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Princípio da igualdade e o sistema de cotas para negros no ensino superior

Princípio da igualdade e o sistema de cotas para negros no ensino superior

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INTRODUÇÃO

O século XVIII foi proficiente no reconhecimento de direitos pertencentes a todos os homens, erigindo como único fundamento o fato de pertencerem estes ao gênero humano. É a partir daí que começa a ser firmada uma melhor compreensão da essência do homem baseada em princípios que vão necessariamente compor os discursos de ordem política, filosófica, social e jurídica. Três desses princípios sintetizam todos os direitos fundamentais do homem e pretendem ser universais: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Uma nova consciência passou a dominar o espírito dos homens desde o advento da Revolução, ocorrida na França, até a emissão do seu célebre documento: a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. A intenção maior dos revolucionários da época era a remoção das desigualdades estamentais que perpetuavam os privilégios de uns ao mesmo tempo em que tornavam inelutáveis o aviltamento de outros.

A proclamação desses direitos básicos, entretanto, não tem propiciado, no decorrer do tempo, a efetiva garantia de uma sociedade mais livre, igualitária e fraterna, apta para realizar os direitos humanos e para extinguir as mazelas endêmicas que acometem grande parcela dos seres deste planeta. Entre estes seres incluem-se não apenas o Homem, mas também os demais seres vivos e a natureza, permeáveis às imperfeições que acometem os primeiros. Não obstante, o que importa, certamente, é que o primeiro passo foi dado e que, além disso, urge reconhecer que, desde então, foram produzidos elogiáveis progressos nessa caminhada. Os princípios revolucionários ainda se mantêm distantes no horizonte, especialmente aqueles que dizem respeito à igualdade; mas sempre lançamos lampejos esperançosos em sua direção. O conteúdo utópico do momento presente poderá, amanhã, concretizar-se. Mesmo sem garantias efetivas de sua realização, o desejo quimérico cumpre seu papel doutrinador ao despertar a consciência dos homens de boa vontade.

É fato notório que a desigualdade em vigor no Brasil atingiu, neste século recém-findo, proporções que põem em risco a paz e a estabilidade política e social da nação. Refletindo sobre a questão, resta evidente o paradoxo que deflui dessa lamentável constatação quando se considera o potencial de riqueza do qual nosso país é detentor.

Recentemente, os meios de comunicação deram destaque às iniciativas chamadas de "ações afirmativas", que visam a abrandar as desigualdades existentes na sociedade brasileira. Entre estas, a que mais tem provocado agudos debates é a lei que estabelece cotas nas universidades estaduais aos alunos afrodescendentes. O pioneirismo nessas ações partiu do Estado do Rio de Janeiro, no âmbito de duas Universidades Estaduais: a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). No mesmo sentido, tramita no Congresso Nacional um Projeto de Lei (Projeto de Lei do Senado, nº 650/1999), de iniciativa do Senador José Sarney, que pretende estender o sistema de cotas para todo o país. Esse projeto estabelece quota mínima de vinte por cento à população negra para o preenchimento das vagas dos concursos públicos, e das instituições de educação dos três níveis de governo, federal, estadual e municipal.

O debate logo ganhou ares acalorados, expondo em sua transparência as mais variadas impressões dos seus interlocutores, que discorriam sobre questões de raça, de moral, de democracia, de cidadania, de gestão pública, de justiça social, de meritocracia e de constitucionalidade. Para bem ilustrar esse clima, citamos o artigo denominado Querem Guerra Racial no Brasil? do jornalista, advogado, escritor e produtor cultural Mauro Chaves, para quem

a idéia – que é uma tremenda demagogia iniciada no governo FHC [...] – tem a clara intenção de ser "politicamente correta", mas no fundo, é cultural e socialmente desastrosa, para um país com nossa forte, rica e inigualável miscigenação racial. [...] além de ser uma aberração constitucional, é uma ruptura brutal do critério do mérito, que deixa em frangalhos a motivação do esforço pessoal do aprendizado e avilta o valor do conhecimento – para brancos, negros, pardos, amarelos, cidadãos de qualquer cor e raça.

O presente trabalho tem como objetivo principal a abordagem jurídica da questão suscitada pelo sistema de cotas para ingresso de negros nas universidades públicas. Nesse sentido, primeiramente se pretende investigar acerca do problema que envolve o conceito de princípio constitucional, especialmente o conteúdo do princípio da igualdade, defrontando, em seguida, a problemática que tange à constitucionalidade da medida legislativa instituidora da reserva de vagas para negros no ensino superior.


Capítulo 1

A DESIGUALDADE EM RAZÃO DA COR DA PELE

1.1.– Histórico

A saga da raça negra no Brasil teve início no ano 1534, quando começaram a chegar as primeiras levas de escravos oriundos de tribos do continente africano. Aqui chegando, foram forçados a trabalhar em grandes propriedades monocultoras. Sua participação no cenário nacional contribuiu substancialmente na formação sócio-econômico-cultural brasileira.

Em 1888, por meio de um decreto sancionado pela Princesa Imperial Regente, é declarada extinta a escravidão no Brasil. Antes da libertação, porém, a escravidão nunca fora aceita passivamente pelos negros. Formas de organização eram elaboradas e atitudes de resistência eram postas em prática através de fugas para locais de difícil acesso, onde se formavam comunidades de negros chamadas de quilombos.

Durante mais de 350 anos, sob o infame regime, os negros tiveram suas forças exauridas, física e moralmente, exaustão essa que os debilitou em face à busca de melhores condições de vida na sociedade pós-escravista. Trabalho, moradia, escola e acesso à saúde - condições mínimas necessárias para a manutenção da dignidade humana -, aos negros eram dificultados. A exploração humana, motivada pela altíssima lucratividade do tráfico negreiro praticado pelos europeus, deixou marcas indeléveis na população negra. Mesmo tendo decorrido longo tempo, essas feridas ainda não cicatrizaram a contento, fazendo com que, no Brasil, os negros se mobilizem em busca da plena cidadania.

Embora exista, no seio de nossa sociedade, o discurso que sustenta a ausência do mal cruel do racismo, a segregação campeia em quase todos os cantos. Aqui a miscigenação deu opacidade à questão racial, resultando na falsa impressão de que vivemos fraternalmente em uma democracia racial. Conquanto formalmente não se admita entre nós qualquer forma de racismo, a convivência entre brancos e negros se dá em um ambiente de diferentes matizes, com desvantagem para os negros. Não se pode negar a realidade constatada em nosso cotidiano, onde os brancos estão associados ao melhor e os negros ao pior. Basta observar com agudeza quem representa os papéis daquilo que é bom e belo nos vários espaços e campos de atividades. Certamente se verifica que os galãs e estrelas de novelas são brancos, assim como as bonecas, as princesas e os arquétipos de ricos também o são. Aos negros são reservados os papéis de bandidos, pobres, empregadas domésticas, faxineiras, motoristas particulares, trabalhadores banais e ocupantes de cargos inferiores; aos brancos, as carreiras mais importantes, gratificantes ou lucrativas. Esse imaginário faz parte da cultura brasileira e revela uma opressão injusta e uma segregação dissimulada.

A árdua condição dos negros escravos não terminou com a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Com a Abolição, iniciava-se, de fato, uma outra árdua realidade: os negros passaram a ocupar uma posição sócio-econômica inferior. A lei os libertou, mas também os abandonou. Apenas libertar não era suficiente para garantir a inserção do trabalhador servil na sociedade de classes. Fazia-se necessária uma atuação política de reeducação para que os negros pudessem ser preparados para cumprir as novas obrigações sob iniciante regime de liberdade. Apoio, educação, solidariedade e respeito deveriam ser as atitudes dos ocupantes das classes dominantes, a fim de ganhar a confiança dos ex-escravos que, a partir de então, vestiam o ambiente psicológico próprio dos homens brancos e se postavam de maneira combativa em face a qualquer forma de submissão. O deputado abolicionista Joaquim Nabuco (1849 - 1910) pregava a necessidade dessa política para reverter os males que o escravismo teria enraizado na cultura negra durante mais de três séculos. Essa postura pode ser vista como os primeiros delineamentos das medidas políticas de compensação no Brasil.

É dever reconhecer que a raça negra foi de importância fundamental para a formação de nosso país. Também é difícil imaginar como seria o Brasil sem a participação desse povo sofrido. Diante do expressivo percentual da população que descende dos escravos, é natural admitir que a raça negra formou nosso povo. Registre-se que, além disso, os braços dos negros construíram nosso país: foram os negros que lutaram contra a natureza e transformaram o solo brasileiro; não houve plantio, edificações, estradas, casas de senhores, igrejas, hospitais e escolas sem o exclusivo labor da raça negra.

Para nosso lenitivo, a convivência entre brancos e negros, no Brasil, tem sido pacífica, embora a desigualdade seja patente. Como dizia o abolicionista Joaquim Nabuco, "a escravidão, por felicidade nossa, não azedou nunca a alma do escravo contra o senhor – falando coletivamente – nem criou entre as duas raças o ódio recíproco que existe naturalmente entre opressores e oprimidos".

O destino de nossa História poderia ter sido outro se as idéias do ilustre deputado abolicionista tivessem tido uma melhor avaliação.


Capítulo 2

UMA QUESTÃO DE PRINCÍPIO

2.1 – A Constituição e seus princípios informadores

Todo o ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito se projeta por meio de uma rede de regras harmoniosas que têm como fonte primária a estrutura de sua Constituição. Esta traz em seu bojo o caráter revolucionário de sua própria criação, encerra em seu conteúdo os grandes movimentos que refletem a realidade sócio-político-econômica reinante no país, no momento presente, e lança também as sementes das aspirações que visam o aprimoramento da condição do seu povo em um tempo futuro. A Constituição é um projeto, um caminho a ser percorrido e, por isso, tem um caráter iniciante que instaura um esboço de nação com objetivos e valores, possuindo ainda caráter aberto e político. Aquele se exprime por meio de valores, de princípios e de diretrizes. Este por tornar jurídica a atuação do Poder. Os ditames constitucionais, modestamente falando, possuem diferentes graus de eficácia que, naturalmente, decorrem do jogo de interpretação de seus princípios diante de um caso concreto.

Disso deriva que o sistema jurídico não é somente integrado por normas legais, mas também por alguns preceitos que refletem as grandes tendências do direito positivo. Esses princípios encerram um conteúdo que certamente acabará repercutindo na formação e na interpretação das demais normas. A diferença está no campo de atuação que, para as normas, é mais restrito. Entre a norma e o principio estará o Juiz, a quem caberá a importantíssima incumbência de decidir com vistas para os dois focos de emanação jurídica, contemplando, simultaneamente, a resolução de problemas práticos e urgentes, sem deixar de se fundamentar em questões de ordem filosófica e de princípio.

Examinando os princípios e regras fundamentais da Constituição de 1988, Eros Roberto Grau faz o seguinte comentário:

O que peculiariza a interpretação da Constituição, de modo mais marcado, é o fato de ser ela o estatuto jurídico do político, o que prontamente nos remete à ponderação de "valores políticos". Como, no entanto, esses "valores" penetram o nível do jurídico, na Constituição, quando contemplados em princípios – seja em princípios explícitos, seja em princípios implícitos – desde logo se antevê a necessidade de os tomarmos, tais princípios, como conformadores da interpretação das regras constitucionais.

A Constituição de 1988 anunciou no seu artigo primeiro os objetos supremos da sua empreitada: estabelecer e consolidar um Estado Democrático de Direito, tendo como princípios altivos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Mesmo antes, no Preâmbulo, declara o firme compromisso de assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

O liberalismo do século XVIII e XIX foi o campo fértil para a aclamação dos direitos fundamentais e políticos. Os ecos das declarações de direito, especialmente aqueles sintetizados no trio sagrado – Liberté, Égalité, et Fraternité – percorrem o mundo e são alçados às Constituições de um novo tempo.

2.2- Principio da Igualdade

As três célebres palavras outrora proclamadas, porém, não lograram atingir a plenitude de suas ambições até o atual momento. E, para tentar responder aos motivos desta inglória jornada, citamos uma passagem da obra de Norberto Bobbio, intitulada Igualdade e Liberdade:

O Fato de que a liberdade e igualdade sejam metas desejáveis em geral e simultaneamente não significa que os indivíduos não desejem também metas diametralmente opostas. Os homens desejam mais ser livres do que escravos, mas também preferem mandar a obedecer. O homem ama a igualdade, mas ama também a hierarquia quando está situado em seus graus mais elevados.

Continuando, esclarece ainda Bobbio que "apesar de sua desejabilidade geral, liberdade e igualdade não são valores absolutos. Não há princípio abstrato que não admita exceções em sua aplicação. A diferença entre regra e exceção está no fato de que a exceção deve ser justificada". Em seguida, seu raciocínio penetrante desvenda uma grande verdade:

Se se quer conjugar os dois valores supremos da vida civil, a expressão mais correta é liberdade e justiça e não liberdade e igualdade, já que a igualdade não é por si mesma um valor, mas o é somente na medida em que seja uma condição necessária, inda que não suficiente, daquela harmonia do todo, daquele ordenamento das partes, daquele equilíbrio interno de um sistema que mereça o nome de justo.

A partir do exposto, como definir igualdade entre os homens? Quais os seus limites? Igualdade seria uma utopia? Inicialmente, faremos uma breve abordagem acerca do conteúdo da igualdade sob seus vários aspectos, incluindo-se o filosófico, o político, o social e o jurídico.

A Igualdade, ao lado da liberdade, mantém estreita relação com o regime democrático de governo e se constitui em uma de suas mais profundas aspirações. Seu fundamento filosófico é a paridade essencial de todos os homens: como seres racionais e livres, todos temos a mesma dignidade. A Carta Maior do Brasil registrou tal aspiração logo no primeiro artigo, estabelecendo o pilar em que uma nação ética deve se sustentar: numa república democrática para realização da dignidade da pessoa humana.

A igualdade exaltada na Revolução Francesa se propunha a realizar o aprimoramento da humanidade, estribado no desejo profundo de justiça passível de efetivação, numa democracia política isenta dos vícios do absolutismo e dos privilégios de grupos sociais. De fato, esses ideais abriram caminho para a formação de regimes democráticos que possibilitaram a ascensão ao Poder da burguesia e a conseqüente queda da nobreza.

A igualdade, contudo, não era ampla: restringia-se às classes até então dominantes. Ao Feudalismo seguiu-se o Liberalismo capitalista que instaurou profundas marcas de desigualdade na grande massa proletária, esvaindo, assim, o grande projeto de igualdade entre os homens.

Passadas as reflexões iniciais, de conteúdo mais aberto, ingressaremos na análise da questão da igualdade sob a perspectiva que mais diretamente se vincula ao propósito principal de nosso trabalho, ou seja, perquirir sobre a legitimidade das ações afirmativas que estabelecem cotas para negros nas Universidades à luz do principio da igualdade. A importância em aferir os exatos limites dessa igualdade tem caráter crucial, visto que nela se assentará nosso labor com vistas para a perfeita assimilação de sua logicidade.

É oportuno lembrar que toda a estrutura de pensamento da nossa Constituição está assentada no lema do bem comum. Princípios, valores e diretrizes se entrelaçam com as normas para o fim último de realizar o tão aclamado bem comum. A Lei de Introdução ao Código Civil orienta o aplicador da norma ao estipular em seu artigo 5º que "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum". Apesar da índole etérea e abstrata do termo "bem comum", devemos superar o impasse, reconhecendo que o lema é factível com a convergência das pessoas para determinado valor. Porém, como atingir tão elevado propósito, se a sociedade é naturalmente divergente? Se em um Estado de princípios democráticos o bem comum mantém estreito liame com a afirmação da igualdade, acresce-se um outro complicador para a assimilação do conteúdo daquele: a contingência do conceito de igualdade.

Para Bobbio, "o conceito de igualdade é relativo, não absoluto". A idéia de igualdade deve ser apreendida, levando-se em conta três variáveis: "a) os sujeitos entre os quais se trata de repartir os bens e os ônus; b) os bens e os ônus a serem repartidos; c) o critério com base no qual fazer a repartição". A penetração do pensamento do ilustre italiano é mostrada a seguir:

Combinando estas três variáveis, pode-se obter, como é fácil imaginar, uma variedade enorme de tipos de repartição, todos passíveis de serem chamados de igualitários apesar de serem muito diversos entre si. Os sujeitos podem ser todos, muitos ou poucos, até mesmo um só; os bens a serem distribuídos podem ser direitos, vantagens ou facilidades econômicas, posições de poder; os critérios podem ser a necessidade, o mérito, a capacidade, a posição social, o esforço e outros mais; e no limite a ausência de qualquer critério, que caracteriza o princípio maximamente igualitário, que proponho chamar de "igualitarista": A todos a mesma coisa.

Na visão do Direito, sempre firmamos posição em entender o justo, considerando a atitude do indivíduo em relação ao ordenamento positivo instituído pelo Estado. Uma conduta justa ou injusta, isto é, jurídica ou antijurídica, pode ser aferida, confrontando seu conteúdo com a lei posta. Obviamente, estamos falando das regras que regem os comportamentos sociais (não se trata, assim, das normas de organização do Estado ou das que estabelecem apenas atribuições na vida das pessoas). Disso decorre que a igualdade jurídica consiste no fato de se manter o mesmo conteúdo e o mesmo procedimento da norma, inclusive na hipótese de substituição das pessoas que a ela se submetem, mantidas as mesmas circunstâncias. Sendo a lei geral, abstrata e impessoal, bastam o fato e a subsunção à norma para incidir sobre todos igualmente.

2.3 - Conteúdo jurídico do Princípio da Igualdade

Decorre do exposto acima, naturalmente, que todos são iguais perante a lei, assertiva que o artigo 5º da CF de 1988 registra e confirma. Erige-se, aí, um dos mais importantes princípios de uma nação democrática. Esse princípio, como todos os demais, possui três funções principais: função informadora, função interpretativa e função normativa (na lacuna da lei). Dirige-se tanto ao aplicador da lei, quanto ao seu formulador. Mas, como controlar o enunciado de uma norma – que se presta sempre a atuar com vistas para a igualdade - se já no seu nascedouro comumente se estabelece distinções de pessoas e de situações? Acrescente-se ainda, como mais um complicador, que é da própria natureza da norma existir para fazer menção a uma discriminação. Assim sendo, quais são os critérios para lidarmos com essas diferenças, legitimando-as? Essa é a observação que faz Celso Antonio Bandeira de Mello, ao tratar do assunto, em seu trabalho intitulado O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade: "Como as leis nada mais fazem senão discriminar situações para submetê-las à regência de tais ou quais regras – sendo esta mesma sua característica funcional – é preciso indagar quais as discriminações juridicamente intoleráveis".

Sabemos que o ordenamento legal do Brasil proíbe diferenciações em razão da raça, do sexo, da compleição física, da idade, da convicção religiosa ou política, de acordo com o artigo 3º, IV, e artigo 5º. Mas, para o citado jurista, esses obstáculos constitucionais não são, por si só, o bastante para aclamar a definitividade do princípio da igualdade: "descabe, totalmente, buscar aí a barreira insuperável ditada pelo princípio da igualdade. É fácil demonstrá-lo. Basta configurar algumas hipóteses em que esses caracteres são determinantes do discrímen para se aperceber que, entretanto, em nada se chocam com a isonomia". O autor, em seguida, cita, entre outros, um interessantíssimo exemplo:

Pode-se, ainda, supor que grassando em certa região uma epidemia, a que se revelem resistentes os indivíduos de certa raça, a lei estabeleça que só poderão candidatar-se a cargos públicos de enfermeiro, naquela área, os indivíduos pertencentes à raça refratária à contração da doença que se queira debelar. É óbvio, do mesmo modo, que, ainda aqui, as pessoas terão sido discriminadas em razão da raça, sem todavia, ocorrer, por tal circunstância, qualquer hostilidade ao preceito igualitário que a Lei Magna desejou prestigiar.

Com nossa humildade, queremos apresentar o que retivemos do raciocínio acima exposto: o discrímen pode ser legítimo, desde que posto de modo razoável e justificável. Para complementar, salienta Celso Antônio Bandeira de Mello que "de regra, não é o traço de diferenciação escolhido que deve buscar algum desacato ao princípio isonômico. Para o percuciente professor, qualquer elemento residente nas coisas, pessoas ou situações, pode ser escolhido pela lei como fator discriminatório".

Estamos convencidos de que discriminações são odiosas e ilógicas. Também ressalvamos que discriminações não-gratuitas, porém fundamentadas, isto é, aquelas não-arbitrárias mas que, além disso, possam resultar em um bem público de valor incontestável, devem ser legitimadas e estimuladas. Evidentemente, a aferição do "não–arbitrário" poderá ser um entrave a ser superado. Do mesmo modo, como apurar o que seja "valor incontestável" se sua certeza pode ser posta em dúvida quando se analisa a questão sob outro ponto de vista? O subjetivismo é sempre manifesto e sabemos, infelizmente, que, com freqüência, as atuações políticas malogradas criam problemas no momento presente para tentar buscar soluções em outras épocas. Concluímos, portanto, que fórmulas simples não podem esgotar e esclarecer a complexidade de uma medida, principalmente a chamada medida política.

Parece muito claro que uma disposição normativa que estabeleça alguma diferenciação tem que estar sustentada por uma justificativa racional, sob pena de se tornar hostil à igualdade constitucional.

A isonomia se consagra como o mais importante princípio garantidor dos direitos individuais, ditado pela Assembléia Constituinte Originária de 1988. Nos casos de menor complexidade, não há grande dificuldade em perceber e definir a concretude da igualdade: esta irrompe facilmente compreensível quando algum fator diferenciador é escolhido para reger uma situação. Geralmente, o reconhecimento da legitimidade de uma norma que diferencia situações ou pessoas é espontâneo, inconsciente, até.

A máxima de Aristóteles ainda continua a orientar a doutrina e a jurisprudência sobre o conteúdo do princípio da igualdade: tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade. São muitas as dificuldades que se colocam em discussão para chegar a um consenso sobre o real significado da igualdade. Não obstante seja a igualdade o cerne de um Estado social, o direito fundamental que mais tem atraído a atenção de estudiosos de todas as áreas das ciências humanas, especialmente das ciências jurídicas e políticas, as controvérsias acerca de sua interpretação são numerosas. O principio tem evoluído e hoje ganha relevo o aspecto da igualdade material ou fática, em contraposição à igualdade meramente formal ou jurídica. Liga-se, por necessidade, a fatores ideológicos e a considerações de conteúdo axiológico. Enfim, como consectário de um Estado social, o direito fundamental da isonomia deve efetivamente se direcionar para a igualdade real, pois a repartição de bens disponíveis é uma questão de justiça. Consideramos lapidares os dizeres do Professor Paulo Bonavides, ao tratar desse novo tempo:

O Estado social é enfim Estado produtor de igualdade fática. Trata-se de um conceito que deve iluminar sempre toda a hermenêutica constitucional, em se tratando de estabelecer equivalência de direitos. Obriga o Estado, se for o caso, a prestações positivas; a prover meios, se necessário, para concretizar comandos normativos de isonomia.

O Tribunal Constitucional de Portugal, em diversos Acórdãos, tem buscado circunscrever o significado do princípio da igualdade com idéias-chave, tais como "fundamento material suficiente", "proibição de arbítrio", "vedação discriminatória", "razoabilidade e consonância com o sistema jurídico". Eis alguns trechos desses acórdãos:

I - O principio da igualdade não impede a distinção, ou seja, que se dê um tratamento desigual a situações fácticas desiguais, apenas cuidando que a diversidade de estatuição não seja discriminatória, materialmente infundada e irrazoável.

II - O princípio da igualdade consagrado no artigo 13 da Constituição exige a dação de tratamento igual àquilo que, essencialmente, for igual, reclamando, por outro lado, a dação de tratamento desigual para o que for issemelhante, não proibindo, por isso, a efetivação de distinções.

III - Assim, pode dizer-se que a caracterização de uma medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do princípio da igualdade, dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, isto é, de falta de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico.

Sem dúvida, não podemos deixar de notar que existe uma séria questão subjacente à igualdade fática que, menosprezada, poderá ensejar distorções que certamente desprestigiarão a alentada nobreza de eventual medida que tenha por escopo a função igualitária. Trata-se do exercício da atuação política que, visando soluções fáceis e rápidas, fará do nobre ideal de igualdade o bálsamo para tratar todos os males agudos – que podem, inclusive, ter tido origem em anterior gestão política relapsa, imprópria e ineficaz –, que, convenhamos, parecem ser muito comuns no hemisfério sul, com raras exceções.


Capitulo 3

A POSIÇÃO DOS AFRODESCENDENTES NA NOSSA SOCIEDADE

3.1 - A situação dos negros vista por alguns indicadores sócio–econômicos

A exclusão dos afrodescendentes parece evidente em nosso país, o que, estatisticamente tem sido demonstrado pelos institutos de pesquisa de boa idoneidade, como IBGE, Ipea e Instituto Ethos. Conforme resultado obtido por esta última entidade, em pesquisa denominada de Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas, em parceria com a Escola de Administração e Economia de São Paulo da FGV, Ipea, OIT e Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas Para a Mulher (UNIFEM), "apenas 1% das empresas diz manter programas para melhorar a capacitação profissional de negros, que constituem 43,3% da população economicamente ativa". Merece destaque o dado indicativo de que a população de negros e pardos no Brasil é de 45%. Nos Estados Unidos da América – outro país que adota políticas de inclusão de negros – o porcentual destes é de apenas 13%. Esse grande percentual faz com que nosso país tenha a maior população de negros e pardos fora da África - são quase 80 milhões de pessoas. Entre nós sempre se disse que vivemos uma democracia racial justificada pela receptiva, rica e pacífica miscigenação entre as raças aqui viventes. Entretanto, os dados estatísticos revelam uma democracia racial disfarçada, onde a realidade crua vem à tona, expondo um triste painel sócio-econômico. A miséria dos morros, a diferença no acesso à instrução, ao trabalho e à renda, entre outros, desfazem a fantasia da acalentada democracia. Estudo do IBGE mostra que existe uma disparidade enorme entre os números conferidos aos brancos e aos negros. A distribuição de riquezas e a conseqüente justiça social – objetivo maior de toda nação moderna – têm permanecido longe dos acometimentos dos governantes e dos economistas. A desigualdade gritante entre brancos, negros e pardos pode ser auferida com dois dados principais: índice de analfabetismo (21% para negros, 19,6% para pardos e 8,3% para os brancos) e índice de renda em salários mínimos (2,43 salários para negros, 2,54 para pardos e 5,25 para brancos). Ainda segundo dados do IBGE, recentemente divulgados, do 1% dos mais abastados do país, 88% são brancos; contrariamente, dos 10% mais pobres, 70% são negros ou pardos.

Efetivamente, a situação é de exclusão social. A discriminação racial é uma realidade presente e ostensiva. E entre as fontes das desigualdades, pode ser citado, principalmente, o modelo econômico e social adotado pelo Brasil colônia e o posterior abandono dos negros, após a abolição.


Capítulo 4

A IGUALDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...), proclama o art. 5º, da nossa Constituição Federal de 1988. Já no preâmbulo, a igualdade é mencionada como um dos valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Podemos dizer que, tanto quanto a liberdade, a igualdade é um princípio, um direito e uma garantia que pretende se firmar como cosmopolita.

Comentando sobre a interpretação do princípio da igualdade, o insigne Professor Paulo Bonavides demonstra a dificuldade em conceituá-lo hodiernamente: "os domínios da interpretação constitucional testemunha controvérsias inumeráveis com relação ao conceito de igualdade, sobretudo em razão do prestígio que a igualdade fática ou material entrou a desfrutar naqueles sistemas onde a força do social imprime ao Direito os seus rumos".

Assim, não podemos deixar de perceber que a igualdade estampada na nossa Constituição deve ser compreendida, levando-se em conta sua dupla dimensão, ou seja, seus dois característicos principais, incorporados na mesma rubrica: igualdade formal e igualdade material. Para o ilustre e consagrado José Afonso da Silva,

nossas constituições, desde o Império, inscreveram o princípio da igualdade, como igualdade perante a lei, enunciando que, na sua literalidade, se confunde com a mera isonomia formal, no sentido de que a lei e sua aplicação trata a todos igualmente, sem levar em conta as distinções de grupos. A compreensão do dispositivo vigente, nos termos do art. 5º, caput, não deve ser assim tão estreita. O intérprete há que aferi-lo com outras normas constitucionais, conforme apontamos supra e, especialmente, com as exigências da justiça social, objetivo da ordem econômica e da ordem social.

Complementando formidavelmente o raciocínio, Paulo Bonavides assevera que

o Estado social é enfim Estado produtor de igualdade fática. Trata-se de um conceito que deve iluminar sempre toda a hermenêutica constitucional, em se tratando de estabelecer equivalências de direitos. Obriga o Estado, se for o caso, a prestações positivas; a prover meios, se necessários, para concretizar comandos normativos de isonomia. Noutro lugar já escrevemos que a isonomia fática é o grau mais alto e talvez mais justo e refinado a que pode subir o principio da igualdade numa estrutura de direito positivo.

Retornando a Aristóteles, lembrado sempre pela doutrina tradicional, optamos pela simplicidade das soluções possíveis, uma vez que a questão da igualdade possui amplas possibilidades de compreensão, sob os mais variados ramos do conhecimento humano, entre os quais o político, o jurídico, o filosófico, o sociológico e o religioso. Aristóteles assenta as bases de sustentação, proveitosas para o propósito do nosso trabalho, ao anunciar que o princípio da igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam. Seguramente, a asserção é coerente com a atuação das leis porquanto, em regra, nada mais fazem senão discriminar.

Mas, certamente, a palavra igualdade não é de conteúdo vazio, facilmente manipulável para satisfazer a propósitos rasamente justificáveis. O que se tem verificado na argumentação da doutrina é que esse princípio se ajusta ao tratamento desigual, desde que o realize justificadamente, isto é, não se vulnerabilizando a simples objeções.

Indague-se, então: em que casos o discrímen é perfeitamente aceito, justificável e possível?

O deslinde da questão, efetivamente, pode estar nas palavras do arguto Professor Celso Antonio Bandeira de Mello, na sua obra Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. Para este, três são os critérios para a identificação do desrespeito à isonomia:

a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação; b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados.

Esclarecendo melhor, o autor diz que é preciso investigar se o critério discriminatório adotado possui fundamento lógico ou justificativa racional para atribuir o específico tratamento jurídico em razão da desigualdade. "Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se guarda ou não harmonia com eles. Se não houver conexão lógica entre o fator diferencial e a disparidade do tratamento jurídico adotado, o discrímen certamente é hostil ao princípio da igualdade."


Capítulo 5

AS AÇÕES AFIRMATIVAS COMO INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO SOCIAL

5.1 - O sistema de cotas para acesso dos negros às universidades públicas

O aspecto da igualdade por nós aqui tratado será aquele em que o elemento racial é o distintivo para a aferição da hostilidade ao comando constitucional, pois é aspecto central para o desenvolvimento do nosso trabalho. Trata-se de um tema que envolve uma problemática constitucional muito interessante, não só em face do artigo 5º da nossa Constituição, que valoriza a isonomia, como também diante do artigo 206, I, que registra a igualdade de condições para acesso e permanência nas escolas, e o artigo 208, V, que condiciona o acesso aos níveis mais elevados de ensino, segundo a capacidade de cada um. Terá como objeto de análise as medidas legislativas que instituíram as cotas raciais, mais precisamente a lei nº 4.151, de 04 de setembro de 2003, sancionada pela governadora do Estado do Rio de Janeiro, Rosinha Garotinho. Referida lei faz parte de um conjunto de medidas que atualmente vêm sendo adotadas no país, denominadas de ações afirmativas, cujo objetivo principal é a promoção dos afrodescendentes, isto é, sua integração social com vistas para a concretização do princípio da igualdade material e da neutralização dos efeitos da discriminação racial. Essas ações ganharam destaque em nosso ambiente político-jurídico após a III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância, realizada em agosto de 2001, em Durban, África do Sul.

Vejamos dois dos principais artigos da lei nº 4.151:

Art. 1º - Com vistas à redução de desigualdades étnicas, sociais e econômicas, deverão as universidades públicas estaduais estabelecer cotas para ingresso nos seus cursos de graduação aos seguintes estudantes carentes:

I – oriundos da rede pública de ensino;

II – negros;

III – pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor, e integrantes de minorias étnicas.

Art. 5º - Atendidos os princípios e regras instituídos nos incisos I a IV do artigo 2º e seu parágrafo único, nos primeiros 5 (cinco) anos de vigência desta Lei deverão as universidades públicas estaduais estabelecer vagas reservadas aos estudantes carentes no percentual mínimo total de 45% (quarenta e cinco por cento), distribuído da seguinte forma:

I – 20% (vinte por cento) para estudantes oriundos da rede pública de ensino;

II – 20% (vinte por cento) para negros; e

III – 5% (cinco por cento) para pessoas com deficiências, nos termos da legislação em vigor e integrantes de minorias étnicas.

Parágrafo Único – Após o prazo estabelecido no caput do presente artigo qualquer mudança no percentual acima deverá ser submetida à apreciação do Poder Legislativo.

Para muitos, tais disposições vêm para "oficializar a discriminação racial no País, ferir o bom senso e aviltar a própria imagem dos pertencentes a uma raça que tanto tem contribuído para a riqueza cultural do Brasil". Em Notas e Informações do jornal O Estado de São Paulo, publicou-se a seguinte opinião:

Na verdade, somente uma visão, de fato, racista, que não considere que os negros ou pardos – os chamados afrodescendentes – possam ter o mesmo potencial intelectivo de qualquer pessoa (seja branca, asiática ou indígena, para as quais, aliás, não se cogitou de favorecimento por meio de cotas), explicaria essa ideologia "cotista", que desmente fatos comprovados da realidade, vale dizer: que negos e pardos têm condições de vencer, plenamente, em todos os campos da atividade humana, graças a seus próprios méritos e esforços, sem que para isso necessitem de "vantagens" compensatórias. Por outro lado, sem que se negue a existência de preconceitos raciais no seio de nossa sociedade – que devem ser combatidos com os rigores que as leis brasileiras vigentes determinam, nesse campo -, não se pode negar que no Brasil há formidável miscigenação racial, talvez em grau único no Planeta, o que constitui uma de nossas maiores riquezas antropológicas e culturais.

Lamentamos, mas entendemos que a opinião lançada no referido jornal não nivela adequadamente seus argumentos com a abrangência da questão emergente. Mesmo quando o articulista se trata de um advogado, que registrou suas idéias no supracitado jornal, em 22/02/2003: "Na verdade, o que tem o belo título de "política compensatória" não passa de uma ultrajante lambuja, ofertada pelos que desprezam a probabilidade – largamente demonstrada, em todos os campos de atividade – de os negros vencerem graças aos próprios méritos e aos próprios esforços, sem a condescendência, que é filha da arrogância (branca), em que pesem os preconceitos que, junto a outras minorias, os negros têm enfrentado".

A contundência desse tipo de defesa se presta mais ao firme propósito de "defender por defender", dogmaticamente, uma direção de pensamento. Não avista nada além dos paradigmas já solidificados, embora de eficácia precária até então. Falar em critério do mérito, esforço pessoal, orgulho moral e igualdade de capacidade entre brancos e negros, resulta apenas em argumentos que nada convencem. Politicamente, são argumentos rasos. Juridicamente, desfocados. Politicamente, porque não pesa os prós e os contras – conveniência e oportunidade - base das decisões de políticas públicas. Juridicamente, porque não alça a discussão no nível da Constituição Federal, onde ao menos existe a possibilidade de se encontrar soluções plausíveis advindas dos jogos de princípios.

Contemporaneamente, é marcante a refutação aos argumentos que pregam a existência de raças superiores. Há, inclusive, corrente que não adere ao discurso que reitera a existência de raças. Para estes, só existe uma raça: a raça humana, uma única espécie. Assim, os argumentos contrários às cotas justificam a ilegitimidade da "discriminação positiva" porque esta reforça e declara a ideologia odiosa de tempos passados: a de que os brancos são mais capacitados, sendo a eles reservado o posto de dominador e orientador das raças inferiores. Tal desatino seria o argumento-chave para ver nas medidas de inclusão dos afrodescendentes o gérmen da desigualdade não-consentida pela nossa Constituição.

De opinião mais sensata e realista, entretanto, Paulo Renato Souza, Ministro da Educação no governo Fernado Henrique Cardoso, afirma que "medidas paliativas têm, por certo, um papel importante, embora circunscrito, para aliviar situações crônicas. Para aplicá-las, contudo, é preciso estar seguro de que seus efeitos negativos não venham a ser maiores do que o alívio que podem eventualmente proporcionar, nem venham a substituir as soluções definitivas". O raciocínio merece respeito, pois percebe o malogro da atividade pública no campo do ensino e antevê possíveis dificuldades futuras. Com efeito, a política de cotas deverá ser aplicada com prudência e, paralelamente, em nossa opinião, duas outras ações devem ser postas em execução: em primeiro lugar, far-se-á necessário um reforço na instrução dos alunos cotistas para compensar a má qualidade do ensino público médio; em segundo lugar, dever-se-á atacar o problema onde ele efetivamente tem sua origem, isto é, na má qualidade da educação pública.


Capítulo 6

AÇÕES AFIRMATIVAS E O IMPASSE CONSTITUCIONAL

6.1 - Sistema de cotas para negros e a regra constitucional da não – discriminação

A problemática constitucional que implicou, inicialmente, a emissão de três leis promulgadas pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, instituindo o sistema de cotas nas universidades estaduais (50% para estudantes vindos da rede pública de ensino; 40% para estudantes negros e pardos; e 10% para estudantes portadores de deficiência física), como já era previsto, chegou ao Supremo Tribunal Federal sob a forma de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), argüida pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), distribuída em 19/03/2003. O parecer, enviado pelo Procurador Geral da República, Geraldo Brindeiro, pugnou pela declaração de inconstitucionalidade em razão do que dispõe o artigo 22, XXIV, da Constituição Federal, visto que é da competência privativa da União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional. Embora consistente, o argumento do Procurador Geral não será aqui analisado por não tratar diretamente a questão, e sim, limitar-se aos aspectos de competência legislativa. A ADI, contudo, foi extinta com fundamento no art. 267, IV, do C.P.C., em razão da revogação das três leis estaduais (3.524/2000, 3.708/2001 e 4.061/2003) pelo art. 7º da lei estadual 4.151, de 05 de setembro de 2003, que unificou as três cotas em uma única lei. Com a nova lei, as universidades públicas estaduais do Rio deverão instituir cotas para ingresso nos seus cursos aos estudantes carentes, oriundos da rede pública de ensino, aos negros, e às pessoas com deficiência, prescrevendo percentuais menores para as três espécies de cotas, da seguinte forma:

I - 20% (vinte por cento) para estudantes oriundos da rede pública de ensino;

II - 20% (vinte por cento) para negros; e

III - 5% (cinco por cento) para pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor e integrantes de minorias étnicas.

As motivações que têm suscitado acalorados debates nos diversos setores da nossa sociedade, contudo, permanecem, embora reduzidas as cotas. Especialmente a nós, como objeto deste trabalho, interessa-nos a questão de reservas de vagas aos candidatos negros.

Efetivamente, uma das conseqüências da implantação dessas ações afirmativas (ou da discriminação positiva) foi a constatação da fragilidade do princípio da igualdade, pelo menos nos moldes em que estávamos acostumados a entendê-lo.

O princípio da igualdade, inserido na nossa Constituição, visa, consistentemente, a obstar fator de discrímen aleatoriamente escolhido e sem pertinência lógica. Nas palavras do professor Celso, "(...) o que a ordem jurídica pretende firmar é a impossibilidade de desequiparações fortuitas ou injustificadas". O preceito moral de que as pessoas devem ser tratadas como iguais não oferece uma boa razão para justificar a hostilidade ao ditame constitucional no caso da lei que estipulou o sistema de cotas para ingresso de negros nas universidades públicas estaduais do Rio de Janeiro. Ao implementar a igualdade material, através das chamadas ações afirmativas, estão se cumprindo exigências de outros mandamentos, também inseridos na Carta Magna, cuja efetividade deve ser mais intensa. Entre estes, as que se constituem nos objetivos nobres de um Estado Democrático são a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Todos sabemos – e as estatísticas confirmam – que a fruição dos atributos da cidadania e da dignidade é bem menos vigorosa para o grupo dos afrodescendentes, embora estes representem 45% da população do país. Além do mais, encontramos, no artigo 3º do Estatuto Maior, outros objetivos fundamentais para os quais a República Federativa do Brasil deve se voltar: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.

O liberalismo político, que é o modelo adotado pelo nosso país, valoriza o trabalho humano e a livre iniciativa (artigo 170 da Constituição Federal). Suas principais ações políticas devem se direcionar para a redução das desigualdades, a eficiência da Economia e a liberdade política e civil. Sabemos, ainda, que num Estado liberal o mérito precisa ser reverenciado. Indagamos, então, como harmonizar "direitos iguais" com "cidadãos desiguais"? Como louvar o mérito individual diante da reserva de vagas para negros nas universidades? Certamente, o sistema de cotas para ingresso nas universidades trará à tona a seguinte constatação: um negro será incluído e um branco será excluído. Nesse caso, a cor da pele é vantajosa para um e desvantajosa para outro. Isto seria constitucional?

O professor Ronald Dworkin, em sua obra intitulada Uma Questão de Princípio, analisa o caso de Bakke, estudante branco que, mesmo obtendo notas relativamente altas em seu teste, fora rejeitado na escola de medicina da Universidade da Califórnia em Davis, que adota um programa de ação afirmativa para admissão de estudantes negros e de outras minorias. Para Dworkin,

"não há, naturalmente, nenhuma sugestão nesse programa de que Bakke divide alguma culpa individual ou coletiva pela injustiça racial nos Estados Unidos, ou que ele tem menos direito a ser tratado com consideração ou respeito que qualquer estudante negro aceito no programa. para negros. Ele ficou desapontado e merece a devida solidariedade por essa frustração [...]. Não é culpa de Bakke que a justiça racial agora seja uma necessidade especial – mas ele não tem o direito de impedir que sejam usadas as medidas mais eficazes para assegurar essa justiça".

A meritocracia, tão alardeada por aqueles que a invocam para depreciar o sistema de cotas para estudantes negros, exerce função determinante na realização pessoal. Mas entendemos, entretanto, que o merecimento individual não deve ser o único caminho para o progresso pessoal e a conseqüente ascensão na vida. Construir uma sociedade livre, justa e solidária também se constitui em um dos objetivos fundamentais da nossa República. A solidariedade aqui mencionada é um dos instrumentos sem o qual é impossível a consecução da eqüidade. A correção das injustiças sociais passa, obrigatoriamente, pela solidariedade das pessoas. E esta deve ser levada em conta na avaliação das ações afirmativas para promoção dos afrodescendentes. De fato, nós temos responsabilidade sobre aquilo que fazemos e, objetivamente, podemos ser culpados por parte do nosso fracasso. Todavia, não chegamos a ponto de sacralizar o dito popular Deus ajuda a quem cedo madruga. O nobre valor do mérito está fraudado pelas distorções sabidamente existentes entre os concorrentes do concurso vestibular. Sabemos, e não devemos esconder, que os marginalizados e oprimidos pelas condições sócio-econômicas não disputam o concurso nas mesmas condições fáticas que aqueles que foram agraciados, desde o nascimento, com o privilégio de galgar suas existências num ambiente ameno e fecundo para lhes propiciar o pleno gozo das prerrogativas da cidadania e dos bens materiais disponíveis. A justiça, nesse caso, está em colocar este ideal de vida numa perspectiva atingível. A estratificação social verificável em nosso país em nada contribui para a conquista dos louros concedidos a nações triunfantes na tarefa de realizar o bem estar generalizado – objetivo maior do Estado Democrático de Direito.

Que não se pense que, ao defender de maneira apaixonada esses sublimes ideais estamos apenas expondo justificativas ingênuas e retóricas. Ao contrário, estamos convencidos de que as universidades são os centros de geração dos meios necessários para o pleno desenvolvimento das pessoas, tanto direta quanto indiretamente. Diretamente, porque quanto maior o nível de formação escolar, melhor a qualidade de vida de seu detentor. Indiretamente, porque o saber produzido nas universidades é melhor aproveitado quanto mais pessoas dele puderem se beneficiar para, em seguida, transmitirem a outras pessoas, estimulando-as a se engajarem na mesma busca e assim sucessivamente. Afinal, povo instruído é povo desenvolvido. E promover o desenvolvimento sócio-econômico de um povo é dever precípuo do Estado Social.

Para confirmar a virtude das ações afirmativas, basta olhar para a experiência norte americana, onde as iniciativas de resgate social – notadamente a implantação de cotas para o ingresso nas universidades – têm produzido uma classe média de negros. Lá, a experiência com a ação afirmativa já dura há quase 40 anos. Embora em porcentual menor que no Brasil (os negros representam 13% dos americanos), o impacto produzido no consumo de bens e o conseqüente crescimento da economia nacional já são suficientes para nos convencermos da conveniência e oportunidade da medida. Não é difícil reconhecer que estes resultados, acrescidos ainda pelo fato de que a diversidade racial nas escolas contribui positivamente para o ambiente educacional, foram determinantes para que a Corte Suprema Americana emitisse, no dia 23 de junho passado, decisão a favor da chamada affirmative action. Por cinco votos a quatro, a Suprema Corte dos Estados Unidos confirmou a política de admissão que favorece os negros, adotada pela Universidade de Michigan.

A juridicidade da ação afirmativa ora em discussão pode ser ainda legitimada por explícitos dispositivos legais, inseridos no nosso ordenamento jurídico. Primeiramente, atentemos para o que dispõe o parágrafo 2º, do artigo 5º, da nossa Carta vigente: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (grifo nosso).

Comentando a esse respeito, em seu livro intitulado Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, a Professora Flávia Piovesan nos convence com o seguinte raciocínio: "ora, ao prescrever que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais, a contrario sensu, a Carta de 1988 está a incluir, no catálogo de direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais em que o Brasil seja parte". Mais adiante, a autora conclui seu ponto de vista informando que "ainda que estes direitos não sejam enunciados sob a forma de normas constitucionais, mas sob a forma de tratados internacionais, a Constituição lhes confere o valor jurídico de norma constitucional, já que preenchem e complementam o catálogo de direitos fundamentais previsto pelo texto constitucional". Entende a autora, e com ela somos acordes, que há recepção pela Constituição de 1988 dos direitos declarados em tratados internacionais em que o Brasil seja signatário.

Com fulcro, então, no que dispõe o parágrafo 2º, do artigo 5º, da nossa Constituição Federal, a juridicidade das ações afirmativas é manifesta à vista do que dispõe a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968, promulgada pelo Decreto n.º 65.810, de 8.12.1969, especialmente diante do teor do artigo primeiro, parágrafos 1 e 4:

Artigo 1º

§1. Para fins da presente Convenção, a expressão "discriminação racial" significará toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública.

§4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos. (grifo nosso)

Reconhece-se, assim, a proibição da discriminação. Mas, simultaneamente, também prestigia a ação afirmativa como instrumento de promoção da igualdade material.

Digno ainda de registro é o ensinamento da Professora Flávia, ao sugerir a classificação dos direitos previstos na Constituição em três grupos distintos: a) o dos direitos expressos na Constituição (por exemplo, os direitos elencados pelo texto nos incisos I a LXXVII do art. 5º); b) o dos direitos expressos em tratados internacionais de que o Brasil seja parte; e, finalmente, c) o dos direitos implícitos (direitos que estão subentendidos nas regras de garantias, bem como os direitos decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição).

Como acréscimo, é conveniente lembrar que nossa República tem como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, art. 2º, I, o que é atingível com a redução das desigualdades sociais e regionais, art. 2º, III. A maior emanação jurídica para legitimar o sistema de cotas para ingresso dos negros nas Universidades certamente provém daí.


CONCLUSÃO

Estamos convencidos de que ainda hoje, em nossa sociedade, os negros ocupam posição inferior em comparação com os não-negros. Esta constatação é contrária ao propósito do conjunto da Nossa Constituição, especialmente quando se tem em mira o ideal de Democracia. Desse axioma decorre a legitimidade para justificar as ações afirmativas para a inclusão dos afrodescendentes que, consistentemente, encontram juridicidade no princípio constitucional da igualdade.

Optamos por considerar que o fator do discrímen motivador das medidas legislativas que visam à inserção do negro nas universidades não é simplesmente aquele relacionado à quantidade de melanina na pele – pois, neste caso, patente a lesão ao princípio da isonomia –, mas sim o fator subjacente àquele e de maior significação justificatória: a desigualdade econômica. A cor da pele apenas se apresenta como o elemento de melhor identificação dessa lamentável condição. Subjacente à cor da pele, está a disparidade sócio-econômica originária de processos históricos que remontam ao período do Brasil colônia – onde ocorria a mais abjeta forma de exploração do homem pelo homem, representada pela escravidão –, e ainda continua na atual segregação velada que propicia a manutenção de privilégios.

De forma explícita, nossa Constituição reconhece somente a igualdade no aspecto formal, isto é, igualdade perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, conforme sacramentado no artigo 5º, caput. Mas, não estaria a estagnação legal acomodando situações e privilégios justificados apenas pelo estrito cumprimento da norma positivada? Deve a lei apenas cumprir o papel de regular o que já existe ou deve também ter função mais nobre e transformadora, sobretudo na busca da eqüidade, que é a essência da Justiça?

São questões não tão simples de responder, pois estão impregnadas de forte teor de abstração. Uma questão séria, certamente, é a que diz respeito à definição da própria Justiça. Nesse caso, porém, podemos nos orientar, afirmando que a Justiça é aquela que almeja a maior efetividade da liberdade, da distribuição de riquezas e da felicidade entre os homens. Pairando sobre esses valores, a transcendência da paz. A nós, parece-nos que nossa missão terrena deve trilhar norteada por esse núcleo de valores.

Dignas de menção, neste momento, as palavras de Ronald Dworkin, professor de filosofia jurídica na Universidade de Oxford e professor de Direito na Universidade de Nova York, ao comentar a discriminação compensatória: "pode ser que os programas de admissão preferencial não criem, de fato, uma sociedade mais igualitária, pois é possível que não tenham os efeitos imaginados por seus advogados. [...] Não devemos, porém, corromper esse debate imaginando que tais programas são injustos mesmo quando funcionam. Precisamos ter o cuidado de não usar a Cláusula de Igual Proteção para fraudar a igualdade".

A Constituição de 1988 não só firmou a igualdade formal – exigência do Estado Democrático de Direito – mas também admitiu a igualdade material ao ditar que o Brasil tem como uma de suas metas fundamentais a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III). Estabeleceu, ainda, objetivos básicos para a consecução da justiça social, em que a instrução dos cidadãos é um de seus instrumentos, tais como a garantia do direito à educação (art. 205), igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (art. 206, I). Quanto ao princípio da meritocracia, firmado no artigo 208, V, certamente entendemos que deve prevalecer, pois exerce função edificante ao estimular o desenvolvimento das ciências.

A lei pode, sim, promover o bem estar e o crescimento de um povo, mas melhor seria se não fosse posta em ação somente quando a questão requer um tratamento de emergência. É oportuno lembrar que, nos Estados Unidos, as primeiras iniciativas no campo das ações afirmativas para inclusão dos negros ocorreram há 40 anos. Além disso, a solução do problema agudo deve vir acompanhada de outras medidas com vocação para a permanência do efeito desejado. Bem-vindas também seriam as medidas profiláticas que poderiam ser postas em execução pelos detentores do comando no país. Devemos ficar alerta, portanto, para que atos de política pública dessa natureza só sejam acolhidos quando não forem incrustados em seu conteúdo os remendos de anteriores ações políticas irresponsáveis, pois, dessa forma, gerações futuras poderiam ser apenadas sob a sentença de culpa histórica.

Eis o risco de tratar os problemas difíceis com soluções fáceis. O Projeto de Lei do Senador José Sarney propõe amenizar este gap estipulando que a reserva de vinte por cento de vagas para negros nas universidades deverá permanecer, de início, por cinqüenta anos, com a reavaliação de sua necessidade a cada dez anos.

De todo o exposto, entendemos legítimas as ações afirmativas para inserção dos afrodescendentes no ensino superior. Não obstante os percalços de lidar com valores fecundos, porém abstratos, nossa Carta de 1988 se constituiu, positivamente, no melhor projeto de nação. Falta-lhe, apenas, maior efetividade. Agora, os primeiros passos estão sendo dados.


NOTAS

1.CHAVES, Mauro. Querem guerra racial no Brasil? São Paulo: O Estado de São Paulo, 22/02/2003, p. A2.

2 NABUCO, Joaquim. O abolicionismoGrandes Nomes do Pensamento Brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 16.

3 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 7ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 142.

4 BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000, p. 9.

5 Ibid. Id., p. 10.

6 Op. cit., p. 16

7 Decreto – Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942.

8 BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda razões e significados de uma distinção política. 2ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2001, p. 112.

9 Ibid. Id.

10 Ibid. Id., p. 113.

11 BANDEIRA de MELLO, Celso Antonio. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 11.

12 Ibid. Id. p. 15.

13 Ibid. Id. p. 16.

14 Op. cit., p. 17.

15 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ª. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 378.

16 Disponível em: http://www.dgsi.pt/atco. Acesso em: 08 jan. 2004.

17 ALVES, Terciane. Pesquisa quantifica a discriminação mo mercado de trabalho. O Estado de São Paulo, São Paulo, 07 dez. 2003. Suplemento Empregos, Caderno C12, p. 1.

18 FILHO. Aziz. Brasil Estatísticas, Fosso Abissal. Revista ISTO É, n. 1775, 08 out. 2003, p. 46.

19 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ªed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 377.

20 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 191.

21 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 378.

22 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 21.

23 Op. cit., p. 21- 22.

24 Op. cit., p. 39.

25 Jornal O Estado de São Paulo. São Paulo. Notas e Informações. Oficializam a discriminação racial, 05 mar. 2003, p. A3.

26 Jornal O Estado de São Paulo - São Paulo. Notas e Informações. As cotas inconstitucionais, 23 jun. 2003, p. A3.

27 CHAVES, Mauro. Querem Guerra Racial no Brasil? O Estado de São Paulo - São Paulo, 22 fev. 2003, p. A2.

28 Souza, Paulo Renato. Igualdade de oportunidade no ensino superior. Espaço Aberto. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. A2, 29 jun. 2003.

29 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 18.

30 DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Principio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 451.

31 Jornal O Estado de São Paulo - São Paulo. Notas e Informações. O Endosso à Ação Afirmativa nos EUA, 29 jun. 2003, p. A3.

33 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 75.

33 Ibid. Id. p. 78.

34 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 81.

35 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução e Notas de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 369.


Referências Bibliográficas

NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 7. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.

BOBBIO, Norberto.Igualdade e Liberdade. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.

BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora UNESP, 2001, 2. ed.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991.

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PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad, 2002.

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução e Notas de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Outras Referências

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Decreto Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942.

Acórdãos do Tribunal Constitucional (de Portugal). Disponível em: http://www.dgsi.pt/atco. Acesso em: 08 jan. 2004.

ALVES, Terciane. Pesquisa quantifica a discriminação no mercado de trabalho. O Estado de São Paulo, São Paulo, 07 dez. 2003. Suplemento Empregos, Caderno C12, p. 1.

FILHO. Aziz. Brasil Estatísticas, Fosso Abissal. Revista ISTOÉ, n. 1775, p. 46, 08 out. 2003.

Jornal O Estado de São Paulo, São Paulo. Notas e Informações. Oficializam a discriminação racial, p. A3, 05 mar. 2003.

Jornal O Estado de São Paulo, São Paulo. Notas e Informações. As cotas inconstitucionais, p. A3, 23 jun. 2003.

Souza, Paulo Renato. Igualdade de oportunidade no ensino superior. Espaço Aberto. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. A2, 29 jun. 2003.

Jornal O Estado de São Paulo, São Paulo. Notas e Informações. O Endosso à Ação Afirmativa nos EUA, p. A3, 29 jun. 2003.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GIMENES, Décio João Gallego. Princípio da igualdade e o sistema de cotas para negros no ensino superior. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 311, 14 maio 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5158. Acesso em: 3 maio 2024.