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O Estado-força e o não-Estado

O Estado-força e o não-Estado

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O não-Direito é a clara expressão do arbítrio. Já o não-Estado refere-se a tudo o que o Estado não seja capaz de impor sob alguma forma de dominação ou de nivelamento funcional.

RESUMO: O texto procura relacionar três eixos essenciais ao entendimento do Direito como um obstáculo ao uso da força, sendo que as duas primeiras temáticas apresentam-se como demonstrações da não-violência: 1) o não-Estado; 2) o típico Estado Jurídico; 3) o não-Direito: este como a violência em espécie. O não-Estado acarreta o desenvolvimento de áreas sociais não-estatais, a exemplo da própria sociedade civil organizada; o Estado Jurídico implica no controle interno e externo do Poder Político; já o não-Direito se reduz ao mero uso da força e da brutalidade: pode ser o arbítrio de um tirano ou a ideologia dominante em determinado momento histórico do Estado-Força.

PALAVRAS-CHAVE: Fundamentos Sociológicos do Direito; Teoria do Estado Moderno; Estado Jurídico; não-Estado; sociedade; não-Direito; arbítrio.


SUMÁRIO:1)o Não-Estado; 2) O não-Estado e o Estado Jurídico; 3) Kelsen e as garantias de Ihering; 4) Estado–Força e Direito; 5)Do Poder Popular e do Poder Extroverso; 6) O Direito como Fato Social; 7) Bibliografia.


O Não-Estado

Comumente se pensa que onde não há Estado, não há Direito, mas a Antropologia já demonstrou que pode haver Direito sem Estado [01] (Clastres, 1990). Porém, o contrário, Estado sem Direito, isto não é possível de se visualizar.

Contudo, sob um ângulo reduzido, o raciocínio comum não estaria de todo errado, mas isto se daria somente se a ausência das políticas públicas concretas implicasse em violência direta, ou seja, para além das divergências políticas. De modo muito mais amplo, no entanto, a figura descritiva da expressão não-Estado — como simples ausência do Estado — implica no espaço social público, mas não estatal. Essa fórmula ainda nos auxilia na distinção entre o que é público e o que é estatal: por exemplo, a sociedade civil é pública, mas não estatal.

A fim de melhor especificar as distinções propostas, vejamos, como diz Reale (2005), o não-Direito é a clara expressão do arbítrio. Já o não-Estado (Bobbio, 1986, pp. 121-123) refere-se a tudo o que o Estado não seja capaz de impor sob alguma forma de dominação ou de nivelamento funcional. Assim, para Bobbio, o não-Estado formado na era do capitalismo em expansão, e em conformidade com o Estado Moderno, teria o seguinte fluxo:

Para o nosso objetivo, é interessante notar que numa doutrina do primado do não-Estado, o Estado se resolve na detenção e no exercício legítimo do poder coativo, de um poder meramente instrumental na medida em que presta serviços (indispensáveis, mas, pela sua própria natureza, de grau inferior) a uma potência supraordenada. Esta observação é interessante porque a própria representação instrumental do Estado ocorre quando o não-Estado que avança as próprias pretensões de superioridade contra o Estado é a sociedade civil-burguesa (Bobbio, 1986, p. 123).

Neste período de formação da sociedade civil burguesa, o Estado Moderno atuou como força centrípeta, ao passo que o capital expansivo e colonialista atuava com força centrífuga (Mészáros, 2002).

O Estado moderno teve que concentrar o Poder Político para robustecer as riquezas nacionais, já o capitalismo precisou expandir o centro do poder de comando — a partir do poderio econômico burguês, sob a modalidade conhecida por colonização ultramarina — para incrementar ainda mais os níveis de acumulação e de concentração de capitais (Marx, 1993). Sobre este conceito de sociedade civil material ou econômica, dirá Marx que:

Nas minhas pesquisas cheguei à conclusão de que as relações jurídicas — assim como as formas de Estado — não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito humano, inserindo-se pelo contrário nas condições materiais de existência de que Hegel, à semelhança dos ingleses e franceses do século XVIII, compreende o conjunto pela designação de "sociedade civil": por seu lado, a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia política (Marx, 2003, pp. 04-5 – grifos nossos).

Vimos em Marx como a sociedade civil nada mais é do que a construção da infra-estrutura econômica, a base sobre a qual se erige a própria estrutura social e político-administrativa (o Estado), e do que deriva, por fim, a superestrutura jurídica. O Estado e o Direito decorreriam dessa mesma condição econômica que desencadeia a sociedade civil (enquanto entidade orgânica ao capital, de ordem determinada/determinante economicamente). Estado e Direito, portanto, seriam uma das tantas formas de representação:

[...] na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existente ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então (Marx, 2003, p. 05 – grifos nossos).

Uma contradição flagrante no Brasil e que podemos apontar no quadro analítico iniciado no texto, é entre a ordem econômica vigente e as aspirações de constituirmos um Estado Jurídico realmente atuante. Porém, como nossa intenção é dar mais profundidade ao próprio conceito do Estado Jurídico, não deveremos restringir nossa análise à infra-estrutura econômica.

Assim, não tão reclusos ao conceito de sociedade civil marxiana veremos que, se por um lado o Estado Jurídico é limitado por condições/relações históricas e econômicas determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, por outro acaba determinando condições jurídicas também específicas. É sobretudo quanto a estas determinadas, necessárias e independentes condições/determinações jurídicas que este texto recairá, isto é, a sociedade civil organizada será anteposta ao Estado, mas como condição sócio-política e não exclusivamente econômica (Bobbio, 1982).

Em resumo, na vida moderna, o não-Estado é a esfera marcada pelas instituições burguesas – o não-Estado, de modo contraditório, portanto, corresponde às forças sócio-econômicas ativas na formação do próprio Estado de Direito Funcional [02]ou Capitalista:

Com a formação da classe burguesa que luta contra os vínculos feudais e pela própria emancipação, a sociedade civil, como esfera das relações econômicas que obedecem a leis naturais superiores às leis positivas (segundo a doutrina fisiocrática), ou enquanto regulada por uma racionalidade espontânea (o mercado ou a mão invisível de Adam Smith), pretende destacar-se do abraço mortal do Estado, o poder econômico é claramente diferenciado do poder político e ao fim deste processo o não-Estado se afirma como superior ao Estado, tanto na doutrina dos economistas clássicos quanto na doutrina marxiana, embora com sinal axiológico oposto (Bobbio, 1986, p. 123).

Para o caso específico do texto, o não-Estado seria uma construção social mista, entre a economia e a política. Talvez, melhor representado (melhor especificado) pelas faixas sociais não-ocupadas pelo Estado de Direito Formal, a exemplo das ideologias sociais, das utopias, além da religião, dos meandros da vida social. O não-Estado se define enquanto sociedade civil politizada e movida por um intenso fluxo político, provindo essencialmente dos movimentos sociais populares, mas que não estivesse colonizada pela máquina burocrática do Estado. Logo, o não-Estado e o não-Direito são eqüidistantes, não-equivalem entre si, pois enquanto o primeiro tem positividades jurídicas (óbvias), o segundo é absolutamente negativo.

O não-Estado é o conjunto complexo formado pela sociedade civil organizada, e é composto pelos movimentos sociais populares, pelas variadas fontes políticas independentes (excluindo-se as não-partidarizadas), bem como pelas demais organizações sociais reivindicativas, além das ideologias e dos partidos políticos [03] contrários à ordem estabelecida (status quo), e outras organizações não-estatais (e que nem sempre são para-estatais, como as frentes guerrilheiras).

No caso brasileiro — tendo-se em conta a história política — ainda é preciso pôr em relevo o sentido de oposição/restrição política e ideológica que as várias forças sociais alimentam regularmente. Neste sentido, merece destaque o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), pelo fato da força social movida ser altamente expressiva — em torno da luta secular pelo direito à terra — e porque procuram imprimir um debate real acerca da propalada função social da propriedade privada. Esta luta social obriga o Estado de Direito Formal a buscar por novas e razoáveis soluções jurídicas, forçando-o igualmente a se aproximar da prática social requerida pelos estatutos do Estado Jurídico.

Em oposição, o não-Direito só expressa a violência, a brutalidade, o medo e o temor, o caos destrutivo. Portanto, o não-Estado assinala a organização social, ao passo que o não-Direito é a pura desorganização institucional e jurídica. O não-Direito é o não-diálogo que leva à disputa limitada ao famoso discurso de autoridade (isso na melhor das hipóteses) ou ao simples emprego da força bruta.

O não-Estado, portanto, aprimora o Estado Jurídico, pois suas forças sociais atuam externamente, visando a um maior controle jurídico das políticas públicas – o não-Estado, em suma, é o Poder Social agindo como um grau superior do controle de juridicidade do Poder Político. O não-Direito, por sua vez, é a negação de qualquer pretensão de Direito, do chamado "império da lei", enfim, do próprio Estado de Direito.

Onde não há Estado — como espaço afirmativo e de confluência das entidades sociais que formam o não-Estado —, há a sociedade global. Desse modo, o não-Estado não implica necessariamente na ação criminosa, na barbárie atentatória à sociedade e ao próprio Estado, pois o não-Estado não corresponde ao vulgarmente conhecido Estado Paralelo. Portanto, o não-Estado não é sinônimo de Estado de não-Direito [04]; o não-Estado não é reflexo de algum Estado Arbitrário. O não-Estado também não é o Estado-Força, aquele que aplica o Direito como meio de controle ou de opressão. O não-Estado está muito mais próximo dos espaços de interatividade social.


O não-Estado e o Estado Jurídico

O não-Estado é mais facilmente verificável por meio da análise sociológica, em busca da interação social, das contradições e dos conflitos sociais, bem como pela investigação antropológica, em que se destaque o ethos, a ordem da cultura, o mundo das trocas simbólicas, em que se valorize a força da entropia criadora: é do atrito que advém o movimento e a mudança. Por esta razão, o Estado Jurídico — como opção ao Estado-Força — também pode ser investigado seguindo-se os Fundamentos Sociológicos do Direito [05].

É oportuno resgatar Reale quando nos indica que mesmo o Estado Jurídico é — antes de ser jurídico — uma elaborada construção social:

A expressão auto-limitação é infeliz porque dá a idéia de que é o Estado que traça a si próprio os seus limites, quando, na realidade, temos diante de nós um processo de natureza histórico-cultural, que implica uma discriminação progressiva de atividades, para os indivíduos ou para a sociedade civil, de um lado, para o Poder Público, do outro [...] A nosso ver, houve engano ao se apreciar separadamente o problema do indivíduo perante o Estado, quando o Estado não é senão expressão do processo histórico de integração da vida política e jurídica [06] (2005, p. 274).

Desse modo, fica mais fácil perceber como o não-Estado é um elemento essencial à formação do Estado Jurídico. O não-Estado,sob a forma da sociedade civil organizada [07], como alertava Bobbio (1986) — e como vimos confirmar-se em Reale (2005) —, foi o principal meio não-jurídico ou sócio-político a refrear o Estado Arbitrário.

Este fenômeno social progressista — de grandes conseqüências jurídicas — vem ocorrendo marcadamente desde a revolução liberal do século XVII, até desembocar no socialismo do século XX. Essas forças sociais progressistas (menos liberais e mais socialistas) forçaram o Estado a expandir seu controle jurídico, a fim de expressar um verdadeiro controle social: aquele exercido pela sociedade que quer ver mudanças na ordem sócio-econômica, mas também na estrutura política e administrativa do Estado.

A necessidade de mudanças sociais impôs ao antigo Estado de Direito (século XIX), de fora para dentro, novas formas de exercício mais direto de controle estatal, mas é, curiosamente, essa mesma "legitimidade alcançada" que se vê alvo de tantas críticas sociais hoje em dia.

É interessante observar como o não-Estado, a sociedade civil burguesa, sobretudo nos séculos XVII e XVIII, desenvolveu-se ora incorporando, ora estimulando (alargando) as fronteiras delimitadas pelo próprio Estado Capitalista.

Desse ponto de vista, o Estado Jurídico é uma imposição da sociedade civil burguesa, devendo atuar como freio aos ataques e avanços incontrolados desse mesmo Estado Capitalista. As duas grandes guerras mundiais, nessa ótica, são falhas operacionais do Estado Jurídico, uma vez que, não se conseguiu à época, refrear o ímpeto do Estado expansionista à frente do grande Capital. Vejamos o caso da Segunda Guerra Mundial, como exemplo da negação do Estado Jurídico.


Por que se trata tanto da guerra?

Lembramos, tratamos e estudamos o nazismo - do passado - apenas para combater todas as formas e variáveis do fascismo, tanto as atuais, quanto as do futuro. Da mesma forma, trata-se da Guerra, da sua lógica e da barbárie que se segue, com a mente voltada à paz. Por isso, também devemos tratar da Política com ética e como se fosse a diplomacia, e não só pelo ângulo dos resultados e das conquistas (como quer o "realismo político"), porque essa "razão" traz perdas e prejuízos.

A Segunda Grande Guerra produziu: a) 80 milhões de mortos: além dos que morreram de fome e de doenças: oito vezes mais do que na 1ª Guerra Mundial; b) Uma qualidade diferenciada para as mortes: câmara de gás; torturas extremas; experiências com pessoas vivas; massacres programados.

A resposta, ao final, veio com o bombardeio de Dresden, já com a Alemanha totalmente rendida, e com as duas Bombas Atômicas lançadas desnecessariamente (do ponto de vista militar) no Japão. Esses fatos evidenciam a motivação racista da Segunda Grande Guerra, até o seu término: não jogariam bombas atômicas na Europa, por exemplo.

Além disso, vejamos outras motivações da Segunda Grande Guerra: rivalidades entre impérios coloniais: Grã-Bretanha X França; fortes contradições econômicas entre os chamados países imperialistas; fortes contrações do capital que sempre precisa se expandir; a entrada de novos atores no cenário mundial daquela Geopolítica: notadamente a Alemanha e a Itália; repressão ao movimento socialista desencadeado em 1917, na Rússia: o chamado "Pacto anti-Komintern"; repressão aos movimentos socialistas nacionais: visava "conter a expansão do comunismo".

A "Pax Americana" (a posição de neutralidade americana), neste sentido, foi inicialmente providencial ao capitalismo, como ação concreta diante da "política de apaziguamento" das grandes potências. A América se envolveu na Segunda Grande Guerra porque a lógica da economia de guerra estava em ação, e era expansionista e acumulativa. Seguiu-se a lógica do grande capital internacional da época: mais industrial, material (próprio à grande indústria, à indústria de base).

Daí por diante, a chamada economia de guerra tornou-se uma peça fundamental (um motor) na estrutura da economia global: da Guerra do Vietnã à invasão da Ilha de Granada; da Guerra-Fria às duas Guerras do Golfo; da Revolução Cultural Chinesa e Cubana às guerras fratricidas (de descolonização, "descontaminação") na África.

Pela lógica da economia de guerra global, a chamada "desnazificação" foi uma farsa. Basta-nos lembrar que a Bomba A foi construída com o auxílio dos cientistas alemães. Após a guerra, estavam na ativa 5.000 juízes da fase nazista, do total de 11.500 juízes em atividade na Alemanha, o que reforça a análise de que não é possível pensar-se em termos de um suposto Estado Jurídico Nazista (ou fascista), exatamente porque são termos antitéticos.

Como se sabe, finda a Segunda Grande Guerra, nasceria o chamado Estado Democrático e, após a formação da ONU (1946) e com a Declaração dos Direitos Humanos de 1948, nasceria um novo Direito: o conjunto complexo dos direitos humanos, como resultado do alargamento do próprio direito humanitário que já vinha se desenvolvendo desde o final da Primeira Grande Guerra, e a proibição do uso de armas químicas e biológicas.

Por fim, como visto, o Estado submetido ao Direito Internacional, em tese, evitaria a guerra de conquista (seja territorial, seja de mercado) e este será o objeto e o emblema criado com a ONU e, após, com a Declaração Universal, ou seja, o Estado Jurídico como entrave ao desenvolvimento do Estado Fascista (este que está sempre de plantão). Agora, vejamos o Direito atuando como salvaguarda da autolimitação do Estado.


Kelsen e as garantias de Ihering

Como vimos — tanto na análise social, quanto sob a guerra — estamos na seara da crítica externa (argumento externo) à Teoria da Autolimitação, isto porque não haveria sentido em esperar que o soberano fosse impor sujeições espontâneas a si mesmo [08]. Porém, devemos destacar o argumento externo (história da movimentação social) como freio ao poder outrora incontrolado. Tomemos aqui o exemplo clássico da Magna Carta, de João Sem Terra, em 1215, já conquistando direitos individuais e assim obstaculizando inicialmente o Estado Arbitrário. No fundo, este tema revela a dinâmica, a tensão dialética entre Estado e sociedade civil, entre Direito e Poder.

Como frisa Reale (2000), a Teoria da Autolimitação decorre de uma conceituação inicial de Ihering:

O Estado domina-se, por conseguinte, porque a experiência histórica ensina ser esse o caminho de seu interesse, mas a submissão do Estado ao Direito, isto é, a realização da soberania da lei tem uma dupla garantia: uma é interna e baseia-se no sentimento do Direito; a outra é externa e encarna-se na administração do Direito [...] A única força decisiva que obriga o Estado soberano a subordinar-se à lei é o povo, quando o povo reconhece o direito como condição de sua existência e se sente violentado quando da violação da lei. Embora o Estado possa e deva respeitar a lei por si mesma, são as convicções jurídicas da Nação o fundamento último da submissão do poder ao Direito [...] A essa garantia interna Jhering acrescenta uma externa, a organização da Justiça, a constituição de órgãos especiais, cuja missão é declarar exclusivamente o Direito, sem levar em conta o fator oportunidade que o Estado não pode deixar de considerar nos outros domínios de sua atividade [...] Em virtude dessa dupla garantia, Jhering declara que o Direito, em sua acepção lata, implica a força bilateralmente obrigatória da lei, isto é, a submissão do próprio Estado às leis que ele promulga(Reale, 2000, pp. 254-255).

O que Ihering denomina de garantia interna, chamamos aqui de argumento externo (social, político, histórico), de crítica externa, pois deve colocar restrições ideológicas e políticas ao poder do Estado. É esta a luta histórica (pós-Estado Moderno) entre o chamado "poder de império" (balizado desde o Império Romano e que se definia como poder soberano, inalienável, ilimitado, incondicionado) e o "império da lei" (este configurado pelo Estado de Direito que implica no acatamento do ordenamento jurídico). Porém, em função dessa mesma luta pelo Direito (contra os privilégios), o saldo do ordenamento jurídico deve ser positivo, bem como a separação dos poderes deveria sair fortalecida.

No Estado Jurídico, a idéia geral assegura que a regra da bilateralidade deve recobrir o Estado, e isto tornaria o Estado de Direito [09] mais funcional, pois a Justiça não se pautaria exclusivamente pelo desnivelamento em que os pólos de poder estão habitualmente assentados – a exemplo do que temos ao longo da história política brasileira. Porém o impacto do direito regulador sobre os poderes constituídos não é um dado homogêneo, uma vez que os poderes Legislativo e Executivo têm atuações e finalidades distintas diante do mesmo Direito: a) enquanto o Legislativo atua como formulador desse Direito (de controle interno); b) o Executivo é receptivo e a ele deve recair a maior carga de regulação/contenção dos próprios atos. Por isso, é muito mais difícil e complexo pensar/supor que o Legislativo, no rigor do Estado Jurídico, deve regular a si mesmo. Veja-se um exemplo simples: o Direito Administrativo é regulado pelo Legislativo, mas é endereçado especialmente ao Executivo.

A regra produzida pelo Legislativo, portanto, deverá obrigar o próprio Legislativo de forma diferenciada, pois aí sim nós teríamos a produção da regra que obriga a si mesmo. Por isso, o Estado Legislativo é, em essência, criado a partir do Legislativo que (posteriormente ou subsidiariamente) se dirige à restrição formal dos demais poderes. O Estado Jurídico é, basicamente, pautado pelo Legislativo.


Uma crítica ao Estado Jurídico

De modo contrário, porém, muitos alegam contra as boas intenções da auto-regulagem do Estado. Por exemplo, um crítico mordaz da Teoria da Autolimitação será Hans Kelsen, que não poupará as boas intenções dos teóricos formuladores:

Hans Kelsen depois de reduzir arbitrariamente a doutrina dualista Estado-Direito à teoria do Estado criador de Direito, compraz-se em demonstrar o absurdo lógico dos princípios da "autolimitação", comparando esta explicação com a dos teólogos empenhados em explicar como Deus, criador do mundo, se fez homem e se submeteu às leis da humanidade para entrar em relação com o homem e o mundo. Kelsen, cujo panteísmo jurídico é um simples capítulo de seu panteísmo universal, compara, então, o mistério da Encarnação com o "mistério" da autolimitação do Estado (Reale, 2000, p. 260).

A crítica que se pode endereçar ao próprio Kelsen, neste caso, é de duas ordens: 1) não há Estado totalmente desobrigado de suas responsabilidades, e; 2) o simples contrato jurídico também não obriga o Estado a cumprir seu papel. Reale acentua a segunda linha de questionamento:

Kelsen esquece, porém, que também ele recorre a um ato de fé quando, identificando o Direito com o Estado, põe como fundamento de todo o ordenamento jurídico uma norma geral hipotética (pacta sunt servanda [10]), sem cuja aceitação impossível seria explicar a competência da autoridade estatal emanadora das leis... (Reale, 2000, p. 261).

Algumas passagens do próprio autor alemão, neste sentido, revelam com clareza essa questão da não-obrigação estatal diante de sua ilimitada condição jurídica e política. Também é uma clara indicação das condições de destaque que iria assumir dali em diante a doutrina do Poder Extroverso:

Admitindo a dualidade de Estado e Direito, a doutrina tradicional coloca essa questão de modo ligeiramente diferente: se o Estado é a autoridade de onde emana a ordem jurídica, como pode ele estar sujeito a essa ordem e, como é possível o indivíduo receber dela obrigações e direitos? [...] O Direito, na realidade, é criado por indivíduos humanos, e indivíduos que criam Direito podem, indubitavelmente, estar sujeitos ao Direito. Mais ainda, eles são órgãos do Estado apenas na medida em que ajam em conformidade com as normas que regulam sua função criadora de Direito; e o Direito é criado pelo Estado apenas na medida em que seja criado por um órgão do Estado, ou seja, na medida em que o Direito seja criado de acordo com o Direito. A afirmação de que o Direito é criado pelo Estado significa apenas que o Direito regulamenta sua própria criação (Kelsen, pp. 284-285).

Sem dúvida é o caso de invocarmos toda a teoria subseqüente da responsabilidade objetiva do Estado a partir da elevação/reconhecimento do Estado à condição de pessoa jurídica de direito público. Com isso, ainda é possível pensar que: se o Direito cria o Direito e este mais novo Direito traça o perfil do Estado, então, o Direito sempre será condicionante do Estado e, desse modo, a criação do Direito pelo Estado é uma evidente demonstração da sua capacidade/necessidade de autolimitação do próprio Poder Extroverso já experimentado.

Essa linha de raciocínio nos ajudaria a compreender que o Estado Jurídico colocaria freios jurídicos e limites éticos ao uso da "violência organizada", pelo Estado-Força.


Estado–Força e Direito

Desse ponto em diante, torna-se limitada demais a investigação em torno da idéia de que o Estado é mero instrumento de poder e de força [11] (e ainda que o seja em alguns momentos), pois o quase-eterno maniqueísmo político assegurou duas vias de entendimento, por muito tempo: 1) a sociedade capitalista é a mais desenvolvida e por isso é boa; dela decorre um Estado Liberal muito bom e, logo, o Direito produzido será equilibrado e pacificador para todos; 2) a sociedade de classes é a barbárie organizada e o Estado Capitalista é o agente de castração dos pobres e, assim, o Direito é o segredo da dominação da classe burguesa.

É esse viés simplicador ao extremo que precisa ser expandido, uma vez que o próprio Estado Jurídico decorre da leitura crítica da história política e por isso passou a ser conclamado como mecanismo de controle desse mesmo poder. Para Ihering, o Estado é a sociedade civil que se mostrou capaz de organizar a força social em torno da ação política. Portanto, o Poder Público é mais do que o Estado, sendo-lhe inicial a idéia de que é força organizada pelo Público e para o Público.

De outro modo, se o Estado Jurídico não deixa de ter as marcas da luta de classes, na sua ausência, o que fazer para relativizar o chamado Poder Extroverso (hierárquico, centralizado, verticalizado) e que supõe o mando e o cumprimento das decisões quase sem a interposição dos recursos?

Por isso, o poder sem recursos (como negação do Estado Jurídico), é o exercício da autotutela como uso arbitrário e desvirtuado da discricionariedade, um uso/abusivo da autodefesa em nome do Estado. Porém, neste caso, como se vê claramente, o Poder Público não é sinônimo de políticas públicas, simplesmente porque nada mais expressa do que a visão predominante.

Não raramente, o Estado que não é jurídico, é um Estado antipopular. Ao seguir esse padrão antipopular, por exemplo, ao descentralizar a Administração Pública, o Estado não relativiza a aplicação ou mesmo a vigência do Poder Extroverso. Por sua vez, o Poder Extroverso, sob os estritos limites da sociedade de classes, não é diferente de um mero administrador de interesses econômicos e dissimulador de conflitos sociais (Marx, 1989). No entanto, o princípio da autotutela deveria ter um sentido diverso, bem como outras implicações.

Mas, então, é possível ver a autotutela além dessa condição de simples autodefesa?

Princípio da Autotutela

É possível (re)ler a autotutela como autocrítica.

Pelo princípio da autotutela entende-se que a qualquer momento a Administração Pública pode, de ofício ou quando provocada, rever os seus atos, anulando-os por inobservância dos preceitos legais, ou revogá-los por questões de conveniência ou ainda quando oportunamente tenha que justificar suas decisões, respeitando sempre o devido processo legal (Cf. CF/88, art. 5°, LV).

Sobre o tema, é importante observar o teor das seguintes súmulas do STF:

Súmula 346: "A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos".

Súmula 473: "A Administração Pública pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial". Neste segundo caso, está expressa a situação em que possa haver vício intencional, ou seja, ilegalidades.

Resta dizer que o princípio da autotutela justifica-se, teoricamente, por estar a Administração Pública a serviço dos interesses da coletividade. Neste aspecto é que se pode dizer que o administrador público é um gestor dos bens, dos interesses e dos serviços públicos. Este também é o sentido acentuado por Gasparini (1989, p. 10).

Esse patrimônio público é colocado sob a guarda, conservação e aprimoramento de alguém (o administrador público), que em hipótese alguma pode se considerar como seu proprietário.

Deve, portanto, o administrador atuar segundo a lei e a moralidade administrativa, tendo em vista sempre uma finalidade que deve ser a consecução do bem público. É essa a finalidade da atividade administrativa: sempre o interesse público ou o bem da coletividade. A prática administrativa, entretanto, é outra questão e, por sua relevância, deveria ser analisada separadamente.

Mas será possível que, no interior do Estado Jurídico, o Poder Extroverso tenha uma conotação mais democrática e republicana? Neste caso, cabe-nos propor e agir.

NoEstado Jurídico que desejamos construir — principalmente diante da corrupção, do descaso, da incompetência, da má-fé, da improbidade e da "ignorância política" —, a ninguém é permitido invocar o verbo "calar-se". Seria, no mínimo, aético invocar um verbo de ação para propugnar exatamente o seu contrário, ou seja, a omissão injustificada. Como é que se pode, com o pensamento na Justiça, invocar a omissão diante da nulidade, e ainda maispara quem quer ser ético? É contra-senso dos mais graves e também atentatório à lógica e à inteligência mediana. Este é, sem dúvida, um raciocínio mais cético do que ético.

A ação e a participação popular no Estado Jurídico seria um recurso, um remédio que poderia combater o mal do elitismo político e o cinismo que aprisiona tanto a universidade, quanto o senso-comum; tanto os ricos, quanto os pobres; tanto os políticos, quanto o povo. Enfim, seria um meio de se assegurar maior legitimidade às estruturas do Estado, do Governo, e à política de modo mais amplo. Seria uma maneira viável de se buscar maior legitimidade a esse moderno contrato social que nós muito alegamos, mas que tanta falta nos faz: a Constituição Política que não sai do papel.

Não raramente, o que vivenciamos no Brasil é a quebra de qualquer base política democrática e, com isso, é nítida a ausência de uma moral republicana. Mas tomemos o exemplo concreto da transformação do Poder Popular em Poder Extroverso.


Do Poder Popular e do Poder Extroverso

O moderno contrato social — a Constituição Federal — deveria atestar o reconhecimento da firma social, e assim deveria receber a chancela pública e popular. Por exemplo, o voto depositado no referendo que necessariamente deveria se seguir à promulgação da nossa Constituição, em 1988, seria o carimbo de encaminhamento à legitimação da soberania estatal, e ainda asseguraria que o Direito fosse mais reconhecido do que imposto e, portanto, realmente social. Um Estado Jurídico Popular é aquele em que o povo participa, referenda e assegura o controle do Poder Extroverso.

Neste contexto, por exemplo, a Assembléia Nacional Constituinte de 1986 representaria a soberania popular e a pujança do Poder Constituinte [12], ao passo que o ato da promulgação da Constituição Federal de 1988 — de modo inverso — instituiu o Poder Constituído e com este adveio o Poder Extroverso, agindo-se por contrato de representação exatamente desse novo contrato sócio-jurídico inaugural (a própria Constituição que nascia).

Quando o Estado formaliza o processo de renovação legislativa e instaura a Assembléia Nacional Constituinte, não estará com essa ação recorrendo à renovação de si mesmo e, agindo assim, também não estaria impondo a si mesmo a atualização das diversas condições objetivas (jurídicas e políticas) da autolimitação do Poder Público?

Assim, a passagem do Poder Constituinte ao Poder Extroverso equivaleria à transformação da soberania popular em soberania estatal – daí a idéia de que o "império da lei", garantido pela ação decisiva da força do Estado, não é ato arbitrário, mas sim decorrente da especialidade das funções públicas e inerente à organização do próprio Poder Constituído. A mesma divisão de funções e de repartições que compõe a interdependência dos poderes — um dos muitos meios aptos a permitirem a visualização do Estado Jurídico.

Teoricamente, o Poder Extroverso não é o "poder de império" (em definitivo) porque a soberania popular, manifesta no Poder Constituinte, legitima as ações do Estado, tal qual deveria estar previsto na Constituição (promulgada), e assim também estaria de acordo (formalmente, intencionalmente) com os ditames do "império da lei", reafirmando, por fim, a autolimitação do próprio Estado.

De modo precisamente técnico, o que se entende por Poder Extroverso?

As normas de direito público outorgam ao ente incubido de cuidar do interesse público (o Estado) posição de autoridade nas relações jurídicas que trave. Expressa-se no poder de impor deveres ao outro sujeito, independentemente da concordância deste. A lei (espécie de ato estatal, regido pelo direito público) ingressa no âmbito jurídico dos indivíduos, impondo-lhes deveres. E, como se sabe, o legislador não consulta os atingidos pela lei a fim de saber se estão ou não de acordo com a norma a ser posta. O mesmo se passa com o ato administrativo, como a ordem determinando o pagamento de uma multa de trânsito. Também como a sentença do juiz determinando a entrega de bem por um indivíduo a outro. Por isso se diz, usando uma figura de linguagem, que a relação jurídica de direito público (isto é regida pelo direito público) é vertical: um sujeito (o Estado) se situa em posição mais elevada que o outro (o particular). A essa espécie de poder, consistente na possibilidade de obrigar unilateralmente a terceiros, chamamos de poder extroverso (Sundfeld, 2004, p. 69).

Vimos, portanto, que nem mesmo teoricamente nossa dimensão constitucional está completa e é claro que isto acarreta efeitos negativos ao Direito como um todo, à prática política, à estrutura de Governo, às bases sociais. Simplesmente não tivemos (em 1988) e não temos hoje em dia uma estrutura social e política de legitimação popular do Direito, e isso também acirra o cinismo em torno de toda pretensão jurídica do Estado, no Brasil.

De todo modo, sem procedimentos de legitimação populares, nossa descrença só tende a crescer e isto tanto vale para a política, quanto para o Direito; tanto está na lei, quanto no Estado, pois falta-nos esse atestado mínimo de validade, ou seja, não se trata de modificar as leis, mas sim de torná-las reconhecidamente válidas pelo povo.

O Estado Jurídico, então, é um tipo de Estado em que se propôs a incumbência de organizar o Poder Político com mais Justiça. Portanto, também pode-se dizer que não vale mais o binômio (seco) Direito/Coerção, pois, no âmbito do Estado Jurídico, se o Direito é o meio principal de regulagem do Poder Político, então, não faz muito sentido mesmo supor que o Estado produza um direito coercitivo para aplicar contra si.

Nos golpes militares, pode-se dizer que as forças armadas agem violentamente contra o governo, como ocorreu em 1964, no Brasil; mas agir com violência contra algum Estado, supõe-se um estado de guerra – e esta é outra situação, bem diversa da analisada aqui.

Neste âmbito, é melhor pensar em Direito/Democracia ou Direito/Garantia, uma vez que a democracia formal deverá assegurar que o Estado tenha limites e que as garantias institucionais sejam instrumentos válidos e diretos. Mas será que hoje nós contamos com esse mínimo?

Por sua vez, o chamado Estado-Força [13] será ainda visível e verificável se estendermos um pouco mais a análise que procura combinar Direito e Força, ou o binômio Direito/Coerção. Esta relação, por sua vez, corresponde à análise do Direito como fato social, uma vez que, em Durkheim, o fato social tem como conteúdo mínimo obrigatório a generalidade, a externalidade e a coercitividade [14]. Por isso, vejamos um pouco de Durkheim.


O Direito como Fato Social

Com sua concepção/teoria do Direito como Fato Social, Durkheim teria antecipado as principais implicações e/ou efeitos práticos do Estado Jurídico? Teria sido um continuador da perspectiva de Max Weber ao propor as bases do Estado de Direito, a partir da dominação racional-legal (legítima), interposta por meio do império da lei? Ou não há nenhuma relação?

Vejamos, para o próprio Durkheim, como se constituem os efeitos do denominado fato social [15]:

"É fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter" (Durkheim, 1988, p. 52).

Tendo-se em conta esta definição de fato social, podemos dizer que o Direito não se reduz ao Direito Natural (até porque é uma construção social e histórica, como fato social materializável). Sobre essa questão ainda se pode invocar a recente história da positivação dos direitos humanos, como demonstração mais evidente de que esta positivação não se constituiu em processo homogêneo. Basta-nos ver que o direito à vida (o primeiro e básico Direito Natural [16]) não tem sua garantia assegurada na emblemática Constituição Americana.

Na verdade, esse processo histórico revela uma total subjetivação dos direitos naturais, do que decorrem opções e escolhas políticas, ideológicas, culturais, sociais, econômicas e isto propicia uma leitura da própria história política que circunda esses direitos escolhidos ou descartados.

Contudo, o próprio desenvolvimento histórico dos direitos humanos impôs limites ou restrições ao Estado, no sentido mais exato de que a positivação desses direitos naturais forjou um outro tipo de autocontenção estatal — o argumento externo (história) tornou-se garantia institucional interna (Direito Constitucional), e daí passou a proteger juridicamente o indivíduo e a obrigar o Estado.

De outro modo, poderíamos entender o Direito como um estrato social e derivado dos costumes, para além de sua positivação e/ou codificação, como é o caso do direito de lage, nas favelas e nos morros do Rio de Janeiro. Portanto, o Direito como fato social é profundamente histórico. Agora, a coerção sempre terá o mesmo sentido?

Já acerca da coerção inerente ao Direito, dirá Reale que pode tratar- se de pressão social condicionada, que é preciso boa dose de razoabilidade ou, simplesmente, que a coação potencial não é totalmente satisfatória:

"Podemos dizer que o pensamento jurídico contemporâneo, com mais profundeza, não se contenta nem mesmo com o conceito de coação potencial, procurando penetrar mais adentro na experiência jurídica, para descobrir a nota distintiva essencial do Direito. Esta é a nosso ver a bilateralidade atributiva" (Reale, 2005, p. 50).

Então, quando é que verificamos a própria bilateralidade da norma jurídica? Reale retoma toda a tradição para acentuar seu conceito, mas vamos direto ao ponto:

"[...] há bilateralidade atributiva quando duas pessoas [17] se relacionam segundo uma proporção objetiva que as autoriza a pretender ou a fazer garantidamente algo. Quando um fato social apresenta esse tipo de relacionamento dizemos que ele é jurídico" (Reale, 2005, p. 51).

Ou ainda, mais uma vez: "Bilateralidade atributiva é, pois, uma proporção intersubjetiva [18], em função da qual os sujeitos de uma relação ficam autorizados a pretender, exigir, ou a fazer, garantidamente, algo" (Reale, 2005, p. 51).

Assim, vimos como se estabelece um plano linear entre dois sujeitos de direitos. Porém, deve-se frisar que este plano em si não é suficiente para caracterizar o direito como fato social, pois falta-lhe a condição de ser geral: componente que, talvez, se esgote melhor nas alegações sobre as chamadas normas gerais e abstratas [19].

Esta condição também estaria mais próxima do efeito erga omnes, e a isso Reale irá acentuar como o necessário entrelaçamento de duas ou mais pessoas: "a) sem relação que una duas ou mais pessoas não há Direito (bilateralidade em sentido social, como intersubjetividade) (Reale, 2005, p. 51)" [20]. Também vemos em Reale, o liame entre objetividade e intersubjetividade na definição do Direito:

b) para que haja Direito é indispensável que a relação entre os sujeitos seja objetiva, isto é, insuscetível de ser reduzida, unilateralmente, a qualquer dos sujeitos da relação (bilateralidade em sentido axiológico); [...] c) da proporção estabelecida deve resultar a atribuição garantida de uma pretensão ou ação, que podem se limitar aos sujeitos da relação ou estender-se a terceiros (atributividade) (Reale, 2005, p. 51).

Mesmo o Estado deverá pautar-se pela relação de bilateralidade, no sentido de que suas implicações também atingiriam este chamado Estado Jurídico:

Dir-se-á que nesta espécie de normas não há nem proporção, nem atributividade, mas é preciso não empregar aquelas palavras em sentido contratualista [21]. Na realidade, quando se institui um órgão do Estado ou mesmo uma sociedade particular, é inerente ao ato de organização a atribuição de competências para que os agentes ou representantes do órgão possam agir segundo o quadro objetivo [22] configurado na lei. Há, por conseguinte, sempre proporção e atributividade (Reale, 2005, p. 52).

Vejamos um exemplo concreto da bilateralidade que se reflete no efeito erga omnes, ou seja, como externalidade e generalidade.

No âmbito dos direitos difusos (art. 81, parágrafo único, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor), o efeito da coisa julgada nas ações coletivas será erga omnes (art. 103, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor). Isto é, valerá para todas as pessoas se a ação for julgada procedente ou improcedente pela análise de mérito com provas produzidas adequadamente.

Na hipótese de procedência da ação, todos os consumidores se beneficiarão da sentença definitiva, inclusive para mover ações individuais. No caso de improcedência, há impedimento para a propositura de nova ação coletiva, mas não ficará impedido aquele que ajuizar ações individuais.

Conforme definição jurídica, erga omnes significa: "Perante todos. Ato, lei ou decisão que a todos obriga ou é oponível contra todos ou sobre todos tem efeito" (Paulo, 2002, p.127).

Também se define como locução latina que se traduz:

Contra todos, a respeito de todos ou em relação a todos. É indicativa dos efeitos em relação a terceiros, de todos os atos jurídicos ou negócios jurídicos a que se atenderam todas as prescrições legais, em virtude do que a ninguém é licito contrariá-los ou feri-los. Aplica-se indistintamente ao direito subjetivo e ao direito alheio (neminem laedere [23]), desde que a norma jurídica assegura aos respectivos titulares uso, gozo e posse, em relação a todas as demais pessoas (erga omnes), contra quem possam valer. (De Plácido, 2002, p. 312).

Este efeito de generalidade é o que tornaria o Direito reconhecidamente social e válido, pois se não é social na formulação (representação legislativa), que seja na aplicação (pelo Judiciário). Para Bobbio, no entanto, mesmo as referidas condições de generalidade e de abstração devem ser diferenciadas, bem como veremos que se trata de mera criação ideológica:

[...] julgamos oportuno chamar de "gerais" as normas que são universais em relação aos destinatários, e "abstratas" aquelas que são universais em relação à ação. Assim, aconselhamos falar em normas gerais quando nos encontramos frente a normas que se dirigem a uma classe de pessoas, e em normas que regulam uma ação-tipo (ou uma classe de ações) (Bobbio, 2005, pp. 180-181).

Essas condições de generalidade e de abstração como dissemos, por sua vez, são apenas implicações ideológicas/ideais e inerentes ao próprio Estado de Direito:

Se refletirmos sobre a quanto tenha inspirado a moderna concepção do Estado de direito a ideologia da igualdade e da certeza frente à lei, não será mais difícil dar-se conta do estreitíssimo nexo intercorrente entre teoria e ideologia, e compreender, portanto, o valor ideológico da teoria da generalidade e abstração, que tende não a descrever o ordenamento jurídico real, mas a prescrever regras para tornar o ordenamento jurídico ótimo, aquele em que todas as normas fossem em seu conjunto gerais e abstratas (Bobbio, 2005, p. 183).

Em concepção também baseada em Bobbio (2005), diz Celso Antonio Bandeira de Mello que a norma geral se refere a uma classe de sujeitos:

Generalidade opõe-se a individualização, que sucede toda vez que se volta para um único sujeito, particularizadamente, caso em que se deve nominá-la lei individual [...] a regra geral, isto é, dotada de teor de generalidade, apanha toda uma classe de indivíduos. Pode alcançá-los quer no presente, quer no futuro. Por isso, nada obsta que — sem prejuízo de sua generalidade — eventualmente colha, no presente, apenas um indivíduo e os demais, alojáveis na categoria, venham a existir somente no futuro (Mello, 2005, pp. 26-7).

Entretanto, entre generalidade e individualização da lei, há casos ou exemplos que podem repartir as atenções. Vejamos o exemplo do oligopólio da indústria tabagista: a indústria do fumo movimenta milhões de dólares no Brasil, mas é extremamente prejudicial à saúde da população. Assim, restringir sua ação provocaria a melhoria da saúde em geral [24], porém, com grande e grave impacto na economia.

A ação do governo, mantendo a produção como está, seria de boa-fé porque estaria resguardando os interesses dos produtores – até porque são milhares de pequenos produtores rurais. Mas, por outro lado, se atendesse aos interesses das empresas produtoras, estaria agindo de má-fé, pois seria movido pela ação do Loby. Mas, então, com boa-fé ou com má-fé, o efeito não seria o mesmo? Não se estaria simplesmente resguardando a produção — plantio e comercialização —, e isto não acarretaria no mesmo resultado?

Desse modo, para que a regra seja justa, ética, não basta que se defina e se reproduza como "fato social". Seria preciso garantir que o Direito como fato social também fosse acolhedor de um ethos republicano, tal qual se apresenta nas ambições do Estado Jurídico.

O Direito como fato social, portanto, ao mesmo tempo em que expressa o chamado Estado-Força [25], revela a ideologia integradora que há por trás do Estado de Direito. Uma condição ideológica/idealista que, por sua vez, deverá ter um pouco mais de materialidade no Estado Jurídico – uma materialidade em dois sentidos: a) a materialidade ou a objetividade [26] (jurídica) expressa no maior grau de juridicidade; b) a sociedade civil organizada (não-estatal ou estandartizada) é fonte de enorme demanda jurídica, de pressão social e, assim, exerce controle sobre o Poder Político.

A exigência social de novos direitos impõe (obviamente) ao Estado a contenção de certas ações políticas – neste sentido, a soberania estatal, historicamente, sempre foi controlada, impulsionada pela soberania popular (a fonte da principal demanda por novos direitos [27]).

Quanto ao Direito como realidade da Coerção, e que corresponde à primeira parte da observação feita por Durkheim, em sua clássica definição de fato social, Reale ainda nos lembra da teoria de Ihering — o pensador originário deste binômio Direito/Coerção:

Para Jhering, um dos maiores jurisconsultos do passado milênio, o Direito se reduz a "norma + coação", no que era seguido, com entusiasmo, por Tobias Barreto, ao defini-lo como "a organização da força". Ficou famoso o seu temerário confronto do direito à "bucha do canhão", o que se deve atribuir aos ímpetos polêmicos que arrebatavam aquele grande espírito (Reale, 2005, p. 47).

Sob esse ângulo da abordagem, a coerção do Estado-Força rivaliza com o potencial de Justiça do Estado Jurídico, mas vejamos o próprio Ihering (2002), especialmente quando se refere ao binômio:

O fim do direito é a paz, o meio de que se serve para consegui-lo é a luta. Enquanto o direito estiver sujeito às ameaças da injustiça — e isso perdurará enquanto o mundo for mundo —, ele não poderá prescindir da luta. A vida do direito é a luta: a luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos [...] O direito não é uma simples idéia, é uma força viva. Por isso a justiça sustenta numa das mãos a balança com que pesa o direito, enquanto na outra segura a espada por meio da qual o defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada, a impotência do direito. Uma completa a outra, e o verdadeiro estado de direito só pode existir quando a justiça sabe brandir a espada com a mesma habilidade com que manipula a balança (Ihering, 2002, p. 27).

A luta e a defesa pelo Direito, enquanto uma ação típica e própria da passagem do Estado-Força ao Estado Jurídico, encontra-se mais em meio à tempestade social e menos de acordo com a calmaria da dogmática jurídica. Em outra passagem de Ihering fica bem clara sua aposta na capacidade inusitada/quase-ilimitada do Poder Extroverso no bojo do Estado-Força, e é evidente que são idéias-força nem sempre populares e/ou democráticas:

O requisito absoluto do Poder Público, exigido mesmo pela própria finalidade do Estado, é a posse da suprema força, superior a qualquer outro poder no âmbito do Estado. Todo e qualquer outro poder, quer individual ou coletivo, deve situar-se sob ele, que há de colocar-se em superposição. Em função disso, a língua designa aquele aspecto da relação como submissão (submetido, súdito, sub-ditus) e este, como soberania (supra, supranus, sovráno), o próprio Poder Público que a detém, como autoridade, [28] o ato pelo qual o Poder Público se dilata por sobre um território que até então a ele não se submetia, como submissão, conquista [29](Ihering, p. 66).

De qualquer forma, analisando criticamente, é esta marca de segurança, de previsibilidade, de quase-certeza, tão presentes no Estado-Força, que ainda é utopia no Estado Jurídico. Como lembra Bobbio, precisamos ter uma certeza jurídica forjada no princípio da igualdade jurídica, uma certeza de que a Justiça está na outra ponta do Estado Jurídico:

"A lei é igual para todos", é, indubitavelmente, a generalidade da norma, isto é, o fato de que a norma se dirija não àquele ou a este cidadão, mas à totalidade dos cidadãos, ou então a um tipo abstrato de operador na vida social. Quanto à descrição abstrata, ela é considerada como a única capaz de realizar um outro fim a que tende todo ordenamento civil: a certeza. Por "certeza" se entende a determinação, de uma vez por todas, dos efeitos que o ordenamento jurídico atribui a um dado comportamento, de modo que o cidadão esteja em grau de saber, com antecedência, as conseqüências das próprias ações (Bobbio, 2005, p. 182).

Neste caso, trata-se da principal garantia da Justiça que se desejaria fosse o fundamento do ordenamento jurídico. O que ainda nos permite concluir que o Direito como fato social não implica necessariamente em Justiça — até porque pode sustentar-se unicamente como força e/ou mera dominação.

O Estado Jurídico deve patrocinar a autolimitação/contenção de toda forma de poder abusivo, e só assim será possível pensar na responsabilidade civil (e até penal) da pessoa jurídica.

O Estado Jurídico, finalizando, tem a grande vantagem de nutrir uma forte expectativa no Direito, como meio concreto de se controlar o Estado e assim se alcançar a Justiça. Porém, historicamente, o Estado Jurídico já enfrentou (enfrenta) adversários pesos-pesados, a exemplo dos regimes nazi-fascistas do passado (e viventes no presente).


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NOTAS

01 Sob essa ótica, o Direito dos povos da floresta é o Direito em essência, verdadeiramente social, sociável, socializante, uma vez que não se corrobora pela força, coerção, mas sim pela negociação, pelo hábito, pelas contingências realmente gerais e externas da vida social. Neste caso, a externalidade jurídica impõe que se abrigue o Outro e é este Outro que torna a regra geral e abstrata o ponto de partida na formação do real sujeito de direitos. Aí o sujeito de direitos não nasce a partir do eu, isto é, dos direitos individuais, mas sim do coletivo.

02 No sentido de que há "faixas de liberdade" independentes, até certo modo, da opressão ou da manipulação política e um pouco distante das determinações econômicas. Não que não ocorram as tais determinações econômicas, mas não ocorre apenas esse tipo de determinação.

03 Os partidos políticos, na verdade, estão no meio termo, pois tanto precisam da autoridade estatal para funcionarem, quanto representam "partes" sociais significativas.

04 Se o não-Direito é o arbítrio, então, o Estado de não-Direito é um Estado Arbitrário.

05 O texto é uma síntese de duas reflexões: a) uma na graduação, na disciplina Teorias do Estado, sob o tema Estado Jurídico, e; b) outra, a partir de duas aulas em curso de Mestrado em Direito, com a disciplina Fundamentos Sociológicos do Direito, sob o tema: o Direito como fato social.

06 "Todas as teorias que pretenderam examinar o assunto, como se a matéria fosse de Direito Constitucional, estão fadadas a insucesso. Este é um assunto de Teoria do Estado, a qual não pode deixar de examinar o problema sob três prismas ou três aspectos distintos: o sociológico, o jurídico e o político" (Reale, 2005, p. 275).

07 Vale dizer, sob a ação propulsora das forças sociais progressistas.

08 Como lembra Reale: "Quis custodiet custodem?" (2000, p. 255).

09 Sinteticamente: a) império da lei; b) separação dos poderes; c) garantia dos direitos individuais.

10 Como contrato social inicial que celebraria a formação do Estado e subsequentemente do Direito.

11 Essa concepção acompanha, obviamente, a célebre definição de que "O Estado detém o monopólio legal do uso legítimo da força física e o monopólio da produção e da sistematização jurídica".

12 Independentemente das questões ideológicas (lobbies capitalistas) que a permearam, foi uma clara manifestação do Poder Popular.

13 De certo modo, o Estado nascido em 1988 lutava contra o Estado-Força da ditadura militar do pós-64.

14 Alguns diriam coercibilidade, pensando-se no binômio prevalecente Direito/Coerção e na atual definição funcional do Estado, em que exerce o monopólio da força física, a coerção restrita.

15 Lembrando que o fato social é composto de três fenômenos intercambiantes: coercitividade; externalidade; generalidade. Com isso, Durkheim também intentava afirmar o direito capitalista, sobrepondo-se à antiga concepção do Direito Natural, pois, esta positivação (especialmente do direito à propriedade) era importante para o capital.

16 Direito do qual decorrem os demais direitos.

17 No Estado Jurídico uma dessas duas pessoas é o próprio Estado — que se obriga pela auto-regulação — e, por isso, poderá ser tratado como pessoa política e/ou pessoa jurídica.

18 Entendido enquanto direito individual e que permite agir ou não-agir em razão do arbítrio que decorre desse mesmo direito.

19 Como indicava Durkheim: "a norma é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter".

20 Aqui, a idéia da norma geral se apresenta como a bilateralidade em sentido social, como intersubjetividade.

21 O fato social não deixa de ser contratualista. Mas, hoje, o novo contrato social seria reduzido à Constituição Política republicana e, portanto, não só de papel.

22 É de se lembrar que se trata, obviamente, dos estatutos próprios do funcionalismo público (a exemplo do Estatuto do Magistério) ou do Direito Administrativo em geral.

23 Com pretensão de Justiça.

24 Aqui entra a figura do consumidor.

25 E aqui se encaixa a primeira parte da definição de Durkheim: "É fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior". Direito = coerção.

26 Vendo-se o direito objetivo como conjunto global do direito positivo, positivado: o Direito Civil, o Direito Penal etc.

27 Podemos lembrar aqui as chamadas gerações de direitos humanos.

28 Vejamos a nota do tradutor: "No original, Ihering emprega a expressão Obrigkeit, que é derivada de Oben (= acima)". No sentido claro de colocar-se acima de...alguém, de todos os demais.

29 Por isso, entendemos que Ihering será o criador desse Estado-Força, mais inclinado a este do que propriamente ao Estado Jurídico – que exige justamente o controle sobre a máquina do Estado.


Autor

  • Vinício Carrilho Martinez

    Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. O Estado-força e o não-Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 863, 13 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7575. Acesso em: 5 maio 2024.