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As relações entre o Direito Internacional e o Direito interno

As relações entre o Direito Internacional e o Direito interno

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Sumário: 1. Introdução / 2. Dualismo / 3. Monismo / 4. Críticas às Teorias Monista e Dualista [1]


1.Introdução

Pode-se iniciar este artigo com a seguinte indagação: "O Direito Internacional e o direito interno de cada Estado são duas ordens jurídicas distintas ou são fontes do mesmo Direito?" [2]. Esta pergunta tem movimentado todos os estudos recentes sobre conflitos entre normas internacionais e internas, fato que tem tornado a discussão um pouco desgastada pela doutrina. Ainda assim, reconhecendo-lhe um certo caráter déja vu, a questão torna à baila.

É bem verdade que, apesar deste desgaste conceitual, a questão da relação entre o Direito internacional e o interno só começou a ser estudada, sistematicamente, no final do século XIX; malgrado Marota Rangel reconheça na literatura européia uma preocupação com o tema há pelo menos quatrocentos anos: "(...) quatro séculos, desde quando aliás o aforismo International Law is part of the Law of the land, passou a informar a jurisprudência dos Tribunais de presas inglesas." [3]. O estudo desta relação enveredou-se em torno de duas vertentes que apesar de desgastadas e criticadas como reducionistas, são ainda citadas e referidas em qualquer obra sobre o tema. Estas correntes são o monismo e o dualismo, que serão tratados a seguir. Mesmo a boa doutrina, como a de Mirtô Fraga, reconhece que: "As teorias monistas e dualistas fornecem as bases doutrinárias para a solução a ser adotada pelos Estados no conflito entre o tratado internacional e o direito interno" [4].

Ao se analisar a evolução do Direito Internacional, observa-se que o estreitamento das relações internacionais tem delineado um sistema internacional mais integrado, mais cooperativo. Esses movimentos que têm levado à crescente integração do sistema internacional, também chamados de movimentos globalizantes, têm imposto novas formas de relacionamento aos sujeitos internacionais. Nesse contexto, cada vez mais, o Direito internacional vai se tornando, ao mesmo tempo, um elemento de coesão e de tensão nas relações entre os sujeitos internacionais. É um elemento de coesão, à medida que vai conseguindo estabelecer a cooperação entre os atores internacionais e o equilíbrio do sistema internacional. Essa coesão implica a harmonização das duas ordens, interna e externa. Por outro lado, pode ocorrer, inversamente ao cenário de estabilidade, uma contradição de interesses entre as duas ordens, a estatal e a internacional; no caso do Direito Internacional, das duas ordens jurídicas, a interna e a externa.

A dicotomia estabelecida pela independência entre o Direito internacional e o Direito interno tem levado a problemas doutrinários e práticos sem que se consiga chegar, todavia, a um consenso acerca da predominância de um Direito sobre o outro [5]; pois, havendo um conflito entre uma fonte originária do Direito Internacional e uma de Direito interno, qual delas deverá prevalecer? Vale ressaltar que há também os que digam que essa disputa doutrinária é irrelevante e inócua. Segundo Ross, tratar-se-ia de uma "disputa de palavras" [6].

Como já fora mencionado, são duas vertentes de análise principais para se estudar a relação entre o Direito internacional e o Direito interno: o dualista e o monista. A prima facie, pode-se dizer que o dualismo pressupõe que o Direito Internacional e o Direito interno são noções diferentes, pois estão respectivamente fundamentados em duas ordens: interna e externa. O monismo pressupõe que o Direito internacional e o Direito interno são elementos de uma única ordem jurídica e, sendo assim, haveria uma norma hierarquicamente superior regendo este único ordenamento. Esta teoria, ainda, apresenta duas posições: uma, que defende a primazia do Direito interno, e, outra, a primazia do Direito Internacional.

Junto às teorias monista e dualista, existe uma outra abordagem, consagrada pelo pluralismo com subordinação parcial, que tenta conciliar alguns postulados de ambas as teorias. Essas teorias, que ficaram conhecidas como Teorias Conciliadoras, como bem ressalta Celso Mello: "(...) não teve aceitação na prática ou na doutrina e consagra uma distinção entre as normas internacionais que não tem qualquer razão de ser, nem é encontrada na prática internacional" [7].

Além desta vertente crítica do monismo e do dualismo, surgiram outros posicionamentos críticos, que também merecem menção.

Não se pode negar que o dualismo, o monismo e a perspectiva conciliadora, assim como os outros posicionamentos críticos, trazem à luz acadêmica uma discussão que parte, grosso modo, de três hipóteses diferentes e, portanto, reciprocamente contraditórias. Uma breve análise dessas hipóteses cumpre auxiliar na busca de um entendimento do conflito potencial entre fontes internacionais, especialmente, entre o tratado internacional e a ordem jurídica interna.


2. Dualismo

O primeiro estudo sistematizado acerca da existência de um conflito entre normas foi realizado por Heinrich Triepel [8], em 1899, na obra Volkerrecht und Landesrecht, considerada, como reconhece G. A Walz : "(...) la plus importante pour le problème en question." [9]. Os ensinamentos de Triepel foram desenvolvidos, mais tarde, em 1905, na Itália, por Dionisio Anzilotti, em sua famosa obra intitulada Il Diritto Internazionale nel Giudizio Interno. É necessário observar que Anzilotti apresenta um dualismo diferente do formulado por Triepel; por exemplo, quando Anzilotti assevera que, em alguns casos, o Direito Internacional pode ser aplicado pelo Direito interno sem a devida transformação. Outros italianos, como Sereni e Perassi, também seguem o modelo do dualismo, fazendo da Escola Italiana de Direito Internacional um importante porta voz dessa teoria.

Cumpre lembrar que fora Alfred Verdross, em 1914, quem denominou essa teoria de dualista, quando, apenas em 1923, Triepel utiliza o termo dualismo em seus escritos. Os estudos de Triepel figuram, em princípio, no plano das perspectivas pluralistas, como observa Walz [10] e Verdross [11]; pois, na verdade, o dualismo admite não só duas, mas, várias ordens jurídicas: a nacional, por um lado, e a internacional, por outro. Não obstante, a definição de dualismo pode ser resumida como sendo:

The chief exponents of dualism are Triepel and Anzilotti. Triepel maintains that the two system of international law and State law are entirely differente in nature. [12]

La teoria dualista ou pluralista, fundada por Triepel y Anzilotti y representada todavía hoy por la doctrina italiana afirma que DI y el derecho interno son dos ordenamientos jurídicos absolutamente separados, por tener fundamentos de validez y destinatarios distintos. [13]

Dentro do que se denomina de teoria dualista, ainda aparecem várias visões e postulados que acabam por quebrar a unidade conceitual de um corpo teórico [14]. Anzilotti e Verdross, tomando por base os trabalhos de Triepel, mesmo sendo adeptos do dualismo, estabeleceram novas abordagens que contradizem alguns aspectos da teoria desenvolvida a priori. Da mesma forma, Anzilotti e Verdross incluíram, cada um a sua forma, novos elementos no corpo teórico do dualismo. Nesse contexto, sem querer dirimir a importância dos demais teóricos, que destinaram consideráveis esforços para a questão do conflito de normas, é, realmente, Triepel o ponto de partida para se entender, não apenas o dualismo, mas, também, as nuanças conceituais desenvolvidas por outros autores e que têm permeado o corpo teórico do dualismo jurídico por todo o século XX [15].


3. Monismo

O monismo surge como contra-ponto do dualismo defendido por Triepel. Grosso modo, a teoria monista não aceita a existência de duas ordens jurídicas autônomas, independentes e não-derivadas. O monismo sustenta a tese da existência de uma única ordem jurídica. Esta concepção apresenta duas variáveis de compreensão: a que defende a primazia do Direito interno e, a outra, a primazia do Direito Internacional.

Como observa Celso de Albuquerque Mello, o monismo com primazia do Direito interno tem suas raízes no hegelianismo, que considera o Estado como tendo uma soberania absoluta [16]. Segundo esta concepção, o Estado não pode estar sujeito a nenhum sistema jurídico que não tenha emanado de sua própria vontade; pois, o fundamento do Direito Internacional, segundo Jellinek, é a autolimitação do Estado já que o DI tira sua obrigatoriedade do Direito interno [17]. Nesse marco, o Direito Internacional traduz-se em um direito estatal externo, seria um tipo de Direito interno que os Estados aplicam em âmbito internacional [18]. Os precursores dessa corrente são Wenzel, os irmãos Zorn, Decencière-Ferrandière, Korovin, George Burdeau e Verdross -num primeiro momento [19].

Quanto ao monismo com primazia do Direito Internacional, fora desenvolvido pela Escola de Viena cujos principais representantes são Kelsen, Verdross e Kunz. Mas, é Kelsen quem se destaca ao formular a Teoria Pura do Direito, na qual estabeleceu a conhecida pirâmide de normas. Pode-se resumir a lógica da pirâmide dizendo que uma norma tem a sua origem e tira a sua obrigatoriedade da norma que lhe é imediatamente superior; e, a norma primeira é denominada de Grundnorm. Essa concepção fora denominada, na sua primeira fase, de Teoria da Livre Escolha. Ulteriormente, por influência de Verdross, Kelsen sai do seu indiferentismo e passa a considerar a Grundnorm como sendo uma norma de Direito Internacional, ou seja, a norma consuetudinária pacta sunt servanda [20]. É de se observar que, em 1927, Duguit e Politis defenderam o primado do Direito Internacional e foram apoiados pela Escola Realista francesa, esta se fundando em argumentos sociológicos [21].

Nesse ínterim, vale ressaltar os aspectos históricos que levaram a afirmação do monismo. Foi no período pós-II Guerra Mundial que o monismo encontrou sua majoritária aceitação pelos teóricos de todo o mundo. Como diz Walz:

Toujours, dans les periodes de pertubation et de tension internationales, la tendence de trouver un ordre commun à l’humanité tout entière a préocupé les esprits. Tous les grands penseurs ont eu à coeur de formuler une explication à la fois valable pour la nature et l’ordre du monde politique. Aussi est-il naturel que la periode d’après guerre, avec ses pertubations d’ordre politique, culturel et économique touchant l’humanité tout entière, a vu ressuciter cette tendence. [22]

O texto clássico e mundialmente conhecido de Kelsen, "Les Rapports de Système entre le Droit Interne et le Droit International Public", foi a mais importante contribuição doutrinária para a consolidação da teoria monista, principalmente no período pós-1945. De fato, a tendência à globalização das relações internacionais e o próprio élan do Direito Internacional, patrocinado pelas Nações Unidas, assim como alguns desdobramentos do cenário internacional, foram fatores que contribuíram decisivamente para o fortalecimento da ordem jurídica internacional. No sentido mais hegeliano, a Ordem do pós-II Guerra perece se direcionar a uma democratização das relações internacionais tendo o DI como organizador dessas relações. É nesse contexto que surgem as teses, como por exemplo aquelas acerca da corrosão da soberania nacional, da possibilidade do surgimento de organizações supranacionais e outras.

Nesta Ordem Internacional, malgrado a macroestrutura bipolar, as relações internacionais passam a ser empreendidas em um contexto mais integrado, onde a responsabilidade internacional aumenta e onde o tratado internacional passa a ser um elemento preponderante para a tendência globalizante das relações internacionais. Os processos hodiernos das relações internacionais demonstram que o monismo, com primazia do Direito Internacional, tem sido uma das vias utilizadas para se garantir a unidade e o equilíbrio do sistema internacional, já que pode evitar contradições e conflitos jurídicos internacionais. É bem verdade que o contrário também ocorre [23]. A questão é quantitativa, pois, do tratado internacional decorrem sérios conflitos, mas também decorrem a paz e a cooperação; assim, o desafio é o de se saber se o tratado internacional confere mais coesão ou mais tensão para as relações internacionais.

A tese monista referente à primazia do Direito Internacional sobre o Direito interno ganha, portanto, um especial destaque, mormente pelos internacionalistas, que afirmam que a observação dos tratados internacionais torna-se uma necessidade vital para a garantia de uma estabilidade sistêmica, na medida em que, podem evitar conflitos internacionais com demais Estados contratantes. Seja como for, é pelo prisma das duas variáveis monistas, aquela da primazia do Direito Internacional e a da primazia do Direito interno, que o debate jurídico-doutrinário se edifica.

Vale ressaltar, ainda, as contribuições de dois importantes juristas que seguiram o rastro de Triepel e ajudaram na fundação do monismo: Mestre e Mosler.

Em 1931, em artigo intitulado "Les Traités et les Droit Interne", Mestre se destaca na defesa do monismo. Ao se referir à discussão entre os monistas e dualistas, ele assinala seus objetivos: "Ma prétention est infiniment plus modeste et limitée; elle se bornera à un examen des diverses solutions positives qu’a comportées le problème posé." [24]. Ao analisar a jurisprudência francesa, em matéria de tratado internacional, ele discorre sobre a fórmula francesa consagrada em sua jurisprudência: "le traité a force de loi." [25].

Outro autor, influenciado por Mestre, que merece destaque, é Mosler. Em artigo "L’Application du Droit International Public par les Tribunaux Nationaux", de 1957, ele assevera que: "L’ordre juridique international et l’ordre juridique de l’État ne sont pas séparés, mais doivent être considérés comme des sphères de l’ordre juridique général." [26]. Partindo da premissa monista, Mosler demostra que existem normas de jus cogens que independem da vontade dos Estados e que o Direito Internacional encontra o fundamento de sua existência no Direito interno dos Estados, visto que, o Direito Internacional "ne suffit à lui même", necessita do ordenamento interno para ser executado. Por este prisma, o objetivo de Mosler, no referido artigo, é tratar da aplicação do Direito Internacional na jurisdição interna dos Estados, por meio dos Tribunais Nacionais. E, conclui, após uma análise de Direito Constitucional Comparado de alguns Estados, que as novas Constituições não conseguem regular as relações entre Direito Internacional e Direito interno, a não ser de forma aproximada, portanto, ainda longe da forma ideal, segundo ele.

Um crítico que também merece destaque é Walz. Em suas observações acerca da Teoria Normativa Transcendental - reine Rechtslehre Kelsens -, Walz discorre sobre a importância da teoria transcendental, que tem suas bases em Kant. Com a afirmação: "La méthode caractérise la conception et le système. Le monde de la substance, du réel, subit une systématisation." [27], Walz introduz a hipótese a qual afirma que, quanto mais se afasta do mundo dos fatos para a realização do método transcendental, mais científico será o resultado obtido a partir dessa pesquisa. Deve-se considerar que o Kantismo moderno - das erkenntnisgenetishe Denken -, que implica uma modificação nas bases originárias elaboradas por Kant, é a base para a Teoria Transcendental, cujas premissas principais são a unidade e a pureza das idéias. Dessa forma, a idéia, ou concepção, torna-se mais pura à medida que vai evoluindo em direção ao mundo abstrato afastando-se, cada vez mais, do mundo material.

A Teoria Transcendental concentra-se no aspecto puramente normativo do Direito, conflitando-se com o mundo dos fatos, da realidade. Sob esse ponto de vista, Walz diz que:

Si le droit relève donc du monde normatif et si la pureté de la conception se complète par le désintéressement absolut du monde réel et historique, l’unité de la jurisprudence doit être réalisée par la désignation d’une norme fondamentale, logique, suprême, dont se déduiront toutes les auttres normes faisant partie du système du droit. [28]

Este é o primeiro postulado do princípio fundamental da Teoria Transcendental. A norma fundamental é considerada como sendo a fonte suprema da ordem jurídica positiva; aliás, a positivação de uma ordem jurídica corresponde à possibilidade de ser deduzida de uma norma fundamental suprema.

A concepção monista de Kelsen, na verdade, encontra paralelos na antiga idéia de Christian Wolff sobre civitas maxima, onde a sociedade de Estados torna-se a ordem jurídica predominante, e, considerando-se o método transcendental, no qual a ordem jurídica e o Estado são noções idênticas, o Direito Internacional se incorpora pela civitas maxima em sua forma moderna; pois, é do Direito Internacional que as ordens estatais derivam [29].

Um outro método, além do método transcendental utilizado por Walz, é o da argumentação psicológica que também visa a provar a unidade das duas ordens jurídicas. O precursor dessa abordagem é Krabbe e sua tese objetiva interpretar o Direito existente; pois: "(...) ce n’est pas la spéculation mais bien la réflexion qui doit fonder la suprématie du droit positif." [30]. Krabbe afirma que o Direito Internacional, assim como todo e qualquer Direito, se funda sob a consciência: "Le droit international est interprété comme étant un droit supernational, puisqu’il y existe une communauté juridique supérieure englobant tous les Etats." [31]. Ademais, os sujeitos do Direito Internacional não são os Estados, mas, sim, os homens e a diferença entre as duas ordens jurídicas está no âmbito dos valores. O DI não pode ser concebido sem a existência de uma ordem jurídica interna. Vê-se, portanto, que segundo as argumentações psicológicas, os sujeitos, os conteúdos e os objetos são os mesmos para ambas as ordens e que a distinção está no campo dos valores, por essa razão, o DI: "(...) possède une valeur juridique supérieur et domine ainsi le droit national." [32].

Os métodos da teoria transcendental e das argumentações psicológicas, assinalados por Walz, são modelos teóricos aplicados nas argumentações a favor do monismo com primazia do DI. Esses esforços devem, ainda, ser completados com uma breve análise dos fundamentos de Kelsen, visto que, é a partir de seus trabalhos que o monismo ganha espaço no debate jurídico internacional [33].


4. Críticas às Teorias Monista e Dualista

Desde o início do século XX, sobremaneira pela contribuição das publicações no Recueil des Cours, foi estabelecendo-se uma doutrina internacional dentro da qual se desenvolveu um fecundo debate sobre a relação entre o Direito Internacional e o Direito interno dos Estados. Hoje, o que Visscher assegurava há mais de 50 anos atrás, que International law is part of the land, não mais é questionado na atual sociedade internacional [34]. O Direito Internacional já é parte do Direito interno dos Estados. O debate atual gira em torno da forma de relação entre o Direito Internacional e o Direito interno, a partir da qual se questiona a imperatividade das normas internacionais, bem como efetividade dos tratados internacionais, na ordem jurídica interna. Quer dizer, questionam-se, sim, acerca das formas de internalização do direito internacional no ordenamento jurídico dos Estados, questionamento que esbarra na soberania nacional.

Para Hildebrando Accioly, os Estados cumprem as normas derivadas do Direito Internacional, e são exceções, na atual sociedade internacional, aqueles Estados que ainda pretendem submeter o Direito Internacional ao seu Direito interno [35]. Nesta situação, a soberania nacional é utilizada como fundamento para autodeterminação do Estado em face o Direito Internacional.

Mirtô Fraga tem um entendimento bastante conciliador:

A adoção pode ser automática ou não; a superioridade do tratado sobre a lei pode ser expressa, sendo verdadeira, também, a posição oposta; pode-se ainda, nada estabelecer, competindo, nesse caso, aos Tribunais a tarefa de determinar qual delas deva ser aplicada; é certa, no entanto, a tendência de se procurar uma interpretação que permita a conciliação. [36]

Nádia de Araújo, apesar de reconhecer que as teorias monista e dualista apresentem-se ainda como uma referência no estudo das relações entre o Direito interno e o Direito Internacional, também assegura que:

Saber se há separação de qualquer espécie entre o ordenamento jurídico nacional e o internacional, e, ainda, em que qualidade o tratado integra o ordenamento jurídico interno traz à tona a velha controvérsia entre as idéias colocadas, nos anos 20, por dualistas e monistas, correntes teóricas que até hoje assombram a doutrina nacional. [37]

Pelo texto acima, pode-se deduzir que a autora lamenta a insistente referência destas duas teorias como vias exclusivas para se estudar a relação entre as duas ordens jurídicas. Assim como Nádia de Araújo, outros autores e acadêmicos têm criticado a dicotomização do estudo da relação entre o Direito Internacional e o Direito interno reduzindo-o em duas vias de explicação: monismo e dualismo. Com efeito, o tema é controvertido e ainda suscita especulações doutrinárias.


Notas

1 Vale citar algumas obras da bibliografia indicada por Celso Mello acerca desse tópico: Dionisio Anzilotti. "Il Diritto Internazionale nel Giudizi Interni", in Schitti di Diritto Internazionale, vol I, 1956, pp. 291 e seg.; Henrich Triepel. "Les Rapports entre les Droit Interne et le Droit International",in RDC, 1923, T. I, pp. 77 e seg.; Erich Triepel. "Traité International et Loi Interne", in Mélanges Gilbert Gilde, 1963, pp. 383 e seg.; Gustav Adolf Walz. "Les Rapports du Droit International et du Droit Interne", in RDC, 1937, Vol. III, T. 61. Pp. 379 e seg.; G. Barile. Diritto Internazionale e Diritto Interno. 1960; Pedro Baptista Martins. Da Unidade do Direito e da Supremacia do Direito Internacional. 1942; Riccardo Monaco. L’Odinamento Internazionale in Raporto all’Ordinamento Statuale. 1932; H. F. Panhuys. "Relations and Interactions between International and National Scenes of Law", in RDC, 1964, Vol. II, T. 112, pp. 7 e seg.; Pierre lardy. La Force Obligatoire du Droit Interne. 1966; Wilhelm Wengler. "Réflexion sur l’Application du Droit International Public par les Tribunaux Internes", in RGDIP, 1968, no. 4, oct/dec, pp. 921 e seg.; H Mosler. "L’Application du Droit International Public par les Tribunaux Nationaux", in RDC, 1957, vol. I, t. 91, pp. 619 e seg.; M. Miele. "Les Organisations Internationales et le Domaine Constitutionnel des États", in RDC, 1970, vol. II, t. 131, pp. 309 e seg.; Edoardo Vitta. "International Conventions and National Conflict Systems", in RDC, 1969, vol. I, t. 126, pp. 111 e seg.; Juan Carlos Puig. "Derecho de la Comunidad Internacional y Derecho Interno", in Estudios de Derecho y Política Internacional, 1970, pp. 265 e seg.; Vicente Marotta Rangel. "Os Conflitos entre o Direito Interno e os Tratados Internacionais", in BSBDI, jan. dez, 1967, nos. 45 e 46, pp. 29 e seg.; Wilfried M. Bolewski. "Les Certificats Gouvernamentaux Relatifs à l’Application du Droit International par le Juge Anglais", in RGDIP, 1973, no. 3, juilet/ sep., pp. 672 e seg.; F. A Mann. Studies in International Law. 1972, pp. 327 e seg.; A Cassese. "Modern Constitutions and International Law", in RDC, 1985, vol III, t. 192, pp. 333 e seg.; Michel Waelbroeck. "Les Effets Internes des Accords Internationaux Conclus par Communauté Économique Européenne", in Mélanges Charles Chaumont, 1984, pp. 579 e seg.; Joel Rideau. "Constitution et Droit International dans les États Membres de Communautés Européenes",in Revue Française Droit Constitutionnel, 1990, no. 2, pp. 259 e seg.

2 FRAGA, Mirtô. O Conflito entre Tratado Internacional e Norma de Direito Interno. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 03.

3 RANGEL, Vicente Marotta. "Os Conflitos entre o Direito Interno e os Tratados Internacionais", in BSBDI, nº 44-45, pp. 29-64, 1967, p. 30.

4 FRAGA, Mirtô. O Conflito entre Tratado Internacional e Norma de Direito Interno. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. XIII.

5 Realmente, a teoria e a prática são coisas distintas, fato que mereceu atenção exclusiva. Mirtô também reconhece esta independência: "A questão pode ser estudada de dois pontos de vista: o teórico e o prático." (FRAGA, Mirtô. O Conflito entre Tratado Internacional e Norma de Direito Interno. Op. cit., p.04)

6 MELLO, Celso. Curso de Direito Internacional Público. op. cit., p. 82.

7 Id. Ib., p. 87.

8 Triepel estudou na Universidade de Fribourg, em Brisgau, e na de Leipzig, onde adquiriu seu título de Doutor em Direito, em 1891. De 1890 a 1897, Triepel trabalhou com a prática jurídica, nesses últimos anos, como juiz suplente (Richter) no Tribunal Regional (Landgericht) de Leipzig. Durante esses anos, ele adquire o título de privat-docent da Universidade de Laipzig, onde ele fora professor extraordinário em 1899. Mais tarde, Triepel fora convidado a lecionar D. público e DI na Universidade de Tubingen, em 1900, em Kiel, em 1909 e em Berlim, em 1913. Em 1914, fora nomeado Conseiller intime de Justice (Geheimer Justizrat). De 1910 a 1920, Triepel pertenceu ao Instituto de DI, de onde fora Conseiller technique para o D. Público Estrangeiro e DI. Ao final de sua vida presidiu a União Alemã dos Professores de Direito Público e foi membro da Députation Permanente do Comitê dos Juristas Alemães.

As atividades acadêmicas de Triepel desenvolveram-se em dois campos: o Direito Público e o Direito Internacional. No campo do Direito Público, podem-se mencionar as seguintes obras: Das Interregnum (1892); Wahtrecht Wahlpflicht (1900, traduzida em russo, em 1906); Die Thronfolge in Furstentum Lippe (1903); Unitarismus und Foderalismus (1907); Die Kompetenzen des Bundesstaals und die Geschricbene Verfassung (1908); Zur Vorgeschichle der Norddeutschen Bundesperfassung (1911); Die Reichsaufsicht (1917); Streitigkeiten Zwischen Reich und Landern (1923); Quellensammlung zum Deutschen Reichsstaatsrecht (3ª. edição, 1922). Na área do DI, podem ser citadas as obras: Volkerrecht und Landesrecht (1899, traduzida em italiano, em 1913, em francês, em 1920); Die Zukunft des Volkerrechts (1916); Die Freiheit der Meere (1917); konterbande, Blockade und Seesperre (1918); Virtuelle Staatsangehorigkeit (1921). (TRIEPEL, op. cit., p. 74).

9 WALZ, G A. "Les Rapports du Droit International et du Droit Interne", in RDC, Paris, 1937, vol. III, t. 61, p. 379.

10 Ibid., p. 379.

11 VERDROSS. "La Loi de la Formation des Groupes Juridiques et la Notion de Droit International Public" in Introduction à l’Étude du Droit Comparé, Recueil d’Études en l’Honneur d’Edouard Lambert, 1938, vol. I, p. 63.

12 WALZ, "Les Rapports du Droit International et du Droit Interne", op. cit., p. 55.

13 VERDROSS, "La Loi de la Formation des Groupes Juridiques et la Notion de Droit International Public". op. cit., p. 63.

14 Como observa Triepel, pouco importa se os tratados são concluídos por um número grande de signatários - Convenção de Genebra, Ato do Congo, Ato Antiescravagista, Declaração de Paris sobre Direito Marítimo, as Convenções de Haya e muitas outras -, ou por um número reduzido de Estados, podendo, neste caso, serem também considerados os tratados bilaterais.

15 A tese dualista, proposta por Triepel, teve uma grande aceitação principalmente na Alemanha e na Itália. O dualismo, tal como fora construído por Triepel, todavia, sofreu algumas modificações quando repensado por outros autores. Não que esses autores tenham se distanciado da substância do dualismo, que é a consideração da existência de dois sistemas jurídicos independentes, mas, cada autor contribuiu com novos conceitos e postulados dentro da mesma estrutura teórica do dualismo jurídico. Foi o caso, por excelência de Anzilotti: "Anzilotti adopts a different approach; he distinguishes international law and State law according to the fundamental principles by which each system is conditioned. In his opinion, State law is conditioned by the fundamental principle or norm that State legislation is to be obeyed, while international law is conditioned by the principle pacta sunt servanda.". (STARKE, J. G. An Introduction to International Law. London: Butterworth & Co., 1950, p. 55)

A diferença substancial com relação a Triepel é que Anzilotti admite a aplicação imediata do Direito Internacional pelos tribunais internos. Como destaca Walz: "Chez Triepel, nous avons affaire à une médiatisation total, qui se trouve modifiée par Anzilotti pour le cas en cause.". (WALZ, G A. "Les Rapports du Droit International et du Droit Interne", in RDC, Paris, 1937, vol. III, t. 61, p. 387)

Pode-se dizer, em suma, que Triepel construiu um dualismo radical, em razão da rigidez estabelecida nas suas categorizações, e que Anzilotti, ainda dentro do arcabouço teórico dualista, admite algumas flexibilidades na questão central, ou seja, a de se saber como são estabelecidas as relações entre o Direito Internacional e o Direito interno, podendo-se falar de um dualismo moderado. Com efeito, qualquer discussão acerca de conflitos entre fontes tem que considerar, ao menos a título de contraposição argumentativa, os estudos de Triepel, a quem se devem, certamente, os primeiros esforços na busca de uma resposta à questão da relação entre o Direito Internacional e o Direito interno.

16 MELLO, Celso. Curso de Direito Internacional Público. op. cit., p. 84.

17 Id. Ib., p. 84.

18 Id. Ib., p. 84.

19 Id. Ib., p. 84.

20 Id. Ib., p. 85.

21 Id., Ib., p. 85

22 WALZ, "Les Rapports du Droit International et du Droit Interne". op. cit., p. 391.

23 Uma das grandes discussões no Direito Internacional é de se saber se o DIP é capaz de estabelecer mecanismos cogentes para o cumprimento das normas internacionais. Nesse sentido, o tratado é considerado como sendo um instrumento que confere certa estabilidade às relações internacionais. Nos estudos de relações internacionais, há duas correntes preponderantes o realismo político e o positivismo jurídico que parecem compartilhar da premissa de que num mundo sem soberanos não há direito e tampouco justiça. Dos muitos autores que discutem esta questão, três autores podem ser citados: Alexander Wendt, Helen Macmanus e Nicholas Onuf. Os três apresentam argumentos que se contrapõem ao paradigma no qual não existiria direito ou justiça nas relações internacionais em razão da ausência de um governo comum. Sistematizam uma visão alternativa das relações internacionais pela crença em que o direito, a justiça e as instituições são elementos constitutivos da sociedade internacional.

(Extrato de trabalho apresentado para a disciplina Teoria das Relações Internacionais, em 2002, UERJ, mestrado em Direito Internacional, com consulta a seguinte bibliografia: BROWN, Chris. "Contractarian Thought and the Constitution of International Society"; BULL, Hedley. A Sociedade de Estados: um Estudo da Ordem Política Mundial. São Paulo: UNB 2002; DONNELLY, Jack. Realism and International Relation. Cambridge University Press, 2000; GRIECO, Joseph M. "Anarchy and the Limits of Cooperation: a Realist Critique of the Newest Liberal Institutionalism". In Neorealism and Neoliberalism: The Contemporary Debate. New York: Columbia University Press; MACMANUS, Helen. International Law Constructing Power? University of Missouri – Columbia; MAPEL, D. And T Nardin, Eds. International Society: Diverse Ethical Perspectives. Princeton University Press, 1998; MILNER, Helen. "The Assumption of International Relations Theory: A Critique". In Neorealism and Neoliberalism: The Contemporary Debate. New York: Columbia University Press; NARDIN, Terry. "Legal Positivism as a Theory of International Society"; NARDIN, Terry. Lei Moralidade e as Relações entre os Estados. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987; ONUF, Nicholas. Construtivism: A User´s Manual, in International Relations in a Constructed World. New York: M E Sharpe; WALTZ, Kenneth. Man, the State and War: A theorethical Analysis. New York: Columbia University Press 1954)

24 MESTRE, A. "Les Traités et le Droit Interne", in RDC, Paris, 1931, T. 38, vol. IV, p. 238.

25 Ibidem, p. 239.

26 MOSLER, K. "L’Application du Droit International Public par les Tribunaux Nationaux", in RDC, Paris, T. 91, vol. I, 1957, p. 626.

27 WALZ, "Les Rapports du Droit International et du Droit Interne". op. cit., p. 391.

28 Id., Ib., p. 392.

29 Id., Ib., p. 397.

30 Id., Ib., p. 397.

31 Id., Ib., p. 397.

32 Id., Ib., p. 397.

33 Cumpre ressaltar, finalmente, o que Kelsen diz acerca da teoria dualista, ou como ele denomina, da lógica dessa teoria. A partir de uma análise crítica de alguns pressupostos da teoria dualista, Kelsen chegou à conclusão de que o dualismo é uma forma de subjugar o preponderante papel desempenhado pelo Direito Internacional nas relações internacionais, que leva, como ele sugere, a um: "anéantissement complet du droit international". Mais contundente ainda, Kelsen afirma que o dualismo é, sobretudo, um corolário dogmático-apológico da soberania do Estado; pois, defender a manutenção da autoridade suprema do Estado sobre qualquer ordem de caráter supranacional, é defender, em última instância, a teoria clássica da soberania estatal, visto que: "(...) c’est également ce dogme de la souveraineté qui, au fond, se cache derrière la construction dualiste du droit international.". (KELSEN, Hans. "Les Rapport de Système entre le Droit Interne et le Droit International Public", in RDC, Paris, 1926, vol. IV, t. 14, p. 288)

34 VISSCHER, Paul de. "Les Tendances Internationales des Constituitions Modernes", in Recueil des Cours, Academie de Droit International, Haye, Tome 80, nº I, 1952, pp. 511-578, p. 526.

35 ACCIOLY, Hildebrando. Tratado de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: IBGE, 1956, vol. I, p.50.

36 FRAGA, op. cit., p. 27.

37 ARAÚJO, Nádia de. Direito Internacional Privado: Teoria e Prática Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 140.


Autor

  • Mariangela Ariosi

    Sou tabeliã e registradora no interior do estado de São Paulo. Carioca, fiz meus estudos no RJ; mestrado em Direito na UERJ. Cursei o doutorado em Direito na USP, sem concluir a Tese, interrompido pois estava estudando para vários concursos, todos na área de cartório. Cursei algumas Pós na área cartorária e atualmente me preparo para retornar e concluir o doutorado. Também , fui professora de Direito durante quase 20 anos em algumas universidades do RJ como UCAM, São José, Castelo Branco e UNIRIO, dentre outras. Atualmente continuo estudando e escrevendo sobre temas afetos às atividades cartorárias. Estou a sua disposição para conversarmos sobre esses temas e trocar informações.

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ARIOSI, Mariangela. As relações entre o Direito Internacional e o Direito interno. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 498, 17 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5940. Acesso em: 29 abr. 2024.