador do sêmem é anônimo.

Uma segunda dificuldade moral seria a definição do espectro de hipóteses em que o aborto poderia ser aceito, admitindo-se, para argumentar, que o aborto seja aceito em alguma hipótese.

Admitir o aborto em alguma hipótese é transigir com o argumento, muitas vezes invocado, da sacralidade da vida, que baseia, sobretudo, a posição dos interlocutores de confissão católica.

Esta transigência leva ao problema da "ladeira escorregadia", ou, no linguajar jusfilosófico, do "regresso ao infinito": a transigência com alguma hipótese de aborto (como a de feto anencéfalo) poderia descambar para a aceitação generalizada do aborto, passando pelo aborto eugênico (que levaria à eliminação de fetos portadores da síndrome de Down, por exemplo) até chegar ao aborto banal que visa a eliminar as inconveniências de uma gravidez indesejada.

Na mesma linha se insere o problema da "potencialidade", ou seja, o de que o feto é potencialmente um ser humano adulto (reúne as condições genéticas para tanto) [06].

Chega-se, a esta altura, à intrincada discussão sobre o estatuto do feto como ser humano, onde se destacam as visões concepcional e evolutiva.

Segundo a visão concepcional, o ser humano existe como pessoa a partir do momento da concepção, sendo desinfluente o fato de que o zigoto ainda precise desenvolver-se para atingir a forma humana.

Segundo a visão evolutiva, o ser humano só surgiria com o aparecimento de alguma expressão morfológica ou evolutiva do embrião, ou em um momento específico da gestação (aqui, há uma ampla gama de possibilidades de definição do marco-zero da "humanidade": nidação, individuação, aparição da crista neural, mobilidade fetal, viabilidade extra-uterina, o nascimento e a aquisição de competência racional na infância).

Para DÉBORA DINIZ [07], pessoa é tudo aquilo que não é coisa e, portanto, capaz de viver, extraindo-se daí a conclusão de que, nos casos de anomalia fetal incompatível com a vida, o feto anencéfalo não seria uma pessoa. O raciocínio segue a seguinte cadência: "somente alguém vivo ou potencialmente vivo é pessoa e tem direito à vida [e sendo assim, o] feto inviável não tem potencialidade de viver [logo, o] feto inviável não é pessoa e não tem direito à vida" [08]. Daí sua conclusão no sentido de que, no aborto do feto anencéfalo, não haveria propriamente um aborto, mas apenas um procedimento médico comum, nominado como "antecipação terapêutica do parto".

Um terceiro problema, suscitado pela questão sob estudo, serve como uma espécie de atenuante moral para o aborto, especificamente no caso do aborto de anencéfalos: a inevitabilidade da morte. Como o feto anencéfalo, quando muito, terá algumas horas de vida, não haveria qualquer utilidade em protrair-se o momento de sua morte, fazendo com que a mãe carregasse um filho condenado ao óbito iminente.

É interessante observar que a crônica forense registra caso de habeas corpus impetrado em favor de gestante onde seu advogado, na petição em que pedia o salvo-conduto para sua cliente, argumentava que, enquanto as mães de crianças normais compravam roupinhas para o enxoval, aquela gestante comprava um "caixãozinho" para o funeral [09].

Abstraindo-se da condição psicológica da mãe na gestação de anencéfalo, que é elemento complicador do debate a ser abordado no curso desta exposição, sem dificuldade se percebe a inconsistência do argumento da "inevitabilidade", tanto sob o prisma da lógica quanto sob o prisma da ética.

Sob o ponto de vista da lógica, a falha reside em que todos os seres humanos estão, inevitavelmente, condenados à morte (donde se conclui que este argumento não pode servir como elemento de discrímen da situação do anencéfalo) e em que não se sabe exatamente quanto tempo um ser humano viverá (donde se conclui que a iminência da morte do anencéfalo não se põe em contraste com a longevidade dos fetos normais senão por mera especulação, baseada na expectativa de vida).

Sob o ponto de vista da ética, a dificuldade está em que não se pode aquilatar quanto vale um instante da vida de um ser humano, ou, dito de forma mais clara, quanto vale a chance de viver um instante.

O noticiário do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo registra que, em reunião do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) na qual o tema foi debatido, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil compareceu acompanhada de um casal de confissão católica que decidiu manter a gravidez até o fim. Na ocasião, "Em depoimento emocionado, a esposa afirmou que os vinte minutos de vida de seu bebê valeram o sacrifício. ‘Resistimos a todo o sofrimento e não nos arrependemos, pois estamos em paz com a nossa consciência’" [10].

Pode-se ir mais longe a partir do depoimento deste casal e questionar: será que o destino de um ser humano pode ser decidido apenas por seus pais, como se a questão estivesse circunscrita à intimidade da família? Ou será que a morte de um ser humano não pode ser uma decisão de ninguém, nem mesmo de quem contribuiu para sua concepção?

É necessário, a esta altura, fazer o registro de que não se comunga, de modo algum, com a idéia de que o debate teria ganhado conotação marcadamente religiosa, conforme as críticas atribuídas pela mídia ao professor Luís Roberto Barroso ("Num estado democrático, num estado laico, as crenças religiosas não podem subordinar a interpretação do Direito") e ao rabino Henry Sobel ("esta decisão não cabe a nenhum tribunal. Acredito que a Igreja Católica tenha seus interesses e devemos respeitar seus princípios, mas ela não tem o monopólio da verdade quando se trata do sofrimento de uma mãe"), na ocasião em que o Tribunal Pleno revogou a liminar do Ministro Marco Aurélio, para retirar a generalizada autorização judicial de aborto dos fetos anencéfalos [11].

Do ponto de vista jurídico, vale o breve registro de que a diferença de um minuto de vida é relevantíssima. Apenas para mencionar um exemplo do direito sucessório, cabe lembrar que é um instante de vida (aferido, segundo os métodos médico-legais, pela constatação de que o ser nascido chegou a respirar, encontrando-se ar em seus pulmões) é suficiente para que o nascido vivo tenha sido capaz de receber heranças e de transmitir bens a título universal.

Em contraponto às refutações que aqui se desenvolvem, é pertinente observar que MARLENE BRAZ adota postura amplamente liberal em relação ao aborto, ao concluir sua resenha sobre a obra "Aborto por anomalia fetal", acima citada (esta obra, aliás, serve como uma das principais referências bibliográficas da argumentação da petição inicial da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 54-8/DF, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde perante o Supremo Tribunal Federal, que certamente foi o precedente judicial que fomentou a polêmica no Brasil) [12] [13]:

Isto posto resta comentar um tópico aqui abordado e que merece uma reflexão melhor dos autores. Trata-se exatamente de um certa incongruência entre o nome do livro: Aborto por Anomalia Fetal e o subtítulo: Antecipação Terapêutica de Parto. Esta incongruência fica mais evidente ainda quando eles propugnam a inclusão de mais um item na Lei que regulamenta a matéria sobre a permissão do aborto. Ora, se não é aborto e sim um procedimento médico, não haveria por que incluí-lo nesta exceção dos abortos permitidos por Lei. A proposta mais correta seria considerar a possibilidade de uma discussão com os médicos para que restasse claro que é uma indicação puramente médica, como ocorre nos casos em que o feto já se encontra morto dentro do útero, onde a antecipação do parto é realizada e recomendada sem nunca ter passado pela juridicidade do ato. A questão, parece, deve ser focalizada no âmbito da Medicina, porque, de fato, fetos anencéfalos não sobrevivem, sequer a maioria deles nasce respirando ou permanece respirando sozinho. A tecnologia utilizada nestes casos dá uma sobrevida pequena, de no máximo três semanas, porque não se pode viver só com o tronco cerebral como é o caso dos anencéfalos.

Com isto não se quer dizer que a postura deva ser contrária ao proposto e mais, os bioeticistas deste país devem ter uma posição mais firme a respeito da discriminalização [sic] do aborto no Brasil em outras circunstâncias que não só a defendida pelos autores, porque se deve conceder às pessoas o direito de escolher se querem ou não terem filhos. Só se pode falar em autonomia e respeito à dignidade da pessoa humana sob o ponto de vista moral se a opção for garantida. Se não há opção, não há escolha e, portanto, não há o exercício da autonomia. A sociedade brasileira tem de avançar no sentido de garantir mais liberdade neste campo, sem o que fica difícil falarmos em Direitos Humanos num país que realiza clandestinamente algo em torno de 1.200 mil abortos por ano e que leva à morte milhares de mulheres pela precariedade com que os fazem.


3. O aborto no Direito Penal brasileiro

Segundo o Código Penal, o aborto é crime, exceto nas seguintes hipóteses [14]: (i) se não há outro meio de salvar a vida da gestante e (ii) em caso de estupro (e, conforme analogia in bonam partem amplamente aceita no direito brasileiro, também em casos de atentado violento ao pudor).

A interrupção terapêutica da gestação, com a finalidade de salvar a vida da mãe, recebe a denominação legal de "aborto necessário". Para o desenvolvimento deste tópico do trabalho, basta frisar que as palavras não admitem interpretação ampliativa ou concepções subjetivistas: só se exclui o crime na hipótese em que o bem jurídico a ser preservado, isto é, o valor que se pretende proteger, é a vida da mãe.

A doutrina penalista reconhece, generalizadamente, que a causa excludente de ilicitude prevista no inciso I do artigo 128 do Código Penal constitui mera especificação de causa excludente de ilicitude genericamente prevista no artigo 24 do Código Penal [15] (o "estado de necessidade").

Sem aprofundar a discussão na seara do Direito Penal, o que não caberia nos limites do presente estudo, pode-se questionar se, realmente, o legislador pretendeu reforçar uma excludente de ilicitude que já era genericamente prevista ou se pretendeu restringir os limites de sua aplicação na hipótese do aborto, de modo que a gestante não pudesse se valer, de forma alguma, da excludente genérica do "estado de necessidade" para a proteção de outros bens jurídicos que lhe sejam caros, mas que não se sobressaem perante a vida do nascituro, como, por exemplo, sua honra objetiva (ou seja, a sua reputação) diante de uma gravidez na juventude (bastando lembrar, para tornar mais claro o exemplo, que uma jovem mãe solteira é freqüentemente vítima de preconceito, numa sociedade brasileira que ainda não se desvencilhou dos padrões patriarcais em que a inconseqüência de uma gravidez indesejada gera mais críticas depreciativas do que lições construtivas, quando se trata de jovens algo experientes em sexo, mas muito inexperientes na vida.

Como se adiantou acima, a interrupção artificial da gestação é permitida, também, nas hipóteses de estupro e atentado violento ao pudor, casos que costumam ser referidos pela doutrina penalista com a expressão "aborto sentimental".

Estupro é crime previsto no artigo 213 do Código Penal [16], consistente na prática de conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça. O sujeito ativo (isto é, o agressor) só pode ser um homem e o sujeito passivo (ou seja, a vítima) só pode ser uma mulher. Sua consumação se dá com a penetração do pênis na vagina, ainda que parcialmente, sendo irrelevante que tenha havido ejaculação (circunstância que só será relevante, obviamente, para a aplicação da excludente do crime de aborto).

Atentado Violento ao Pudor é crime previsto no artigo 214 do Código Penal [17], consistente na prática de qualquer ato libidinoso diverso da conjunção carnal (sendo certo que, segundo a doutrina penalista, a noção de ato libidinoso abrange um amplo espectro de condutas, que vão do beijo lascivo até o sexo anal) mediante violência ou grave ameaça (sendo possível, em alguns casos, que daí resulte uma gravidez).

Vale notar que o legislador não pretendeu estender a exclusão de ilicitude do aborto a todas as hipóteses de crimes sexuais de que a mulher seja vítima. Poderia tê-lo feito em 1940, quando da edição da vigente Parte Especial do Código Penal [18], bastando para tanto que houvesse feito referência aos crimes contra a liberdade sexual, ao invés de só se referir ao estupro (ou seja, ao crime sexual cometido mediante violência ou grave ameaça, o que, para ser coerente com a idéia subjacente à norma descriminante, deve abranger também o atentado violento ao pudor que gere uma gravidez, no qual há ejaculação sem penetração, onde a mobilidade dos espermatozóides os conduz ao aparelho reprodutor feminino).

Ficam excluídas, portanto, hipóteses recentes de crimes sexuais, como o assédio sexual (artigo 216-A do Código Penal, com redação dada pela Lei n° 10.224/2001) e hipóteses antigas, como a posse sexual mediante fraude (artigo 215 do Código Penal), o atentado ao pudor mediante fraude (artigo 216 do Código Penal) – e, ainda, a sedução e o rapto, crimes que existiram até a edição da Lei n° 11.106/2005 (a qual em boa hora revogou estes crimes impossíveis na sociedade brasileira atual, por pressuporem, de forma novelesca, donzelas indefesas cooptadas por parceiros sexuais com promessas de amor).

É interessante observar, sem, contudo, aplaudir, que a excludente de ilicitude não socorre, também, as mulheres vendidas como prostitutas em países estrangeiros ou mesmo em território nacional (ou seja, vítimas do crime de tráfico internacional de pessoas e do crime de tráfico interno de pessoas, previstos nos artigos 231 e 231-A do Código Penal, com redação dada pela Lei n° 11.106/2005), muito embora não seja difícil prever que mulheres nesta situação são sérias candidatas a uma gestação em condições geralmente sub-humanas, se é que lhes será permitido por seus "donos" levar a termo a gestação.

A ressalva feita acima, quanto à restritividade da exclusão de ilicitude do aborto praticado pela vítima de crime sexual, mostra uma certa coerência (o que não significa que se confunda coerência e acerto) do legislador em só admitir que a mulher interrompa a gravidez em condições em que não houve o concurso de sua vontade, por menor que fosse, no ato sexual que originou a gestação que ela agora pretenda interromper.

Mas esta aparente coerência pode ser posta em xeque se for analisada a enorme abertura do arco de bens jurídicos que o legislador deixou à mostra com as duas hipóteses de admissão do aborto: a vida e a liberdade sexual da gestante.

Não se pode esquecer que crimes sexuais violentos são evidentemente traumáticos, sendo razoável admitir-se o raciocínio de que o filho, como fruto de um momento traumático, se tornaria a perpetuação deste momento para a mãe, o que corresponderia a uma tortura psicológica vitalícia.

Mas, por outro lado, não se pode deixar de reconhecer que entre a preservação da vida e a preservação da liberdade sexual (ou, como se queira, da integridade psíquica) da gestante frente à vida do filho, há uma grande distância.

Se o observador for atento à advertência de MONIQUE CANTO-SPERBER, reproduzida no início deste trabalho, e puser em questão até mesmo o que já foi consagrado na lei brasileira, notará que a opção pela vida da mãe frente à vida do nascituro, no caso do "aborto necessário", está longe de ser óbvia.

Não se pode esquecer a máxima, freqüentemente repetida no Direito de Família, de que "l’enfant n’pas solicité la existence", ou seja, a criança não pediu para nascer. A gestação, ainda que resulte em risco de vida, foi decidida livre e conscientemente pela gestante, mas não pelo nascituro.

Seria o caso de perguntar, então, se é moralmente aceitável, diante de uma situação originada de uma decisão da mãe, que se privilegie a vida de quem tinha alguma escolha em detrimento daquele que nada escolheu?

Para tornar o questionamento mais concreto, pode-se cambiar os elementos do raciocínio, mantendo-lhe a forma: não poderia a mãe, de alguma forma, ter sua responsabilidade criminal equiparada à do garante no Direito Penal (ou seja, da pessoa que não escolheu a situação de risco, mas de toda forma levou a outra pessoa àquela situação e, portanto, tem o dever de tentar salvá-la – como ocorre com os clássicos exemplos do guia alpino que abandona os turistas em uma avalanche ou da mãe que se acovarda diante do mar, vendo seu filho morrer afogado)?

Como se vê, se o observador for rigoroso em seu exame dos fundamentos éticos e lógicos do "aborto necessário" e do "aborto sentimental", encontrará mais perplexidades do que certezas diante do sistema penal brasileiro.


4. Problemas médicos suscitados em torno da gestação do feto anencefálico

LUÍS ROBERTO BARROSO [19] procura definir a anencefalia e explicar as razões éticas para a "antecipação terapêutica do parto" antes de relacionar as razões pelas quais a gravidez de um feto anencefálico seria muito mais arriscada do que uma gravidez normal, o que colocaria a vida da mãe (ou, ao menos, sua saúde) em risco.

A anencefalia é conceituada [20] como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico.

Tal situação é incompatível com a vida extra-uterina, sendo fatal em todos os casos. Embora haja relatos esparsos sobre fetos anencefálicos que sobreviveram alguns dias fora do útero materno, o prognóstico é de sobrevida de apenas algumas horas após o parto, sendo que aproximadamente 65% (sessenta e cinco por cento) dos fetos morrem ainda no período intra-uterino [21].

Seria possível identificar o feto anencefálico por meio de uma simples ecografia, com confortável certeza médica.

O ponto alto da argumentação médica apresentada é o de que não há nada que a ciência médica possa fazer quanto ao feto inviável, mas há muito que se possa fazer pelo quadro clínico da gestante, dado que a permanência do feto anencefálico, considerando, sobretudo, os altos índices de óbito intra-uterino, é potencialmente perigosa para a saúde e até para a vida da gestante.

Para ilustrar esta afirmação, são relacionadas diversas complicações no processo gestacional, durante e após a gravidez (observando-se que são listados não apenas argumentos médicos, mas também argumentos sobre inconvenientes práticos) [22]:

a) a manutenção da gestação de feto anencefálico tende a se prolongar além de 40 (quarenta) semanas;

b) sua associação com polihidrâminio (aumento do volume de líquido amniótico) é muito freqüente;

c) associação com doença hipertensiva específica da gestação (DHEG);

d) associação com vasculopatia periférica de estase;

e) alterações do comportamento e psicológicas de grande monta para a gestante;

f) dificuldades obstétricas e complicações no desfecho do parto de anencéfalos de termo;

g) necessidade de apoio psicoterápico no pós-parto e no puerpério;

h) necessidade de registro de nascimento e sepultamento desses recém-nascidos;

i) necessidade de bloqueio de lactação (interromper a amamentação);

j) puerpério com maior incidência de hemorragias maternas por falta de contratilidade uterina;

k) maior incidência de infecções pós-cirúrgicas devido às manobras obstetrícias do parto de termo.

É interessante observar que a argumentação médica articulada por LUÍS ROBERTO BARROSO como base de sua tese jurídica não apresenta dados estatísticos que permitam concluir que, em número realmente significativo de casos, se tenha verificado efetivos danos à saúde ou à vida da gestante. E é de rigor observar que a maioria das complicações médicas descritas não são passíveis de ocorrer apenas na gestação de fetos anencefálicos ou não representam, em si, riscos à mãe (como é o caso da necessidade de interrupção da lactação).

Estas circunstâncias esvaziam significativamente a consistência de seus argumentos, ao menos do ponto de vista da ciência médica: que há maiores riscos e inconvenientes na gestação do feto anencefálico, ninguém duvida.

Mas daí a se extrair a conclusão de que há potencialidade de dano à saúde e à vida da gestante (pondo de lado, por enquanto, o aspecto emocional), vai uma grande distância.

ANA CLELIA DE FREITAS, ANDRÉ MARTINS LARA, FERNANDO RIGOBELLO WILHELMS e FABIO AGNE FAYET [23] também sustentam a "antecipação terapêutica do parto" do anencéfalo, situando a solução do problema na definição do conceito de morte, de modo a reconhecer que, no caso do feto anencefálico, pode-se reconhecer a morte clínica, mas não se pode identificar a morte cerebral:

Para a Medicina, existem dois processos que evidenciam o momento morte: a morte cerebral e a morte clínica. A morte cerebral é a parada total e irreversível das funções encefálicas, em conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida, mesmo que o tronco cerebral esteja temporariamente funcionante. A morte clínica (ou biológica) é a parada irreversível das funções cardio-respiratórias, com parada cardíaca e conseqüente morte cerebral, por falta de irrigação sanguínea, levando a posterior necrose celular. Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), os exames complementares a serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: ausência de atividade elétrica cerebral, ou ausência de atividade metabólica cerebral, ou ausência de perfusão sanguínea cerebral. (Conselho Federal de Medicina. Resolução n° 1.480, de 08 de Agosto de 1997). Segundo o CFM, em sua Resolução n° 1.752/04, os anencéfalos são natimortos cerebrais, e por não possuírem o córtex, mas apenas o tronco encefálico, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica.

E sendo o anencéfalo o resultado de um processo irreversível, de causa conhecida e sem qualquer possibilidade de sobrevida, por não possuir a parte vital do cérebro, é considerado desde o útero um feto morto cerebral.

Partindo destes critérios diagnósticos, não há que se falar em aborto, pois o aborto é a morte do feto causada pela interrupção da gravidez. Se o feto já estava morto, não é lesado o interesse protegido pela lei penal. Resta, portanto, atípica a conduta da interrupção da gravidez do anencéfalo.

Nesta argumentação, os autores constroem com certa dose de arbítrio uma analogia entre a formação com ausência de cérebro e a morte cerebral, tomando por empréstimo o conceito de morte cerebral utilizado no caput do artigo 3° da Lei de Transplante de Órgãos e Tecidos (Lei n° 9.434/97) [24].

Ocorre que o contexto é diverso e diversa é a sua inspiração: uma coisa é utilizar-se a idéia de morte encefálica para permitir a extração de órgãos, tecidos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento; outra coisa, bem diversa, é manejar-se este conceito para sustentar que o feto anencéfalo não merece qualquer proteção jurídica. Cambiar estas idéias equivale a justificar o egoísmo com o altruísmo.

Aliás, é interessante observar que a própria Lei de Transplantes de Órgãos e Tecidos, embora nem de longe trate do problema do feto anencefálico, tem o cuidado de privilegiar a proteção do feto em relação à liberdade de disposição de órgãos e tecidos pela mãe, ao dispor no § 7° do seu artigo 9° que "É vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido para ser utilizado em transplante de medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde ou ao feto.".

Vale insistir neste ponto: parece haver sedutora coerência no raciocínio de que seria admissível privilegiar a saúde da gestante em detrimento da vida do feto anencefálico porque, neste caso, não se negaria que se trate de pessoa: apenas se ajuntaria que se trata de pessoa morta. Mas este raciocínio não é imune a críticas igualmente sedutoras, como a apresentada por VICTOR SANTOS QUEIROZ [25], que parecem superar com vantagem a tese rival:

Mas o que resta evidente – repita-se à exaustão –, é que o conceito de morte encefálica inserto na Lei n° 9.434/97 pressupõe ter havido vida, raciocínio este que é totalmente incompatível com a idéia de supressão do direito à sobrevivência, intra ou extra uterina.

Não bastasse o fato de a morte encefálica ter sido adotada no Brasil apenas para fins de viabilização de realização de transplante de órgãos – pressupondo a prévia existência de vida, portanto -, uma apurada pesquisa relativamente aos procedimentos com vistas à sua caracterização revela que não é viável determiná-la no que concerne aos nascituros.

O Conselho Federal de Medicina, em consulta feita pelo Ministério Público do Estado do Paraná acerca da viabilidade do uso de órgãos de anencéfalos para transplante, atestou, em 9 de maio de 2003, que, apesar de se estar diante de seres que não têm condições de sobrevida e que "não têm uma vida de relação com o mundo exterior", não se lhes pode aplicar "os critérios dos exames complementares de diagnóstico de morte encefálica, constantes nos artigos 6° e 7° da resolução supracitada, sejam os métodos gráficos (eletroencefalograma), sejam os métodos circulatórios, pela ausência do neocórtex, anormalidades da rede vascular cerebral e ausência da calota craniana" (sic).

A razão de ser da inaplicabilidade do conceito de morte encefálica aos fetos anencefálicos, segundo o Conselho Federal de Medicina, está em que "a morte não é um evento, mas sim um processo. O conceito de morte é uma convenção que considera um determinado ponto deste processo". Assim, como o que se pretende com o conceito de morte encefálica é tão-somente determinar um momento a partir do qual é segura a retirada de órgãos do corpo humano para fins de transplante, não se pode afirmar que mesmo a partir dele não haja vida, ainda que minguante.

Interessante, ainda, verificar que o mesmo parecer do Conselho Federal de Medicina reconhece que "os anencéfalos morrem clinicamente durante a primeira semana de vida", de molde a demonstrar de forma definitiva que o conceito de morte encefálica dentro do útero materno não se lhes aplica. Repita-se: se os nascituros anencefálicos falecem logo após o nascimento, é lógico que isto quer dizer que nasceram com vida.

THOMAZ RAFAEL GOLLOP [26] toma posição eqüidistante no tema, se colocando favorável à liberdade de escolha do casal quanto a levar adiante a gestação de feto anencefálico. No contexto de sua argumentação, o professor paulista observa a franca evolução do diagnóstico pré-natal de anomalias fetais, que teria tornado o feto um paciente, sendo certo que é tarefa do médico assegurar a este paciente qualidade de vida.

Aqui, mais uma vez, os argumentos em prol do aborto não são convincentes. Dizer que a medicina evoluiu e que é possível diagnosticar com segurança doenças congênitas, inclusive as sem tratamento, não resolve o – grave – problema de saber se o médico deve eliminar as doenças... eliminando o paciente! E transferir ao casal o poder desta decisão, como se se tratasse de uma questão de preferências pessoais, parece equivaler a um incompreensível amesquinhamento deste grave problema bioético.

Sem se concentrarem na discussão sob exame, por trabalharem apenas no contexto dos transplantes de tecidos de anencéfalos, MARCO SEGRE e WILLIAM SAAD HOSSNE suscitam outro aspecto médico a considerar: a possibilidade de que o feto anencefálico, devido às malformações, possa estar sofrendo enquanto é mantido vivo [27].

Tomar este aspecto como argumento em prol do aborto, porém, parece inaceitável: praticar uma espécie de eutanásia em quem não pode se manifestar sobre a sua vontade de viver é um autêntico homicídio.

Mesmo diante das inconsistências que se acredita haverem sido apontadas nas posições em prol do aborto, é de rigor reconhecer que não é insustentável a proposta de "interrupção terapêutica do parto".

Evidência disso é que GENIVAL VELOSO DE FRANÇA [28], em texto destinado a criticar precisamente a banalização do aborto, conclui favoravelmente ao aborto de fetos anencéfalos: "alguns casos isolados de abortamento de fetos anencéfalos não constituem modalidade de aborto eugênico, mas, tão-só, uma forma de intervenção em uma vida cientificamente incapaz de existir por si só".

Seja como for, merecem reflexão (se aplicáveis ou não ao caso sob estudo, será definido no curso da exposição) as palavras de JÉROME LEJEUNE, citado pelo próprio GENIVAL VELOSO DE FRANÇA [29]:

O aborto resolve o problema dos pais, não o dos filhos. É ingênuo acreditar que os pais defendem o aborto porque o feto tem um problema irreversível. Na verdade, essas pessoas se servem das doenças detectadas pelos modernos exames pré-natais para que tenham o direito de se ver livres de uma criança com malformação, para não terem problema. É uma lógica curiosa. Quando eu era jovem, era moda dizer que aquele que ama castiga. Nunca acreditei nessa história. Agora, insistem numa nova tese: quem ama mata.


5. Fundamentos jurídicos a favor do aborto do feto anencefálico

Os fundamentos jurídicos a favor do aborto do feto anencefálico são muito bem sintetizados e expostos por LUÍS ROBERTO BARROSO nos seguintes pontos: (i) dignidade da pessoa humana – analogia à tortura; (ii) legalidade, liberdade e autonomia da vontade e (iii) direito à saúde.

A violação à dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da República Federativa do Brasil (artigo 1°, III, da Constituição da República), consistiria no fato de se impor à mulher que leve adiante a gestação de um feto que certamente morrerá, causando-lhe dor, angústia e frustração. Haveria potencial ameaça à integridade física (pelos fatores de risco da gravidez de feto anencéfalo) e à integridade psíquica (pela convivência com a mórbida perspectiva do nascituro), sendo certo que "A convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica", ao passo que o artigo 5°, III, da Constituição da República veda qualquer forma de tortura.

A legalidade, liberdade e autonomia da vontade formam um argumento monolítico: como a legalidade, sob o ponto de vista do particular, implica na admissão de fazer tudo o que não seja proibido em lei e como a proibição do aborto do anencéfalo "não é a ordem jurídica vigente no Brasil, mas outro tipo de consideração", deve ser respeitada a liberdade de escolha e a autonomia da vontade da gestante.

E, para afastar objeções ao pleno exercício desta liberdade, o constitucionalista faz uma colocação incisiva: a restrição à autonomia da vontade da gestante não se justificaria sequer sob o prisma de uma ponderação de valores, porque não há bens jurídicos em conflito (afinal, como o feto inviável não é pessoa, não é depositário de bens jurídicos tuteláveis).

Mas a intuição de advogado antecipa a resistência do interlocutor quanto à inaplicabilidade da técnica da ponderação de bens e interesses, largamente utilizada na moderna dogmática constitucional.

Daí a apresentação pelo constitucionalista carioca de uma ponderação na qual, realmente, não há como não se reconhecer a primazia dos interesses da gestante: "nada impede que se opte por colocar a questão em termos de ponderação de bens ou valores contrapostos: de um lado os direitos fundamentais da mãe e, de outro, a convicção religiosa ou filosófica que defenda a obrigatoriedade de levar a termo a gravidez, mesmo em se tratando de feto inviável".

E percebendo que a válvula de escape da tensão argumentativa de sua proposta de "ponderação" não mostra consistência, o professor arremata: "A ponderação, no entanto, é técnica de decisão que se utiliza quando há colisão de princípios ou de direitos fundamentais, funcionando como uma alternativa à técnica tradicional da subsunção. Não se vislumbra colisão no caso aqui estudado, mas sim uma situação de não subsunção ao Código Penal, vale dizer, de atipicidade da conduta.".

Curioso notar que precisamente esta última colocação tangenciou o ponto no qual o Supremo Tribunal Federal se basearia para revogar a liminar concedida pelo Ministro Marco Aurélio: o fato de se estar criando, por via reflexa, uma nova hipótese de exclusão do crime de aborto (o que, vale notar, traz logicamente implícita a rejeição, pelo STF, do argumento de que a anencefalia geraria risco à vida da gestante).

O direito à saúde da gestante seria resguardado pelo aborto do feto anencéfalo pelos mesmos motivos pelos quais se argumentou que haveria violação à sua dignidade pessoal: a lesão à integridade física e psíquica. Como o conceito de saúde formulado pela Organização Mundial da Saúde engloba o completo bem-estar físico, mental e social, negar à gestante o aborto do feto anencéfalo implicaria em negar-lhe o acesso à saúde.

Em resumo: toda a argumentação jurídica em prol do aborto do feto anencéfalo se baseia na premissa de que o anencéfalo não é (e nunca será) pessoa; desta forma, não há quem rivalize com os interesses da gestante e, postos em interesses da gestante em situação isolada, recorre-se facilmente a todos os fundamentos do bem-estar individual para justificar o aborto.

Cabe observar que a posição de LUÍS ROBERTO BARROSO está longe ser isolada: apenas para citar um exemplo significativo, MIGUEL KFOURI NETO, um reconhecido especialista na responsabilidade civil médica, foi o primeiro juiz a autorizar o aborto de feto anencefálico, em Londrina – PR [30], além de constatar-se, com alguma freqüência, a concessão de salvo-condutos para abortos de fetos anencefálicos.

Em 16 de agosto de 2004, apoiando a iniciativa de que participou o constitucionalista carioca, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil se manifestou publicamente sobre o tema, aprovando por maioria de votos, o relatório e voto do Conselheiro Federal ARX TOURINHO.

O voto reúne de modo muito interessante aspectos médicos, jurídicos e sociológicos ligados ao tema, razão pela qual, sem embargo da eventual discordância com o resultado, vale a pena reproduzir breve trecho [31]:

12. A asserção do clássico Nélson Hungria, a respeito da gravidez extra-uterina e da gravidez molar, pode, perfeitamente, ser aplicada à hipótese do feto anencefálico:"O feto expulso ( para que se caracterize aborto) deve ser produto fisiológico, e não patalógico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto" ( Comentários ao código penal, Forense, 1958, vol. V, p. 207/208).

13. Do ponto de vista médico, o feto anencefálico é uma patologia e como patologia deve ser tratada. Como diz a professora Débora Diniz, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da Universidade de Brasília, "A ausência dos hemisférios cerebrais, ou no linguajar comum "a ausência de cérebro", torna o feto anencéfalo a representação do subumano por excelência. Os subumanos são aqueles que, segundo o sentido dicionarizado do termo, se encontram aquém do nível humano. Ou, como prefere Jacquard, aqueles não aptos a compartilharem da "humanitude", a cultura dos seres humanos." (Aborto seletivo no Brasil e os alvarás judiciais).

14. A Justiça não pode olvidar essa realidade. Não se trata de interrupção de gravidez em razão de eugenia, seletividade ou de sentimentalismo, mas, sim, de circunstância indiscutível de que o feto não terá sobrevida, porque o feto é sub-humano ou inumano. Não se deve olvidar das palavras de Giovanni Berlinguer "O aborto é o desfecho trágico de um conflito em que estão envolvidos de um lado um ser em formação, do outro as aspirações e necessidades de uma mulher" (Bioética cotidiana, Editora UNB, tradução de Lavínia Porciúncula, 2004, p. 47). Ora, se não há, em realidade, ser em formação, de um lado, e aspirações e necessidades de uma mulher, de outro lado, não há desfecho trágico, não há, portanto, aborto. Expele-se um ser malformado. Expele-se uma patologia.

(...)

23. Efetivamente, o princípio da dignidade da pessoa humana é básico na interpretação da ordem normativa e serve de luzeiro para desvendar caminhos, que alguns não vêem ou teimam em não vê-los, sob o enfoque de concepções que, contraditoriamente, negam o mencionado princípio. À gestante de um feto anencefálico basta que se lhe conceda a eficácia do princípio da dignidade da pessoa humana. E, para assim agir, basta que se lhe reconheça o direito de interrupção terapêutica de uma gravidez, marcada pela patologia, que constrange e perturba a ciência e os homens.

24. A ação e a liminar, aqui referidas, em verdade, estão a proteger mulheres desprovidas de recursos financeiros, mulheres pobres, que necessitam ir a juízo, pleiteando alvará autorizador, porque vão utilizar-se dos serviços públicos de saúde. Aquelas que têm condições financeiras sabem qual clínica ou qual médico devem procurar, para a prática interruptiva da gravidez. Não seja a sociedade hipócrita, nem sejam os opositores da liminar ingênuos...Em conclusão, propomos que esta Col. Casa do advogado, mas, também, da liberdade e do respeito à dignidade da pessoa humana, se manifeste pelo direito de a gestante interromper, sempre que assim desejar, uma gravidez, onde em gestação se ache um feto anencefálico, porque o Direito não é, nem pode, ser estático, não é, nem pode, ser contemplativo de uma realidade que passou, ignorando os avanços da ciência.

Mais uma vez, nota-se que a premissa central da argumentação é a desconstituição do caráter humano do feto anencéfalo. Este aspecto merece especial realce: o anencéfalo é tratado não como um ser humano doente, mas, ele mesmo, como a própria doença ou como um "sub-humano". O que causa maior perplexidade ao observador é a circunstância de que esta criticável visão médica é tomada como "indiscutível" por leigos em medicina! Não pode passar despercebida, também, a curiosa perspectiva emancipatória da mulher, no caso do voto referido acima, da mulher pobre. Desvirtua-se o debate moral em favor do velho mote político de que as limitações de direitos são uma dominação social.

É interessante, para concluir o tópico, transcrever o excerto da decisão monorática do Ministro Marco Aurélio de Mello, na ocasião em que concedeu a medida liminar [32], em termos mais suaves, mas calcados nos mesmos fundamentos:

Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana. O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São nove meses de acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável em foco. Daí o acolhimento do pleito formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se não só o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, como também o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto. É como decido na espécie.


6. Fundamentos jurídicos contra o aborto do anencéfalo

Em parecer concedido à União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro, JOSÉ NÉRI DA SILVEIRA, Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal [33], ofereceu vivo contraponto às idéias que acima foram apresentadas, destacando que:

(i) o feto anencéfalo é um ser humano, pois o ser humano existe desde o momento da concepção, conforme ampla literatura médica, tanto nacional quanto estrangeira;

(ii) há relatos médicos no sentido de que as regiões encefálicas inferiores, (nível do sistema nervoso humano que o feto anencéfalo chega a possuir) operam, geralmente, mas nem sempre, abaixo do nível consciente;

(iii) não como definir o tempo de vida de um feto anencéfalo, havendo um registro, reconhecido pelo governo italiano, de um feto anencéfalo que viveu 14 (quatorze) meses sem recorrer à respiração mecânica;

(iv) a Constituição da República consagra o direito à vida como direito fundamental e, portanto, o feto anencéfalo tem a proteção da República para nascer;

(v) o Código Civil de 1916 (no que foi repetido pelo Código Civil de 2002) consigna expressamente que, embora a personalidade jurídica surja com o nascimento com vida, "a lei põe a salvo os direitos do nascituro", o que só confirma a tradição jurídica nacional em proteger o feto, sem distinção entre fetos saudáveis e fetos portadores de quaisquer anomalias;

(vi) o feto anencéfalo, assim como sua mãe, é protegido pelo princípio fundamental da dignidade da pessoa humana;

(vii) não fere a dignidade da pessoa humana o fato de uma mãe dar à luz a seu filho, ainda que seu filho sofra de uma malformação;

(viii) a interrupção da gravidez, fora dos casos excepcionados em lei, é crime contra a pessoa e a "antecipação terapêutica do parto" de feto anencéfalo não é exceção;

(ix) as lições do falecido Ministro Nelson Hungria, célebre penalista citado na petição inicial da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 54-8/DF, deixam claro que o aborto consiste na interrupção da gravidez, sendo desnecessária a prova da vitalidade do feto;

(x) não existe qualquer sustentação médica ou jurídica para equiparar a gravidez intra-uterina do feto anencéfalo com os casos de gravidez extra-uterina e gravidez molar, estes sim considerados como patologia;

(xi) o que se pretende realizar é um aborto eugênico, definido pela doutrina penal clássica como o "executado ante a suspeita de que o filho virá ao mundo com anomalias graves, por herança dos pais";

(xii) segundo pronunciamentos do Conselho Federal de Medicina e da Associação Nacional dos Ginecologistas e Obstetras, a gravidez de feto anencéfalo não implica, só por si, em risco para a gestante: os riscos são os mesmos de uma gravidez sadia;

(xiii) somente a Constituição da República pode prever a pena de morte, e só o faz na hipótese de guerra declarada;

(xiv) nenhum dos Poderes da República pode afrontar a Constituição e condenar à morte um ser humano por força de uma simples interpretação do Código Penal;

A articulação do raciocínio de JOSÉ NERI DA SILVEIRA, com a qual se concorda inteiramente, prescinde de detalhes para explicitar a coerência no encadeamento das premissas expostas. Mas é oportuno, para maior fidelidade da exposição, transcrever as conclusões do prestigiado ministro aposentado:

Desde a concepção, há vida humana; o feto é ser humano vivo e revestido também da dignidade humana, com a proteção do sistema jurídico, constitucional e legal. Na condição de conceptus sed non natus, adquire personalidade jurídica, na ordem civil, no momento do nascimento com vida, pouco importando que a ciência lhe preveja vida extra-uterina breve. Em nosso ordenamento jurídico, não se concebe distinção também entre seres humanos em desenvolvimento na fase intra-uterina, ainda que se comprovem anomalias ou malformações do feto; todos enquanto se desenvolvem no útero materno são protegidos, em sua vida e dignidade humana, pela Constituição e leis (itens 9 a 12).

3.O aborto, crime contra a vida previsto no Código Penal (arts. 124 a 126), ocorre com a interrupção voluntária da gravidez e morte do feto, em decorrência desse ato (item 13).

4.O feto anencefálico é ser humano vivo e em desenvolvimento no útero materno, embora a anomalia que o acomete, tendo a sua vida e a dignidade humana a proteção da ordem constitucional e legal. A natureza de ser humano, desde a concepção e até a morte, não se altera pela malformação encefálica, que atinge parte das funções encefálicas (as de nível superior ou cortical), subsistindo, porém, as funções do sistema nervoso dos níveis medular e encefálico inferior, na nomenclatura do professor Arthur Guyton, com a presença de tronco encefálico e "porções variáveis do diencéfalo", possuindo organismo vivo, dotado de órgãos e sistemas vitais, conforme a ciência o revela (itens 14 a 17), não cabendo ver, nele, destarte, um morto no ventre materno ou sequer um ser com morte cerebral, na existência extra-uterina (item 17).

5.Constitui crime de aborto, capitulável nos arts. 124 a 126 do Código Penal, conforme a hipótese, a interrupção voluntária da gravidez, com a conseqüente morte do feto anencefálico; o crime não se descaracteriza, na espécie, pela circunstância de haver expectativa de reduzida existência extra-uterina, não sendo sequer possível, desde logo, prever o momento provável do óbito, máxime, em face de tratamentos intensivos utilizáveis (itens 18 a 20).

6.Não se aplica ao aborto voluntário de feto anencefálico o disposto no art. 128, I, do Código Penal, não resultando dessa gestação especial risco à vida ou mesmo à saúde da gestante, conforme a doutrina e pronunciamentos técnicos examinados (itens 21 e 22).

7.O direito à vida, como o primeiro dos direitos fundamentais (CF, art. 5º., caput), é garantido, pela Constituição e ordenamento legal, ao ser humano, desde a concepção até a morte. É ele, assim, assegurado, também ao nascituro, desde a concepção, sem distinção de qualquer natureza ou condições de maior ou menor vitalidade desse ser vivo, na fase intra-uterina, bem assim na vida extra-uterina, quer exista ou não probabilidade de duração breve (itens 11 a 13).

8.Numa ponderação hierárquica dos direitos e valores concernentes à vida e à dignidade humana garantidas também ao nascituro anencefálico, vivo e em desenvolvimento no ventre materno, em face de invocados direitos fundamentais da gestante, quanto à dignidade de pessoa humana, liberdade e autonomia de vontade, no sentido de interromper a gravidez, do que resultaria a morte do feto, - não é possível deixar de fazer prevalecer o direito à vida do nascituro, visto que a vida e a saúde da gestante não correm perigo de grave dano, nem sua dignidade de pessoa humana é ferida pelo fato dessa maternidade, valor constitucionalmente exaltado. A gestante - em mantendo o feto anencefálico em seu ventre, até o nascimento, com vida, do filho por ela gerado, com a grandeza da humanidade e revestido da dignidade de ser humano, - não terá sua dignidade pessoal diminuída, na linha da magna compreensão desse valor na ordem constitucional, nem sua liberdade ameaçada ou comprometida, mas, ao contrário, - revestida do valor constitucional e humano que se confere à maternidade, - cumpre vê-la merecedora de mais respeito e admiração por seus concidadãos, o que significa ter sua dignidade pessoal elevada, porque, acima de tudo, soube amar até o fim e é somente pelo amor que o ser humano pode realizar sua perfeição e felicidade.

Não cabe dar prevalência ao que se pretende na inicial, que instrui a Consulta, porque isso importaria em destruir a vida do ser vivo e em desenvolvimento no útero materno, ou seja, fulminar, irreversivelmente, o direito fundamental à vida do feto anencefálico, antecipando-lhe a morte, eliminando uma vida que, mesmo se houver de ser breve, embora indeterminado o momento do óbito, nem com isso deixará de ser vida humana protegida pela Constituição e as leis, com a nobreza do ser humano (itens 23 a 25).


7. Uma nova dimensão: a doação de órgãos e tecidos

Embora o principal interesse no feto anencéfalo seja o de tutelá-lo enquanto ser humano em si, há um segundo interesse da sociedade em dedicar-lhe especial atenção: o feto anencéfalo pode salvar muitas vidas, por meio de transplante de tecidos e órgãos.

Neste aspecto, a proteção à gestação de fetos anencéfalos deveria ser considerada, no Brasil, como uma autêntica política pública de saúde, considerando que os tecidos e órgãos fetais servem perfeitamente para transplantes infantis, devendo-se inserir as famílias que lidam com a anencefalia em programas de conscientização da importância da doação de órgãos de um ser humano tido como "caso perdido" pelo senso comum. O profundo sentido humanitário desta iniciativa se alinharia com a tão propalada solidariedade social, que, teoricamente, integra o núcleo de decisões fundamentais da República Federativa do Brasil (artigo 3°, inciso I, da Carta de 1988).

Não se trata, neste particular, de lançar os pais do anencéfalo em uma idéia nova e irrefletida. Ao contrário do que se pode pensar, a pesquisa em torno do tema remonta a meados de século passado [34], quando já se registravam transplantes de tecidos fetais nos Estados Unidos, identificando-se em 1968 um transplante de tecido hepático bem-sucedido no tratamento da Síndrome Di George. Mas foi somente no final do século passado, entre os anos oitenta e noventa, que o transplante de tecido fetal começou a assumir posição de destaque, em decorrência das tentativas de tratamento da Doença de Parkinson pelo transplante de células cerebrais do feto [35].

Conforme anotam MARCO SEGRE e WILLIAM SAAD HOSSNE, as células fetais possuem quatro propriedades altamente favoráveis para o êxito em transplantes: capacidade de crescer e proliferar; capacidade de diferenciação celular e tecidual (plasticidade intrínseca); capacidade de produzir fatores de crescimento, estimulando células do receptor e menor antigenicidade (por ausência de marcadores de membrana) do que tecidos adultos e, daí, a menor probabilidade de rejeição.

Entre as indicações terapêuticas para os tecidos fetais, pode-se mencionar: (i) alterações de imunodeficiência; (ii) alterações hematológicas; (iii) alterações endócrinas; (iv) alterações neurológicas; (v) alterações metabólicas e outras alterações genéticas – como, por exemplo, no tratamento da Síndrome de Hurler (uma doença autossômica recessiva em que há deficiência de enzimas lisossômicas, causando progressivo retardo mental, que atualmente atinge cerca de 100 norte-americanos por ano).

Além disso, há inúmeras perspectivas no campo experimental que ainda não foram divulgadas pelos centros de pesquisas e universidades, embora haja notícia, por exemplo, de que a Universidade de Washington está envolvida em dezenas de pesquisas.

É interessante observar, finalmente, que o COMITÊ NACIONAL PARA A BIOÉTICA (Itália) relacionou as objeções mais comuns à difusão do transplante de órgãos de fetos anencéfalos e contribuiu para desmistificar certas reservas ao seu emprego [36]:

a) É infringida a regra do "dead donor rule", que veda a retirada de órgãos vitais de sujeitos vivos.

O anencefálico, enquanto não teve não tem e nem terá consciência, não tem algum interesse em defender a vida. Se a existência é abreviada, não fica nenhuma marca consciente e não se tem melhora ou piora do seu status dependendo da duração da vida.

A exceção à regra não põe em alerta a coletividade ou os outros potenciais doadores: com efeito, eles não podem se sentir ameaçados por tal decisão, porquanto nunca se encontrarão na situação do anencefálico.

Esta decisão não altera o respeito pela vida e as considerações do seu valor. Como o anencefálico não tem nenhum interesse em ver preservada a sua existência é aceita a possibilidade dos pais pedirem a interrupção do tratamento sem que isto reduza o respeito pela vida.

b) problemas relativos à precisão do diagnóstico

O diagnóstico errado de anencefalia é possível principalmente se o diagnóstico não é realizado em estruturas especializadas ou por uma pessoa especificamente capacitada. Propõe-se de superar tais problemas aplicando os critérios de diagnóstico para anencefalia: (i) ausência de uma larga porção óssea da calota craniana; (ii) ausência do escalpo acima do defeito ósseo; (iii) presença de tecido fibro-hemorrágico exposto por causa do defeito craniano; (iv) ausência de hemisférios cerebrais que podem ser reconhecíveis; (v) chamando para confirmar o diagnóstico duas pessoas com particular competência neste campo, não ligados à equipe do centro de transplante. No caso da não certeza do diagnóstico, a retirada dos órgãos seja proibida.

c) argumentações relativas ao "slippery slope argument" (argumento do declive escorregadio), ou seja, de que a decisão abriria as portas a futuros abusos em detrimento de outras categorias de doentes.

A exceção á regra não poderia prejudicar outras categorias (doentes em estado vegetativo persistente, grave dano neurológico, idosos com demência). Deve-se demonstrar que tais perigos existem não somente ter medo da possibilidade. Este risco não é real porque os recém-nascidos anencefálicos são uma categoria totalmente particular, sem história de consciência e nenhuma possibilidade de adquiri-la e isto diferentemente de todas as outras categorias lembradas.

d) número de transplantes realizáveis

Muitas críticas evidenciaram que a retirada do doador anencefálico influiria de maneira limitadíssima sobre o problema dos transplantes infantis. Na realidade as técnicas de transplantes evoluem, permitindo o uso de órgãos em condições diferentes com relação ao passado e além disto cada doador poderia fornecer quatro órgãos vitais (dois rins, coração e fígado). Ainda que existissem somente 20 doadores por ano, (nos Estados Unidos), como alguns previram, tratar-se-ia sempre de uma vantagem em termos de possibilidade de sobrevivência para outras tantas crianças.


8. Conclusão

A compreensão da natureza do feto anencéfalo depende do exame profundo, sério e conseqüente de questões morais (especialmente as bioéticas) e de técnicas de medicina às quais a comunidade científica brasileira ainda não dedicou a atenção merecida.

O debate jurídico sobre o aborto de fetos anencéfalos não tem sido satisfatoriamente respaldado em pesquisas médicas à altura da seriedade do problema, encontrando-se posições de segmentos importantes no cenário jurídico que se fundam apenas em argumentos de autoridade, tomando por verdades absolutas posições médicas altamente questionáveis do ponto de vista científico.

Em decorrência da forma inadequada com que a maioria dos setores jurídicos tem tratado a questão, vem se consolidando o entendimento (senão equivocado, no mínimo discutível) de que o feto anencéfalo não seria um ser humano, donde se extrai uma postura de total indiferença pelo feto anencéfalo.

Implicações éticas têm sido descartadas sob o argumento rarefeito de que a resistência ao aborto dos fetos anencéfalos se basearia simplesmente em posturas religiosas ou filosóficas, o que constitui uma inaceitável simplificação do problema.

Felizmente, o grave problema ético não se mostra estatisticamente amplo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é o quarto colocado no ranking de nascimento de fetos com anencefalia, registrando uma média de 8,6 fetos anencéfalos para 10.000 crianças nascidas vivas. Os países com maior índice de fetos anencéfalos são o México, o Chile e o Paraguai.

Isto não significa, por outro lado, que a questão não mereça prioridade na discussão moral, jurídica e médica: em verdade, a discussão sobre o tema leva o interlocutor a questionar o próprio sentido e alcance da dignidade da pessoa humana, expressão que não apenas veicula um princípio fundamental na República Federativa do Brasil, mas, principalmente, sintetiza a busca por uma definição do conteúdo da etérea e indelével busca do homem pelo sentido da vida.


Bibliografia

BARROSO, Luís Roberto. "Petição Inicial na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 54-8/DF". Disponível em: . Acesso em 8 de agosto de 2006.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 54-8/DF. Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. Relator: Ministro Marco Aurélio. Disponível em: . Acesso em 3 de agosto de 2006.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo n° 366, Brasília, 18 a 22 de outubro de 2004. Disponível em . Acesso em 9 de agosto de 2006.

BRAZ, Marlene. "Resenha ABORTO POR ANOMALIA FETAL. D. Diniz & D. C. Ribeiro. Brasília: Letras Livres, 2003. 149 pp.". Cadernos de Saúde Pública. v. 20, n. 1, Rio de Janeiro, jan.-fev. 2004.

CANTO-SPERBER, Monique. A inquietude moral e a vida humana. São Paulo: Loyola, 2005, trad. Nicolas Nyimi Campanário.

COMITÊ NACIONAL PARA A BIOÉTICA DA REPÚBLICA ITALIANA. "O Recém-Nascido Anencefálico e a Doação e Órgãos".. Disponível em: <http://www.providafamilia.org.br/doc.php?doc=doc48822> Acesso em 10 de agosto de 2006.

CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Comissão de Bioética. Disponível em: . Acesso em 8 de agosto de 2006.

DINIZ, Débora e RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal. Brasília: Letras Livres, 2003, p. 77.

FRANÇA, Genival Veloso de. "Aborto – Breves Reflexões sobre o Direito de Viver" Revista Bioética. v. 2, n. 1, Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1994. Disponível em: <www.portalmedico.org.br>. Acesso em 3 de agosto de 2006.

FREITAS, Ana Clélia de et al. "Existe aborto de anencéfalos?". Disponível em: . Acesso em 3 de agosto de 2006.

GOLLOP, Thomaz Rafael. "Aborto por Anomalia Fetal". Revista Bioética. v. 2, n. 1, Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1994. Disponível em: <www.portalmedico.org.br>. Acesso em 3 de agosto de 2006.

QUEIROZ, Victor Santos. "Reflexões acerca da equiparação da anencefalia à morte encefálica como justificativa para a interrupção da gestação de fetos anencefálicos". Jus Navigandi. Teresina, a. 9, n. 760, 3 de agosto de 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7111>. Acesso em 3 de agosto de 2006.

SEGRE, Marco e HOSSNE, William Saad. "O Aborto e o Transplante de Tecido Fetal". Revista Bioética. v. 2, n. 1, Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1994. Disponível em: <www.portalmedico.org.br>. Acesso em 3 de agosto de 2006.

SILVEIRA, José Néri. "Néri da Silveira é contra o aborto de anencéfalos." Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 413, 24 de agosto de 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/16602>. Acesso em: 3 de agosto de 2006.

TOURINHO, Arx. "OAB: Interrupção de gestação de anencefálico não é aborto". Disponível em <http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=2528&arg=anencefalia>. Acesso em 3 de agosto de 2006.


Notas

01 Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 54-8/DF.

02 Cf. Informativo n° 366 do Supremo Tribunal Federal, Brasília, 18 a 22 de outubro de 2004. Disponível em . Acesso em 9 de agosto de 2006.

03 Desde dezembro de 2000, o aborto é autorizado na França até a décima segunda semana de gestação.

04 Na Grã-Bretanha, o aborto é autorizado até a vigésima segunda semana de gestação.

05 A inquietude moral e a vida humana. São Paulo: Loyola, 2005, p. 108 e 109, trad. Nicolas Nyimi Campanário.

06 Cf. observações de Marlene Braz em resenha ao livro "ABORTO POR ANOMALIA FETAL. D. Diniz & D. C. Ribeiro. Brasília: Letras Livres, 2003. 149 pp." publicada em Cadernos de Saúde Pública, v. 20, n. 1, Rio de Janeiro, jan.-fev. 2004.

07 Idem.

08 DINIZ, Débora e RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal. Brasília: Letras Livres, 2003, p. 77.

09 As argumentações em requerimentos de alvará judicial para interrupção de gravidez freqüentemente exploram as condições emocionais da mãe. Ao ponto de voltará adiante.

10 Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Disponível em: . Acesso em 8 de agosto de 2006.

11 Idem.

12 Idem nota 6.

13 A petição inicial é assinada pelo advogado Luís Roberto Barroso, Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

14 Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento

Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena - detenção, de um a três anos.

Aborto provocado por terceiro

Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:

Pena - reclusão, de três a dez anos.

Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:

Pena - reclusão, de um a quatro anos.

Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

Forma qualificada

Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

15 Estado de necessidade

Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

§ 1º - Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

§ 2º - Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).

16 Estupro

Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:

Parágrafo único.(Revogado pela Lei n.º 9.281, de 4.6.1996)

Pena - reclusão, de seis a dez anos. (Redação dada pela Lei nº 8.072, de 25.7.1990)

17 Atentado violento ao pudor

Art. 214 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal: Vide Lei nº 8.072, de 25.7.90

Parágrafo único. (Revogado pela Lei n.º 9.281, de 4.6.1996

Pena - reclusão, de seis a dez anos. (Redação dada pela Lei nº 8.072, de 25.7.1990)

18 A Parte Geral (que contém disposições genéricas sobre a aplicação da lei penal, o conceito de crime e suas hipótese gerais de exclusão, além da disciplina da aplicação das penas) foi amplamente reformada em 1984.

19 As referências a este autor, no presente trabalho, são todas relacionadas à petição inicial de sua autoria, na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 54-8/DF, que pode ser encontrada no sítio virtual de seu escritório de advocacia. Disponível em . Acesso em 8 de agosto de 2006.

20 A definição, segundo a nota lançada na petição inicial, é baseada em Richard E. Behrman, Robert M. Kliegman e Hal B. Jenson, Nelson/Tratado de Pediatria. Guanabara Koogan, 2002, p. 1777.

21 Os comentários são baseados na obra, já referida, de Débora Diniz e Diaulas Costa Ribeiro. Aborto por anomalia fetal, 2003, p. 44 e 102.

22 As complicações são relacionadas, segundo a petição inicial, em parecer da FEBRASGO – Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia.

23 "Existe aborto de anencéfalos?". Disponível em . Acesso em 3 de agosto de 2006.

24 Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.".

25 "Reflexões acerca da equiparação da anencefalia à morte encefálica como justificativa para a interrupção da gestação de fetos anencefálicos". Jus Navigandi. Teresina, a. 9, n. 760, 3 de agosto de 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7111>. Acesso em 3 de agosto de 2006.

26 "Aborto por Anomalia Fetal". Revista Bioética. v. 2, n. 1, Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1994. Disponível em: <www.portalmedico.org.br>. Acesso em 3 de agosto de 2006.

27 "Consideram-se inaceitáveis as práticas, realizadas em alguns centros médicos, inclusive no Brasil, em que se mantém em vida o feto inviável, artificialmente, com o objetivo único de preservar a integridade dos tecidos a serem transplantados. Menospreza-se, nessa situação, o sofrimento que o feto, certamente tem, já sendo dotado de sistema nervoso central.". "O Aborto e o Transplante de Tecido Fetal". Revista Bioética. v. 2, n. 1, Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1994. Disponível em: <www.portalmedico.org.br>. Acesso em 3 de agosto de 2006.

28 "Aborto – Breves Reflexões sobre o Direito de Viver" Revista Bioética. v. 2, n. 1, Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1994. Disponível em: <www.portalmedico.org.br>. Acesso em 3 de agosto de 2006.

29 Idem nota 27.

30 Cf. informado por Thomaz Rafael Gollop em "Aborto por Anomalia Fetal". Revista Bioética. V. 2, n. 1, Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1994. Disponível em: <www.portalmedico.org.br>. Acesso em 3 de agosto de 2006.

31 Disponível em . Acesso em 3 de agosto de 2006.

32 Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 54-8/DF. Relator: Ministro Marco Aurélio. Disponível em: www.stf.gov.br>. Acesso em 3 de agosto de 2006.

33 "Néri da Silveira é contra o aborto de anencéfalos."Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 413, 24 de agosto de 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/16602>. Acesso em: 3 de agosto de 2006.

34 "O Recém-Nascido Anencefálico e a Doação e Órgãos". Comitê Nacional para a Bioética. República Italiana. Disponível em: <http://www.providafamilia.org.br/doc.php?doc=doc48822>. Acesso em 10 de agosto de 2006.

35 SEGRE, Marco e HOSSNE, William Saad. "O Aborto e o Transplante de Tecido Fetal". Revista Bioética. v. 2, n. 1, Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1994. Disponível em: <www.portalmedico.org.br>. Acesso em 3 de agosto de 2006.

36 Idem nota 34.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Guylene Vasques Moreira. A polêmica (i)legalidade do aborto de feto anencéfálico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1239, 22 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9190. Acesso em: 6 maio 2024.