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Notas sobre o direito da criança

Notas sobre o direito da criança

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O início do século XX

Havia uma preocupação permanente na cidade de São Paulo em fins do século XIX: a elevada quantidade de menores criminosos que desafiavam a ordem vigente e "a tranqüilidade das famílias paulistanas". [1]

O soneto "o Vagabundo", de Amélia Rodrigues reflete o temor da sociedade da época com aqueles menores que perambulavam pelas ruas:

O vagabundo

O dia inteiro pelas ruas anda

Enxovalhado, roto indiferente:

Mãos aos bolsos olhar impertinente,

Um machucado chapeuzinho a banda.

Cigarro à boca, modos de quem manda,

Um dandy de misérias alegremente,

A procurar ocasião somente

Em que as tendências bélicas expanda

E tem doze anos só! Uma corola

De flor mal desabrochada! Ao desditoso

Quem faz a grande, e peregrina esmola

De arranca-lo a esse trilho perigoso,

De atira-lo p’ra os bancos de uma escola?!

Do vagabundo faz-se o criminoso!... [2]

No final do século XIX e começo do século XX introduziu-se novos padrões sociais, culturais e econômicos na sociedade brasileira. Impostos pela modernidade, a industrialização, a urbanização e a crescente pauperização das camadas populares foram as suas principais características. Associado a esse processo, "houve um crescimento constante do pequeno comércio, da classe média profissional ou burocrática e uma intensificação da divisão do trabalho". [3]

A sociedade brasileira, até então marcadamente rural, convivia, agora, com uma realidade também marcada pela urbanidade em função do processo de industrialização. Esse novo modelo de organização social e econômica não substituiu o antigo modelo rural calcado na grande propriedade, ao contrário, o processo de industrialização encontrou no desenvolvimento rural enormes possibilidades para se desenvolver. Reconheça-se que, as grandes lavouras de café, impulsionadoras da economia, possuíam mão-de-obra e quadros técnicos capazes de alavancar a incipiente industrialização que se processava, ajudando a consolidar as relações capitalistas de produção [4].

Um fato digno de menção é o estímulo do governo brasileiro à imigração do europeu para o Brasil expressando o entendimento da elite brasileira de que entendia que tais transformações sócio-econômicas deveriam ser acompanhadas da substituição do trabalhador negro pelos "trabalhadores ideais", isto é, o imigrante europeu contribuíram para a formação dessa mão-de-obra.

A cidade [São Paulo] crescia econômica, geográfica e urbanisticamente. Com esse crescimento sem planejamento aconteceu o fenômeno do inchaço da cidade com prejuízos sociais à população já que a saúde, a alimentação, a habitação e as condições de trabalho eram precárias. É assim que "nesse contexto, verifica-se o surgimento ou o agravamento de crises sociais que outrora eram pouco relevantes no cotidiano da cidade". [5] Uma das conseqüências diretas da crise social gerada pela industrialização foi o aumento da ocorrência de crimes, reflexos de uma maior incidência de conflitos urbanos.

O sentimento de insegurança gerado na sociedade brasileira dessa época – manifestado, por exemplo, no soneto O vagabundo, mencionado acima – significou um problema a ser enfrentado pelo Estado brasileiro que, contudo, não tinha um programa de ação para minorar os efeitos sociais oriundos da urbanização e industrialização.

É nesse cotidiano de transformações que se insere o menor brasileiro do início do século XX: por um lado, crescimento econômico, industrial e urbano; por outro, agravamento das crises sociais, proliferação dos cortiços, marginalidade, miséria e criminalidade.

Ante a todas essas situações, o menor recorria à esperteza nas ruas da cidade, "o local perfeito para por em prática as artimanhas que garantiriam sua sobrevivência" [6]. Inúmeros menores se dedicavam a praticar crimes devido à "deterioração das condições sociais, as modificações das formas e modos de relacionamento", além disso, " os diferentes e novos padrões de convívio que a urbanidade impunha a seus habitantes eram ignorados pelo discurso oficial, que estabelecia a oposição entre lazer-trabalho e crime-honestidade". [7]

Como o Estado não tinha um programa de ação para enfrentar as conseqüências sociais advindas da urbanização, recorreu a um discurso moralista [8] que não inquiria as causas reais daquela nova situação, limitando-se a contrapor o valor trabalho à vadiagem. Utilizando-se da hostilidade para lidar com os conflitos sociais, a mentalidade nascente da elite da época, sob a influência de um regime pré-industrial apregoava que: todos aqueles que não se inserissem no processo produtivo - incluindo aí as crianças - estavam condenadas à vadiagem, crimes previstos no art. 399 e 400 do Código Penal de 1890. Vadios eram considerados também aqueles que, rejeitados pelo mercado formal, sobreviviam no mercado informal. Como não podiam provar suas ocupações, eram presos.

Há que se anotar que o trabalho na indústria norteou a vida de inúmeros [9] menores que conviveram em um cotidiano permeado pela violência, seja por acidentes de trabalho, seja por "maus-tratos" efetuados pelos patrões para manter os menores na linha. [10]

Nesse ambiente hostil às classes populares, os menores encontravam nas atividades ilegais a forma de sobreviverem que, muitas vezes, eram realizadas ante a impossibilidade de realização de atividades lícitas. [11] Texto da época revela os contornos dessa situação:

"É extraordinário o número de meninos que vagam pelas ruas. Durante o dia, encobrem o seu verdadeiro mister apregoando jornais, fazendo carretos; uma vez, porém, que anoitece, vão prestar auxílio eficaz aos gatunos adultos que, por esta forma, se julgam mais garantidos contra as malhas policiais." [12]

O comportamento dos menores nas ruas da cidade, transitando entre atividades lícitas e ilícitas, contraria a moral dessa sociedade urbana calcada no valor trabalho/honestidade em oposição a vadiagem/criminalidade. Diante desse quadro, o Estado é chamado a intervir, sempre na perspectiva de reprimir a questão social por ser um problema moral de determinados membros da sociedade. Não parecia relevante ao Estado brasileiro inquirir se todos os setores da sociedade brasileira dispunham de condições de se adequar à essa moral: seria possível que todos os menores freqüentassem escolas?

Evidente que não. Desde muito cedo, os menores oriundos dos setores populares deveriam se preocupar com o sustento familiar. O Estado brasileiro opta por uma política de correção moral a esses menores, encontrando na proliferação dos internatos o modelo perfeito de realização dessa moral. [13] Esse modelo corretivo permitiria que o Estado desenvolvesse nesses menores o valor trabalho: "A correção que o Estado lhes imputava passava necessariamente pela pedagogia do trabalho" [14].

Essa pedagogia do trabalho pretendia introduzir os valores do trabalho nos menores delinqüentes internados nos internatos, visando reintroduzí-los nas frentes de trabalho de uma sociedade que já os rejeitara. [15] O Estado brasileiro tem um papel decisivo para a formação da mão-de-obra na industrialização:

"O país em crescimento dependia de uma população preparada para impulsionar a economia nacional. Era preciso formar e disciplinar os braços da indústria e da agricultura" [16]

Em patronatos ou colônias, menores eram recolhidos pela política e enviados para aprenderem uma profissão, tratando-se

"de uma política voltada para o ordenamento do espaço urbano e de sua população, por meio do afastamento dos indivíduos indesejáveis para transformá-los nos futuros trabalhadores da nação, mas que culminava no uso imediato e oportunista do seu trabalho". [17]

Código Mello Matos

À ocasião da elaboração do Código de Menores de 27 (conhecido como Código Mello Matos), esse novo contexto sócio-econômico foi considerado. Informa-nos Alvim que, os debates que antecederam a elaboração do Código de Menores de 27 - envolvendo principalmente juristas, médicos, industriais, policiais e jornalistas em torno da questão da infância pobre – centraram-se nos temas da delinqüência, da universalização da escolarização, do controle do Estado sobre as famílias e no tema do trabalho.

A questão do trabalho, contudo, pareceu dominar a tônica dos debates, ao se estabelecer a polêmica entre industriais, de um lado, e juristas e médicos de outro. Os primeiros, usando amplamente a força de trabalho do menor (principalmente a industria têxtil), entendiam que a única possibilidade de educação para as classes populares era através do trabalho.

Os juristas e médicos, por seu turno, defendiam a fixação de uma jornada de trabalho de seis horas para os menores e a idade mínima de 14 anos. Isso permitiria

"salvar a ‘raça’, ou seja os menores e possíveis adultos, mesmo que isso custasse a desorganização da industria. Desta forma, a idade biológica permitida para o trabalho, assim como para a punição penal, se constrói de acordo com os interesses e posições dos agentes em disputa. Para os empresários, quanto menos idade tivesse o indivíduo classificado como menor melhor seria para a organização do trabalho em suas industrias. Assim como para a polícia que teria poderes para reprimir e levar ao Juiz de Menores os supostos "delinqüentes", tirando-os das ruas, espaço em que vistos e considerados transeuntes ilegítimos." [18]

O Código de Menores de 27, também conhecido como Código Mello Matos, ao se constituir na primeira legislação específica voltada para esses menores, partia desse contexto social marcado pela criminalidade e pelas longas jornadas de trabalho a que eram submetidos os menores. Verifica-se, aí, os contornos delimitadores do termo menores: apenas determinado grupo de crianças e adolescentes do início do século XX seriam considerados menores, representando um setor específico, identificado com a gerava delinqüência, a marginalidade e o abandono.

É no artigo 26 do Código de Menores e na Lei n.º 5.258, alterada pela Lei n.º 5.439 onde se encontram definidos os destinatários do Código de Menores. Nesses artigos e respectivos incisos, o legislador estabelece o objeto do Código: não qualquer criança entre 0 e 18 anos, mas, aquelas denominadas de " ‘expostos’ (as menores de 7 anos), ‘abandonados’ (as menores de 18 anos), ‘vadios’ (os atuais meninos de rua), ‘mendigos’ (os que pedem esmolas ou vendem coisas nas ruas) e ‘libertinos’ (que freqüentam prostíbulos)." [19]

Consolidando toda a legislação sobre crianças até então emanada por Portugal, pelo Império e pela República, [20] o Código de Menores estabeleceu um sistema de atendimento à criança assentado nos efeitos sociais de um processo de industrialização excludente que agravou os problemas sociais. Não qualquer criança seria objeto de intervenção da Justiça de Menores, mas os filhos das pessoas que moravam em cortiços e subúrbios, crianças mal alimentadas e privadas de escolaridade, vivendo em situações de carências culturais, psíquicas, sociais e econômicas que as impeliam a ganhar a vida nas ruas em contato com a criminalidade tornando-se em pouco tempo delinqüentes". [21] O Código Mello Matos direciona-se àqueles setores sociais excluídos pelo setor produtivo, instalados em subúrbios, privados dos frutos da industrialização, alijados do acesso aos colégios ou de uma política de proteção à família.

Cinqüenta e dois anos separam o Código Mello Matos do Código de Menores de 1979. Durante esse período, o Código Mello Matos cumpriu seu mister de ser aplicado após a instalação do conflito. Como só os "vadios", "abandonados" ou "delinqüentes", isto é, os desajustados sociais eram objeto de intervenção do poder judiciário, apenas se e quando se enquadrassem em alguma daquelas definições haveria uma ação do poder público através da intervenção do poder judiciário. A ação estatal se efetua por intermédio do Código de Menores, limitando-se aos juízes de menores. Não há a presença do Estado atuando para evitar o conflito, para evitar que tais menores se enquadrassem nas tipologias previstas no Código de Menores. Por outro lado, durante esse período, os juízes de menores tiveram um papel preponderante e exclusivo na gestão do sistema que recebia os menores delinqüentes.

De acordo com a Professora Liliane Capilé, pode-se visualizar esse modelo, sobretudo, nos anos de 1930 à 1964, quando consolidou-se o emprego do Código de Menores, principalmente, para os casos de delinqüência. Nesse período,

"os internatos vivem neste período o seu apogeu com o SAM (Serviço de Assistência ao Menor) fundado em 1940 e tendo como proposta recuperar as crianças e os adolescentes, os menores, ao mesmo tempo que deveria proteger as crianças pobres, ‘abandonadas’ que necessitavam do abrigo do Estado para poderem alimentar-se e estudar. Grande parte dessas crianças tinha família, e eram levadas por elas ao internato até saírem com a maioridade." [22]

Os internatos se adequavam a um modelo de atendimento ao menor pautado no controle social, isto é, o menor seria moldado, corrigido de acordo com as diretrizes estabelecidas pelas entidades de internação. A idéia era de que a responsabilidade pela educação desses menores era de suas famílias, logo, se essas falhassem, seja pela impossibilidade de provê-los material e emocionalmente, seja pela inviabilidade de afastar-lhes da delinqüência e marginalidade, caberia ao Estado, escorado no Código de Menores, a responsabilidade de corrigir esses estados de patologia social mediante a internação dos menores.

Esse modelo calcado no internamento e no SAM começou a sofrer críticas no final dos anos 40 e durante a década de 50 mesmo existindo uma política de assistência e promoção e projetos educativos importantes nos SAM. [23] A razão das críticas ao modelo de internato se devia às denuncias de maus-tratos sofridos pelos internos e a incapacidade desses menores abandonarem a delinqüência, constatadas a partir da publicação na imprensa de nomes de criminosos famosos egressos do SAM. [24] Deveriam existir mudanças para corrigir essa situação, contudo, isso não significava abandonar o modelo de internação, até então ocupando posição central no sistema, já que, apesar de existirem pessoas que já desacreditavam desse modelo como capaz de solucionar a questão do menor, representavam, ainda, parcela minoritária. A tese vencedora é de que deveria se operar uma reforma no modelo SAM, através da criação de uma entidade de caráter nacional que formulasse a política nacional do bem-estar do menor: estava criada a FUNABEM.

A FUNABEM [25] deveria planejar, orientar e coordenar a política e o trabalho das entidades do menor e, também, fiscalizar o cumprimento de convênios e contratos com ela celebrados (art. 7º, V, Lei n.º 4.513/64). A implementação da política assistencial do menor se daria mediante as Comissões Regionais que eram verdadeiros órgãos de execução da FUNABEM. A política era orientada a partir de um centro gestor que irradiava suas diretrizes através de Comissões Regionais. Fato que evidencia isso, é a possibilidade dada às Comissões Regionais de celebrarem convênios, mediante prévia autorização do Conselho Nacional da FUNABEM (art. 14, parág.. único, Lei n.º 4.513/64). Do mesmo modo, o artigo 16 da referida lei obrigava as entidades que recebessem dotações compulsórias, subvenções ou auxílios a planejar suas atividades em obediência às diretrizes traçadas pelo Conselho Nacional.

A questão se coloca dessa maneira: o modelo de internação, característica fundamental estabelecida pelo Código Mello Matos, apresentava sinais de esgotamento ante aos resultados pífios de recuperação de menores e aos inúmeros desvios de finalidade encontrados nessas instituições.

A solução para resolver esses dois problemas centrais não foi a de abandonar o sistema calcado nas internações, ao contrário, ele seria mantido e, inclusive, ampliado mediante a criação das Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor. [26] Porém, a criação da FUNABEM pretendia corrigir as falhas observadas no SAM, já que, como responsável pela formulação de uma Política Nacional do Bem-Estar do Menor, teria subordinada, às suas diretrizes, todas as entidades públicas e particulares que prestassem atendimento à criança e ao adolescente. Financeiramente autônoma, a FUNABEM incorporaria a estrutura do Serviço de Assistência ao Menor existente nos estados, incluindo-se aí, tanto o atendimento aos menores carentes e abandonados quanto aos infratores. [27]

As criações da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, em dezembro de 1964 e das Feben´s estaduais, assim como toda a questão do menor, podem ser entendidas no âmbito da doutrina de Segurança Nacional, cuja matriz brasileira foi a Escola Superior de Guerra e teve como matriz americana o National College War e a sua National Security Act, de 1947. A ditadura militar, iniciada em abril de 1964, concebeu amplas reformas que incluiu, dentre outros, a outorga de uma nova Constituição e, no campo educacional, a reforma do sistema educacional brasileiro a partir dos acordos MEC/USAID e a reforma do ensino universitário em 1968, objetivando constituir barreiras ideológicas, culturais e institucionais à expansão da ideologia marxista. [28] Tal situação caracterizaria o trabalho executado pela Funabem/Febem como sendo escorado nos preceitos do militarismo [29], com ênfase na segurança, na disciplina e na obediência.

Esse parece ser o entendimento também da Prof. Liliane Capilé para quem

"os primeiros ideólogos da FUNABEM não lidavam mais com a perspectiva do menor trabalhador [como à época da formulação do Código Mello Matos de 1927], mas com o "infrator" e o "carente", e acreditavam que para assegurar a ordem, para manter a doutrina da segurança nacional, esses menores deveriam ser "enclausurados". [30]

Observe-se que toda a mudança da política dirigida aos menores, fomentada a partir da criação da FUNABEM em 1964, ocorreu sem que o Código de Mello Matos de 1927 fosse revogado. Evidentemente, surgiram leis que o alteraram (quais leis 4.655/65, 5.258/67 e 4.439/68) [31], contudo, o Código de Menores permaneceu em vigor e aplicável no mundo jurídico.

Como explicitado acima, o Código de Menores de 27 assentou a estrutura de resolução do conflito social, gerado pelo processo de urbanização e industrialização, na justiça de menores. Seria o juiz de menores, o personagem responsável e decisivo para o sucesso na aplicação do Código de Menores, decidindo o destino dos menores e fomentando-lhes a moral apregoada pela industrialização. Contudo, como se viu, esse modelo apresentou resultados pífios evidenciando o seu insucesso. A política de atenção ao menor inaugurada pela FUNABEM parece ter reconhecido problemas comuns já existentes à época da elaboração do Código Mello Matos em 1927 [32], contudo, sob a influência da doutrina da segurança nacional, o raciocínio é de que a centralização da política dirigida ao menor propiciaria a mudança nos resultados dos menores atendidos pelo Estado. A política dirigida ao menor, iniciada durante a ditadura militar, evidencia o executivo federal como promotor e executor de medidas voltadas àquele grupo, em detrimento dos juízes de menores. Essa é a grande iniciativa no panorama da gestão da infância e adolescência compreendida no período de 1927 à 1988. Pode-se dizer até mesmo que, a centralização inaugurada pela FUNABEM pós-64 teria importância prática maior que o novo Código de Menores que fora elaborado em 1979.

Código de Menores de 1979

O Código de Menores iniciou sua tramitação no Congresso Nacional a partir do projeto de Lei n.º 105/74 de autoria do senador Nelson Carneiro que instituía o Código de Menores. Sob certos aspectos inspirado na Declaração Universal dos Direitos das Crianças da ONU de 1959, o projeto do senador Carneiro reconhecia direitos às crianças e aos adolescentes, tais como, o direito à saúde, à educação, à profissão, à recreação e à segurança social (arts. 1º e 2º, projeto n.º 105/74), responsabilizava a família, a comunidade e o Estado pela proteção e assistência social do menor (art. 13) e previa a necessidade de proteção à família, sendo que, só excepcionalmente, o menor poderia ser separado dos pais (artigo 5º). [33]

Apesar de tímida, as inovações do projeto do senador Carneiro podem ser apontadas como precursoras do direito das crianças no legislativo brasileiro - ao menos no que se refira à responsabilização do Estado e da sociedade e a importância desses assegurarem meios para que a família carente pudesse manter seus filhos (art. 23, ECA) -, já que tais proposições são identificadas como constantes dos direitos da criança ao invés de serem de direito do menor.

Ocorre que durante a tramitação do projeto do senador Carneiro, as disposições identificadas como de direitos das crianças foram suprimidas. [34] [35] Abandonando a fórmula da enunciação dos direitos das crianças, o Congresso Nacional – acatando projeto elaborado por juízes de menores apresentado pelo relator da matéria na Câmara dos Deputados, Claudino Sales,– optou por substituí-la pelo modelo de tipificação dos casos em que os menores estariam em situação irregular. Desse projeto apresentado na Câmara, aprovou-se o Código de Menores. A justificativa para a substituição seria a de que a Declaração dos Direitos da Criança de 1959 não era um texto legal. Sendo uma declaração, não tinha caráter normativo. Além disso seria injurídico o Código de Menores enunciar direitos como saúde, educação, recreação, já que, ao fazer isso, interferiria na competência de cada Ministério. Ao contrário, seria ideal um código que definisse a situação irregular do menor, seu tratamento e prevenção até mesmo por uma questão de tradição legislativa. Além disso, o Código de Menores traria implícita o reconhecimento da Declaração dos Direitos da Criança de 1959 sem necessidade de explicitação dos direitos: "da Declaração de Direitos da Criança pela ONU, resulta o reconhecimento de que as necessidades básicas de toda criança são aquelas acolhidas pelo Projeto" [36].

Distinção básica entre direitos da criança e direito do menor reconhece que o primeiro pugna pela

"elaboração e efetivação de programas de atuação os mais amplos possíveis, nos quais a preocupação é garantir às populações infantis e jovens as melhores condições de desenvolvimento social e maturação biopsíquica".

Já o Direito do Menor - e o Código de Menores como seu instrumento – restringe-se às situações peculiares em que se encontram certas crianças, a exigirem a prestação jurisdicional. Em suma,

"A pessoa que constitui o sujeito do Direito do Menor não é qualquer criança, mas o menor em estado de patologia social ampla, pois que a solução do problema em que se encontra será dada através de uma decisão judicial, emanada de um processo judicial, fiscalizado pelo Ministério Público". [37]

O fato é que o Código de Menores de 79, na forma com que viria a ser aprovado, propôs-se a ser uma reformulação do antigo Código Mello Matos de 1927. O Parecer n.º 296, de 1975 do senador José Lindoso, quando da primeira votação no Senado reflete esse entendimento:

"em nenhum momento se olvidou imensa contribuição emprestado pelo Decreto n.º 17.493-A, de 12 de outubro de 1927, conhecido como Código Mello Matos e que já naquela época tinha uma filosofia de amparo e proteção, necessitando, entretanto, de adaptações face às profundas transformações sócio-culturais por que passou o país" [38].

Julgando ser necessária a atualização do Código Mello Matos, é certo que o legislador do Código de 79 pretendeu adaptá-lo às novas situações, mantendo o "espírito" do Código de 27. Altera-se a disposição dos artigos, atualiza-se a linguagem jurídica, inova-se sob certos aspectos, mas a estrutura jurídica se alicerça em fundamentos comuns. Um exemplo fundamental que realça essa perspectiva pode ser observada na caracterização das situações irregulares abrangidas por cada Código (27 e 79), pela qual se revelam os destinatários para quem o código é dirigido.

Observa-se que, enquanto no Código de 79, através da situação irregular (art. 2º), são elencados os casos em que os menores são objetos do interesse estatal, no código de 27, é o "menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinqüente, que tiver menos de 18 anos de idade, [o qual} será submetido pela autoridade competente às medidas de assistência e proteção contidas neste Código" (art. 1º). Há, assim, uma continuidade lógico-jurídica que informa ambos os códigos.

O argumento menorista era de que o Código de Menores – apesar de não enunciar direitos – parecia pressupô-los, isto é, já os considerava implicitamente já que atribuía a responsabilidade do bem-estar da criança exclusivamente à família. Na é a mesma coisa. Há uma diferença marcante entre as duas concepções (a menorista e a inaugurada pela Declaração da Criança de 1959). Seguindo-se a orientação adotada pelo Código de Menores de 79, por exemplo, não se conferia às crianças à possibilidade de reivindicar a exigibilidade de um direito, pois, esses não eram enunciados. Assim, se por um lado, a responsabilidade da família para com a criança, garantida juridicamente, conferia-lhe o poder-dever de assegurar o bem-estar da criança, por outro, não garantia à criança ou adolescente a possibilidade de lhe ser assegurada bem-estar em caso de impossibilidade da família em assegurar-lhe. Alçada ao fim último que determinaria o sucesso ou insucesso de um menor, da família se exigia o bem estar da criança sem que necessariamente o Estado se comprometesse a assegurar o bem estar da família. Querendo representar a preocupação da sociedade para o problema da criança, os efeitos pretendidos da legislação menorista mostrar-se-iam irrealistas na medida em que, ao atribuir a responsabilidade exclusivamente à família, expunha a criança, sobretudo por que problemas sociais, tais como, a desagregação familiar, as dificuldades financeiras e a pobreza não são resolvidos apenas no âmbito familiar. O fato é que o cotidiano da família é influenciado diretamente por fatores culturais, econômicos e sociais e tais fatores, em boa parte dos casos, acabam por aumentar o desafio de se criar os filhos. Observar-se que o Estado e a sociedade não possuíam responsabilidades para com o menor, ao menos antes da ocorrência da situação irregular, significa reconhecer o estímulo à ocorrência de situações irregulares sobretudo ante a insuficiência da família em evitar a ocorrência da situação irregular.

O Código de Menores de 79 e a doutrina que o inspirou (situação irregular) parecem desconhecer as limitações da família (inclusive em assegurara integridade física). A idéia fundamental é a seguinte: manifesta-se a necessidade de que a criança e o adolescente tenham bem-estar e vivem em um ambiente harmônico, contudo, tal preocupação não é expressa em forma de direitos às crianças e aos adolescentes o que impossibilita a exigibilidade da concretização de direitos para crianças e adolescentes. Logo, cabe à família assegurar o bem-estar da criança; família essa que tem mostrado dificuldades e limitações para assegurar o bem estar das crianças. É interessante observar que a doutrina da situação irregular - ao responsabilizar a família, unicamente, pelo menor - acaba por situá-la na origem do mal. Liborni Siqueira, então juiz de menores de Duque de Caxias (RJ), declarou no jornal O Globo seu entendimento de que "é a família que está abandonada, desassistida e carente" e que "o problema é evitarmos que o menor chegue a FUNABEM, atendendo à gestante, à nutriz e às crianças de zero a seis anos" (p. 90). Essa visão social do juiz manifestado acerca do art. 2º, I, do Código de Menores parece não ter encontrado amparo no Código no sentido de obrigar o Estado a proteger a família por meio de programas sociais.

Não estando obrigado a efetivar direitos - o que exigiria recursos e investimentos - cabe ao Estado esperar o resultado dessa omissão para agir de forma repressiva. Por tudo isso, a ação do Estado e da sociedade no Código de Menores é negativa no que tange à efetivação de direitos (não chegam a ser reconhecidos). Isso permite, dentre outras coisas, que se justificasse a tragédia da infância brasileira como algo inevitável, já que Estado e Sociedade não possuíam obrigações diante desses casos. Eis aí uma nova finalidade do Código de Menores: ser instrumento de desencargo de consciência de burocratas, políticos e da sociedade brasileira!

Não enunciar direitos significa impossibilitar a reivindicação de sua implementação. Daí a visão caolha da doutrina da situação irregular: ignora-se a necessidade de um sistema de proteção à infância e adolescência sob o argumento de que a família é suficiente para garantir as necessidades dos seus. A discussão então não passará por uma perspectiva dos conflitos existentes na sociedade que geram desigualdades; ao contrário, a questão desloca-se para o campo moral. De outro modo, enunciar direitos significa discutir as políticas específicas de cada área governamental voltada para a família e a criança bem como os limites impostos à sua concretização. Implica a discussão das próprias relações de estrutura do poder, o emprego e a prioridade dos gastos públicos. Em última instância, culmina a possibilidade de acionar o judiciário e exigir direitos.

A aplicação do Código de Menores estava restrita aos casos de patologia social, isto é, o sujeito a quem se destinava a legislação menorista não era qualquer criança mas aquela que tivesse a sua conduta adequada ao seu artigo 2º. Apenas o menor que se adequasse ao tipificado como situação irregular (art. 2º) gozava de "acesso à justiça" já que, nesse caso, houve uma "falha" do menor ou da família que resultou em carência (art. 2º, I a IV) ou em conduta anti-social (art. 2º, V e VI). Percebe-se aí o componente moral acima referido: alguém, a família ou o menor, há que falhar; há que existir um culpado para que se justifique a conduta social e o acesso às medidas judiciais.

O aspecto do "acesso à justiça" (já que apenas os casos de situação irregular estariam legitimados para fazê-lo), realça o caráter do Código Menores de 79 de um instrumento legal limitativo. Primeiro, pois restringe o "acesso à justiça" (se é que se pode falar assim) a casos determinados [39]; segundo e como conseqüência, inviabiliza que interesses da criança gozem de proteção jurídica. Sobressai daí que, hipoteticamente, se à criança fosse negado "condições essenciais à subsistência" como a saúde ou a educação por uma razão que não se constituísse "falta, ação ou omissão" dos pais ou responsáveis, mas sim, por uma omissão estatal ou uma ação de um terceiro, de um grupo de sociedade, esse caso não teria amparo no Código de Menores. Da mesma forma, uma situação que não estivesse prevista como perigo moral (art. 2º, III), maus-tratos (art. 2º) privado de assistência legal (art. 2º, IV), desvio de conduta (art. 5º, V) ou infração penal (art. 6º, VI) estaria impossibilitada de ser conhecida pelo judiciário. É o caso do menor que não tivesse acesso ao lazer, à recreação ou à profissionalização já que não havia qualquer previsão de exigibilidade desses ou de quaisquer outros direitos. Daí advém a conclusão de que o menor não é sujeito de direitos, não os tendo ou podendo reivindica-los nos casos de situação irregular.

Verdadeiramente, há um descompasso no discurso jurídico inserido no Código de Menores e o fim propugnado pelo mesmo código consistindo na assistência, na proteção e na vigilância dos menores. O Estado (e aí inclui-se o judiciário) não se obriga em relação aos menores, contudo, esses se obrigam em relação ao Estado e à sociedade. Afora os casos de vigilância (arts. 48 a 58) e autorização para viagem (art. 62), onde há atuação preventiva do poder público dirigida a todos os menores (parágrafo único, art. 1º), a atuação do Estado era privilegiada para o momento em que o menor viesse a ser considerado em situação irregular.

Por ser taxativa, a doutrina da situação irregular, associada à idéia de patologia social, não abrange nem mesmo o conjunto de hipóteses possíveis de controle social. O art. 2º não abre a possibilidade de adequar a conduta do menor a outros casos que não definidos em seus incisos, ainda que axiologicamente merecessem a mesma proteção dos casos ali elencados. Ante a dinâmica imposta pelos fenômenos sociais, a taxatividade presente nas situações definidoras de situação irregular constituem o código de menores de 79 em um instrumento legal incapaz de regular ou abrir possibilidades de regulação para toda a problemática do menor.

É assim que, não alcançando todas as crianças, o Código de Menores somente possui eficácia jurídica, isto é, produz resultados na órbita jurídica, quando determinada conduta de um menor se adequa a algum dos incisos que caracterizam a situação irregular (art. 2º).


A doutrina da Situação Irregular

Há, basicamente, 3 (três) doutrinas que definem os parâmetros legais para o direito do menor. Tais doutrinas refletem valores que repercutirão na órbita jurídica. São elas: a doutrina do direito penal do menor, a doutrina da proteção integral e a doutrina da situação irregular. Orientando a elaboração do ordenamento jurídico menorista, a doutrina adotada definirá qual a posição destinada às crianças e aos adolescentes pela sociedade.

Grosso modo, a doutrina da proteção integral concebe a criança como um ser dotado de direitos que precisam ser concretizados. É assim que

"partindo dos direitos das crianças, reconhecidos pela ONU, a lei assegurava a satisfação de todas as necessidades das pessoas de menor idade, nos seus aspectos gerais, incluindo-se os pertinentes à saúde, educação, recreação, profissionalização, etc.".

Enquanto isso, a doutrina do direito penal do menor, similarmente ao que ocorre no direito penal, propõe que o direito se interesse pelo menor "somente a partir do momento em que {este} pratique um ato de delinqüência". [40]

Adiante, a doutrina da proteção integral será melhor explicitada. Quanto à doutrina do direito penal do menor, ressalte-se apenas que guarda bastante semelhança com o direito penal do menor.

Por sua vez, a doutrina da situação irregular se coloca como intermediária entre as doutrinas da proteção integral e do direito penal do menor. Por um lado, não garante direitos universais ao menor, o que significaria tornar os menores sujeitos de direitos, diferenciando-se assim da doutrina da proteção integral. Por outro lado, a doutrina da situação irregular se diferencia da doutrina penal do menor, pois, não se "preocupa" com o menor apenas quando esse é delinqüente, isto é, quando comete um ato tipificado como crime. Daí viria o caráter intermediário da doutrina da situação irregular. Segundo os seus defensores, não apenas em casos de delinqüência, mas também, em casos que poderiam levar a delinqüência, tal como, a carência financeira, moral e jurídica do menor encontrariam amparo na ordem jurídica.

Apesar de verificada já no Código de Menores de 27 (Código Mello Matos), a doutrina da situação irregular foi utilizada sem que tal expressão tivesse sido referenciada. A expressão "situação irregular" parece ter surgido como proposta do professor Allyrio Cavallieri, apenas na fase de estudos para a elaboração do Código de Menores de 79, em substituição às denominações abandonado, delinqüente, transviado, infrator, exposto, etc. "Situação irregular" designa de forma genérica todos os casos de competência do juiz de menores ou em que o Direito do Menor for aplicável. [41]

Isso evidencia o que já fora dito acima: os códigos de menores (27 e 79)) guardam semelhanças estruturais e lógico-jurídicas entre si. Ponto fulcral [42] de ambos os códigos, o artigo 2º do Código de Menores de 79 onde se identificam os casos de situação irregular se aproxima bastante dos estereótipos elencados no Código de Menores de 79. [43] Assim, mesmo sendo criação doutrinária (lembre-se que o termo situação irregular é posterior ao Código Mello Matos de 27), pode-se dizer que a legislação do então Código de 27 a incorpora em nove casos dos quais oito previstos nas hipóteses do art. 26 do Código de Menores de 27 e uma na Lei n.º 5.258, alterada pela Lei n.º 5.439. Observa-se aí que a doutrina da situação irregular embasa o Direito do Menor.

Conforme o professor Cavallieri, outros países já teriam adotado a expressão "situação irregular" em suas legislações. Esclarece o professor que "regular é o que está de acordo com a regra, a norma. Irregular é o que contraria a norma, o que se opõe à normalidade". [44] As situações irregulares eram estabelecidas conforme o juízo de valor do que fosse normal e anormal. A idéia de normalidade/anormalidade, contudo, é definida em função da conseqüência, dos efeitos sociais nocivos já produzidos sobre a criança e capazes de gerar. Explica-se aí a localização da doutrina da situação irregular no momento após a conduta anormal do menor. Daí a crítica à essa doutrina que não inquiriria as causas que originam as condutas anormais dos menores. Em suma, os efeitos da conduta do menor eram objeto privilegiado da norma em detrimento das causas que poderiam propiciar o surgimento de um comportamento considerado anormal. A crítica é: não se deveria considerar a situação que os conduzia à carência ou delinqüência ao invés de considerar a criança ou adolescente como carente ou delinqüente?

O Código de menores de 79 incorporou a expressão situação irregular no direito positivo, dispondo em seis casos, constantes do art. 2º, as situações tidas como irregulares: "a expressão ‘situação irregular’ foi escolhida para abranger estados que caracterizam o destinatário primário das normas". [45] Valendo-se da opinião de Mendizábol, Cavallieri sustenta que não se pode identificar na noção de situação irregular um aspecto estritamente sociológico, embora se possa perceber alguma forma de patologia social. Em seu âmbito jurídico, a expressão ‘irregular’ refere-se às situações que não somente ofendem os estados firmes e definitivos da consciência coletiva mas também aos estados que contradigam com a ordem moral do povo. Haveria, ainda, situações irregulares em que a moral não é ofendida e mesmo assim o Estado teria de exercer sua tutela protecional. Grosso modo, as situações irregulares significam patologias sociais previstas na ordem jurídica (artigo 2º) definidas em oposição à normalidade.

Ao fim deste tópico, saliente-se que quando se diz que ambos os Códigos de Menores se fundamentaram na doutrina da situação irregular, convém ressaltar o aspecto da atualização proposta pelo Código de Menores de 79 mediante a incorporação de institutos que corrigissem as falhas apontadas no Código Mello Matos.

A perspectiva da doutrina que influenciou o Código permaneceu a mesma, porém, é correto dizer que a experiência de 52 anos de aplicação do Código de 27 indicou o caminho das mudanças. A análise das medidas aplicáveis ao menor indicam que o Código de Menores de 79 altera e inova em comparação com as medidas previstas pelo Código de 27 (Mello Matos). O artigo 14 do Código de Menores de 79 estabelece o leque de medidas aplicáveis, estabelecendo um sistema de gradação que vai desde a advertência até a internação, passando pela colocação em lar substituto, dentre outras. Isso representa uma inovação se comparada a ênfase dada pelo Código de 27 à internação do menor abandonado ou delinqüente.

O instituto da advertência, por exemplo, parece ter sido erigida à condição de medida aplicável aos menores a partir da bem sucedida experiência dos juízes de menores que, a despeito da falta de previsão legal, aplicaram o instituto nos casos em que se considerava a internação desnecessária. Como se sabe, a ênfase proposta pelo Código Mello Matos recaía sobre a internação. A experiência dos juízes de menores, contudo, teria mostrado os limites dessa medida. Lembre-se também que a partir da década de 50, o modelo proposto pelos SAM’s entrou em crise ante as crescentes denúncias de violações aos menores. Esse parece ter sido o entendimento do relator do Código de Menores na Câmara dos Deputados:

"Tal acréscimo [advertência] é ditado pela experiência dos juízes de menores. Da medida de advertência diga-se que se tem mostrado eficaz em inúmeros casos menos graves, em que o menor modifica o seu comportamento em face de uma severa e pessoal admoestação do juiz" ( in DCN, SI 17.08.1979, p. 8.043). [46]

Portanto, se é correto afirmar que ambos os Códigos (27 e 79) tem em comum a doutrina da situação irregular, é certo, também, que a contribuição fundamental da referida doutrina é determinar quem seja o menor a que se destina o código. Essa afirmação traz implícita uma advertência: à primeira vista, uma análise comparativa entre os dois códigos de menores apresentará bastante aspectos divergentes: institutos jurídicos são criados, outros são suprimidos e a disposição do texto é alterada. Tais alterações não devem ser entendidas como ruptura no paradigma entre os códigos. A doutrina da situação irregular continua a ser identificada em ambos os códigos. Na verdade, as alterações nos institutos jurídicos não comprometem a estrutura lógica em que se assentam ambos os códigos. Como já se mencionou acima, tal estrutura lógica é identificada no sentido mais ou menos amplo que é dado aos destinatários da norma jurídica. [47] O Código de Menores de 27 identifica os destinatários de suas normas em oito incisos previstos nas hipóteses do art. 26 do Código de Menores de 27 e na Lei n.º 5.258, alterada pela Lei n.º 5.439 por meio de expressões como delinqüente e menor abandonado, enquanto o Código de Menores de 79 prevê as possibilidades no art. 2º por meio de expressões por meio de expressões abandonado e delinqüente.

Definidos os destinatários de suas normas, estabelece-se o aspecto que os peculiariza: é a partir daí que os institutos jurídicos serão compreendidos. A doutrina da situação irregular se irradia pelos sistemas jurídicos de ambos os códigos. O espírito de ambas as leis passa a ser condicionado e definido pela doutrina da situação irregular.


O Estatuto da Criança e do Adolescente e a doutrina da proteção integral

Mesmo já tendo sete diplomas constitucionais, "em nenhuma delas o legislador constituinte preocupou-se em estabelecer os princípios do direito da criança no texto das mesmas, como já fizeram todas as nações do mundo". [48] Tal constatação revelava a negligência do estado Brasileiro em estabelecer uma legislação que assegurasse direitos às crianças e aos adolescentes mesmo após a promulgação da Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959, documento internacional em que o Brasil é signatário.

É com a Constituição Federal de 1988 [49] que tal panorama se altera ao se prever em seu artigo 227 que:

"É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência comunitária, além de coloca-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". [50]

A Constituição Federal de 1988 teve pela primeira vez um dispositivo que incorporou direitos às crianças. O artigo inaugurado pela Constituição prevê um modelo baseado em direitos, fundamentando-se na doutrina da proteção integral. Essa situação conflitava com o Código de menores de 1979, cuja doutrina que o informava era a da situação irregular. Exigia-se a elaboração de um novo diploma legislativo sobre a infância e a juventude fundado agora na perspectiva da enunciação de direitos. Um novo direito da criança, mais científico, mais jurídico e dirigido a todas as crianças deveria ser erigido, consagrando na ordem jurídica a doutrina da proteção integral. [51]

Como escreve Antônio F. do Amaral e Silva, esse novo direito: "caracterizado pela coercibilidade, passa garantir às crianças e adolescentes ‘todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, assegurando-lhes oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições e dignidade (Estatuto, artigo 3º).’" [52] Enunciados direitos, estes passam agora a ser exigíveis. E a mencionada coercibilidade do direito, por sua vez, implica na possibilidade de se acionar o aparato judicial para que o direito previsto no ECA seja concretizado, utilizando-se, se for necessário, todos os instrumentos disponíveis pelo judiciário para que tal direito se realize. Sob essa nova perspectiva, o Estatuto da Criança e do Adolescente é sancionado em 13 de julho de 1990, tornando-se a lei 8.069 que entraria em vigor em 12 de outubro do mesmo ano.

Saliente-se que o artigo 227 da Constituição Federal de 1988 está inserido dentro da própria denominação dada à época de sua promulgação, a saber, "Constituição Cidadã". O artigo 227 da C. F. e o próprio ECA corporificam o desejo de assegurar dignidade às crianças e aos adolescentes brasileiros. O ECA é assim promulgado para propiciar "reais condições para que os direitos consagrados na Carta Magna pudessem ser concretizados." [53]

Considerados agora sujeitos de direitos, crianças e adolescentes deixam de ser objetos passíveis de tutela da família, do Estado e da sociedade [54], ou seja, passam da condição de objetos de direito [55] para a de sujeitos que possuem direitos. Ser sujeito de direito implica possuir direitos e ter proteção da ordem jurídica, caso eles não sejam efetivados; ser objeto de direito implica na situação de alguém ter o direito sobre alguma coisa ou alguém.

É o fato de tornar crianças e adolescentes sujeitos de direitos que diferencia fundamentalmente o ECA do Código de Menores de 1979, criando-se a possibilidade de crianças e adolescentes terem acesso aos meios de defesa dos seus direitos, principalmente da liberdade, do respeito e da dignidade, bem como à responsabilização daqueles que porventura venham a ofende-los. [56] Tornar crianças e adolescentes sujeitos de direitos parece ser a principal característica da doutrina da proteção integral [57]. A referida doutrina é o fundamento que implica na comparação do ECA com a Revolução Copernicana. [58] Ainda que o ECA possua institutos similares ao Código de Menores, de nenhum modo se pode dizer que, ao fazer isso, o ECA adota a teoria da situação irregular. O que é fundamental analisar tanto no Código de Menores quanto no ECA é o que já fora mencionado acima: a destinação do público atingido pelas medidas estabelecidas.

Preceituando direitos, o ECA amplia a sua abrangência a todas as crianças e adolescentes sendo que as medidas ali previstas exigem uma prestação positiva do Estado, da família e da sociedade independente de qualquer condição, diferentemente, o Código de Menores possui abrangência restrita e suas medidas não obrigam o Estado e a sociedade justamente por englobar apenas os menores em situação irregular. Sujeitos de direitos são assim todas crianças e adolescentes independentemente de qualquer condição ou adequação.

Essa nova condição jurídica a que foram alçadas as crianças e os adolescentes coloca-os em posição de igualdade em relação aos adultos. Agora, ambos são vistos como pessoa humana, possuindo direitos subjetivos que podem ser exigidos judicialmente. É o que se estabelece expressamente no artigo 3º do ECA:

"A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade".

Tal dispositivo elevou definitivamente a criança e o adolescente à condição de sujeitos de direitos (gozam de todos os direitos fundamentais), estabelecendo a finalidade a ser alcançada: assegurar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. Desfruta a infância e a juventude de uma finalidade especial na medida em que são sujeitos de direitos que devem ter assegurados pleno desenvolvimento.

Mas não é só. Tais direitos devem ser assegurados solidariamente pela família, comunidade, sociedade em geral e Poder Público conforme a previsão inovadora constante do art. 4º da referida lei:

"É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária."

Essa obrigação comum entre os pais, à sociedade e o Estado para com a infância e a juventude deve ser cumprida com primazia absoluta, conforme a expressão com absoluta prioridade. Isto significa que ante a impossibilidade de se assegurar direitos a todos os que necessitam da prestação, deve-se atender primeiramente à infância e a juventude. Em verdade, trata-se de um princípio que caracteriza o direito da criança que, como tal, irá desempenhar, dentre outras funções, a de servir como instrumento de interpretação nos mais variados casos.

Considerar a criança e o adolescente sujeitos de direitos, garantia constitucional prevista no artigo 227 da C.F. e no próprio ECA, significa assim assegurar prioritariamente a efetivação de políticas públicas que estimulem positivamente o seu desenvolvimento e os ponha a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. Se inexistem políticas públicas, em quantidade e qualidade, a saúde, a educação, o lazer, a alimentação e outros direitos não farão parte ou serão insuficientes para garantir o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente [59], ou seja, a criança e o adolescente estarão impossibilitados de exercer direitos de cidadania, continuando-se um processo vicioso de exclusão em que as dificuldades sócio-econômicas, o analfabetismo e a violência fazem o artigo 227 da C. F. parecer mero rabisco em folha de papel.

Fundamentando-se na doutrina da proteção integral e, consequentemente, se constituindo em um diploma legal que estabelece direitos às crianças e aos adolescentes, o ECA, já em seu 1º artigo, estabelece: "Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança ao adolescente". Essa proteção integral

"quer dizer amparo completo, não só da criança e do adolescente, sob o ponto de vista material e espiritual, como também a sua salvaguarda desde o momento da concepção, zelando pela assistência à saúde e bem-estar da gestante e da família, natural ou substituta da qual irá fazer parte." [60]

A doutrina da proteção visa assegurar os direitos fundamentais (e não mera carta de intenções [61]) às crianças e aos adolescentes na crença de que tais direitos proporcionar-lhes-á o pleno desenvolvimento. Em suma, sob a perspectiva da referida doutrina, tais direitos proporcionariam a concretização do princípio da dignidade humana, gerando, no presente, crianças e adolescentes mais justos, felizes e humanos.

A existência de características peculiares de crianças e adolescentes inserem-nas em uma fase de desenvolvimento de suas potencialidades: a fase de desenvolvimento tem justificado a existência da primazia absoluta à infância e a juventude. Conquanto esse fato seja verdadeiro, é possível se identificar um movimento de parcela da opinião pública que crítica a enunciação de direitos e a prioridade que, em tese, é destinada à infância e a juventude, sobretudo, diante da suposta proteção privilegiada conferida pela idade penal aos adolescentes que geraria o aumento da violência juvenil. Por trás deste discurso conservador, há a total desconsideração dos direitos da criança e do adolescente já que não se observa nessa parcela da sociedade a reivindicação do cumprimento do artigo 227 da Constituição Federal. [62]


Algumas inovações do ECA

Tem-se que o fim condutor do ECA gira em torno da doutrina da proteção integral que enuncia direitos que devem ser garantidos prioritariamente às crianças e aos adolescentes visando garantir o pleno desenvolvimentos desses. A doutrina influenciará todos os outros institutos disciplinados pelo Estatuto. Esse é o ponto a ser demarcado: a revolução proposta pelo ECA estabelece em um mesmo plano crianças e adolescentes enquanto pessoas humanas dotadas de dignidade.

Comumente, quando da elaboração de uma nova lei, discuti-se em que medida o novo diploma legal alterará o anterior. Se é certo que há alterações com a criação e a incorporação de novos institutos, não é menos certo que tais alterações, muitas vezes, representam atualizações que incorporam antigos institutos jurídicos, agora atualizados e adaptados, em tese, a uma nova realidade social. Desde há pouco, tem-se a vigência de um novo estatuto civil que, certamente, pretendeu a atualização do antigo código aos desafios impostos pelas extremas mudanças dos últimos 86 anos. Para realizar tal intento, é correto afirmar que o Código Civil de 1916 serviu – além de fonte de inspiração – de parâmetro e de fonte para o novo código. Dentre outros, a lógica interna inerente à disciplina civil que a singulariza, os institutos jurídicos que o definem foram apropriados pelo legislador contemporâneo, servindo de ponto inicial para a análise de valor acerca da necessidade e dos efeitos de sua utilização. A constatação é que o legislador contemporâneo partiu de algo dado: o Código Civil de 1916 (até pela disposição estrutural isso pode ser evidenciado). Esse processo ocorreu com o ECA se comparado ao Código de Menores de 79?

A pergunta não é tão simples. Acima distinguiu-se o traço principal que diferencia o ECA do Código de Menores de 79, isto é, a substituição da doutrina da situação irregular pela doutrina da proteção integral. Como visto, não se trata de mera substituição. A lógica jurídica de ambos diplomas legais apresenta diferenças capazes de identificar dois direitos: o direito do menor (Código de Menores) e o direito da criança (ECA). O primeiro, fulcrado na doutrina da situação irregular, não atingia todos os menores mas apenas aqueles que se identificassem às situações descritas no art. 2º do Código de Menores.

Ao contrário, o ECA enunciou direitos, gerando a possibilidade de exigibilidade de tais direito, situação que elevou a sua abrangência a todas as crianças. Tem-se que o ECA não poderia ter absorvido a lógica-jurídica apresentada no Código de Menores pela razão de que os dois diplomas legais condicionavam as suas respectivas estruturas legais diferentemente. Contudo, inúmeros institutos jurídicos constantes do Código de Menores foram absorvidos e aperfeiçoados pelo ECA. São exemplos desses institutos: a internação de adolescentes infratores [63], a colocação em família substituta [64] e as medidas de vigilância/Política de Atendimento e Fiscalização das Entidades [65].

Desse modo, as importantes alterações introduzidas pelo ECA são construídas, também, a partir das atualizações de antigos institutos jurídicos adaptados à nova realidade social inaugurada e requerida pela doutrina da proteção integral.

Diferentemente, há institutos jurídicos previstos no ECA que se constituem em inovação na medida em que não são encontrados nos Códigos de Menores de 27 e 79. Parecem ter sido criados ante a inexistência e insuficiência de institutos jurídicos previstos nas legislações anteriores que contribuíssem para a correção do modelo voltado ao menor até então vigente e atendessem as finalidades de proteção integral de crianças e adolescentes.

São exemplos desses novos institutos jurídicos previstos no ECA: a municipalização e a descentralização da política dirigida às crianças e aos adolescentes bem como a criação de conselhos [66] e as garantias processuais do adolescente submetido ao procedimento de apuração de ato infracional [67].


Notas

1. SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore (org.). 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2000, Pg. 211.

2. Op. Cit., p.156 in Álbum das meninas, revista literária e educativa dedicada às jovens brasileiras – propriedade Anália Emilia Franco – Anno 1, São Paulo, 31 de out. 1898, n. 7.

3. Op. Cit., p. 212.

4. Op. Cit., p. 212.

5. Op. Cit., p. 213.

6. Op. Cit., p. 214.

7. Op. Cit., p. 215.

8. Martha Abreu observa que esse discurso moralista era de cunho estritamente elitista, tendo o direito servido para legitimar essa nova moralidade. Um exemplo disso, verifica-se no tratamento da questão de moças defloradas. O julgamento dos juristas, em casos como esses, estava associado a um padrão econômico da moça: assim, "as moças defloradas, na totalidade representantes de setores populares, eram vistas e tratadas como mulheres pela grande parte dos juristas e, também, pelos seus próprios pares" (Meninas Perdidas. In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore (org.). 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2000, Pg. 290).

A professora Liliane Novaes acentua o caráter moral presente no discurso empresarial: "Nos discursos empresariais dos anos 20 percebia-se que a preocupação com a vida privada, com a esfera familiar do trabalhador, se dirigia muito mais ao controle dos seus ‘instintos animais’ e hábitos insalubres fora do trabalho do que a sua condição e de sua família como pessoas (do gênero humano)." (Tese de Mestrado sobre o Trabalho Infantil apresentada junto ao Dep. Serviço social, UFMT, p. 4).

9. Esmeralda Moura comenta que: "Em 1890, segundo a repartição de Estatística e Arquivo do Estado, os menores representavam aproximadamente um quarto da mão-de-obra empregada nesse setor na capital". (Crianças operárias na recém-industrializada São Paulo. In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore (org.). 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2000, Pg. 265).

10. MOURA, Esmeralda. Crianças operárias na recém-industrializada São Paulo. In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore (org.). 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2000, p. 266.

11. Marco Santos afirma que: "Freqüentemente, esses menores transitavam entre atividades lícitas e ilícitas, servindo de mão-de-obra em pequenos serviços, e na falta desses, entregando-se à prática de pequenos furtos e roubos, acobertando-se no intenso fluxo de transeuntes nas calçadas paulistanas". Criança e criminalidade no início do século. In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore (org.). 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2000, Pg. 219.

12. Candido Mota. A justiça criminal (1895). São Paulo: Imp. Oficial, 1895. Citado em "Criança e criminalidade no início do século". In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore (org.). 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2000, Pg. 219.

13. A criação pelo governo de uma instituição pública de recolhimento que visasse corrigir os menores que praticavam atos ilícitos seria a solução para os jovens delinquentes (p. 223); seria uma forma também de proteger a infância já que evitaria que os menores fossem colocados nas mesmas celas que adultos criminosos (espécie de castigo informal) (p. 223).

14. SANTOS, Marco. Criança e criminalidade no início do século. In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore (org.). 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2000, p. 222.

15. SANTOS, Marco. Criança e criminalidade no início do século. In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore (org.). 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2000, p. 225.

16. RIZZINI, Irma. Pequenos trabalhadores do Brasil. In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore (org.). 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2000, p. 378

17. Op. cit., p 380

18. Tese de Mestrado apresentado pela Prof. Liliane Capilé sobre o Trabalho Infantil apresentada junto ao Dep. Serviço social, UFMT, p. 4.

19. SILVA, Roberto da. Direito do Menor X Direito da Criança. Retirado do site www.direitoejustiça.com em 15 de setembro de 2002.

20. SILVA, Roberto da. Direito do Menor X Direito da Criança. Retirado do site www.direitoejustiça.com em 15 de setembro de 2002.

21. PASSETTI, Edson. Crianças carentes e políticas públicas. In: História das Crianças no Brasil. Mary Del Priore (org.). 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2000, p. 348.

22. Tese de Mestrado apresentado pela Prof. Liliane Capilé sobre o Trabalho Infantil apresentada junto ao Dep. Serviço social, UFMT.

23. Tese de Mestrado apresentado pela Prof. Liliane Capilé sobre o Trabalho Infantil apresentada junto ao Dep. Serviço social, UFMT.

24. Tese de Mestrado apresentado pela Prof. Liliane Capilé sobre o Trabalho Infantil apresentada junto ao Dep. Serviço social, UFMT.

25. Após apontar que a FUNABEM fora criada dentro do espírito da Doutrina da Segurança Nacional, norteadora das ações dos governos militares, cuja formulação teórica fora estabelecida na Escola Superior de Guerra, Roberto da Silva, op. cit., aponta que "a Funabem propunha-se a resolver um problema nacional, pois nas palavras de seu primeiro presidente, o médico Mário Altefender, ‘cada vez mais se acentuava a necessidade da elaboração de uma nova política, cuja execução fosse entregue a um órgão federal, fazendo desaparecer a idéia de que cada um pode resolver seus problemas locais, estanques, quase pessoais, sem pensar na Nação, como que ignorando a existência de 22 Estados e territórios e que tudo se chama Brasil’ (In: Anais da X Semana de Estudos do Problema do Menor, São Paulo, 1971:476."

26. "A FUNABEM (Fundação Nacional para o Bem Estar do Menor), veio substituir o SAM com a proposta de ser apenas uma formuladora de políticas para a assistência ao menor, mas um sistema estadual de atendimento foi se desenvolvendo tendo seus internatos para os "infratores" e para os "carentes", nacionalmente conhecidos como FEBEMs." Tese de Mestrado apresentado pela Prof. Liliane Capilé sobre o Trabalho Infantil apresentada junto ao Dep. Serviço social, UFMT.

27. SILVA, Roberto da. Direito do Menor X Direito da Criança. Retirado do site www.direitoejustiça.com em 15 de setembro de 2002.

28. SILVA, Roberto da. Direito do Menor X Direito da Criança. Retirado do site www.direitoejustiça.com em 15 de setembro de 2002.

29. Roberto da Silva, op. cit., atribui à doutrina da segurança nacional a instituição do sistema de internação de carentes e abandonados até os 18 anos e o tratamento dos infratores sob a ótica da "política dos muros retentores", ao invés da "política dos portões abertos". Além disso, as unidades de internação deveriam contar com "inspetores de alunos, monitores ou atendentes jovens e vigorosos (com um mínimo de escolaridade), a presença de guarda permanente (reedição do sistema penitenciário), correlacionamento policial perfeito (o mesmo tratamento para menores e adultos), que houvesse compreensão política (para justificar a necessidade de isolamento das instituições totais) e, sobretudo, confiança social (para que não houvesse ingerência no que acontecia dentro dos muros das instituições)."

30. Tese de Mestrado apresentado pela Prof. Liliane Capilé sobre o Trabalho Infantil apresentada junto ao Dep. Serviço social, UFMT.

31. Roberto da Silva, op. cit., explica que "as alterações promovidas no Código de 27 ao longo dos anos, particularmente pelas leis n.º 4.655/65, 5.258/67 e 4.439/68, foram todas no sentido de especificar a natureza do tratamento necessário ao ‘menor infrator’, distinguindo-o do órfão e do abandonado, ainda que todos fossem caracterizados como em "situação irregular’".

32. Roberto da Silva, op. cit., citando Mário Altefender: "o problema do menor, diretamente ligado ao problema da família, tendo como agravantes fatores que todos nós conhecemos [...] como a explosão demográfica, o problema da saúde, a deficiente alimentação, a migração, o subemprego, a falta de religião, o desrespeito à autoridade, a ignorância da pátria, o problema do menor não pode ser solucionado com a idéia ingênua de construir abrigos. Infelizmente ainda se percebe no Brasil a influência dessa detestável política. Questões como mendicância, abandono de menores, delinqüência, ainda são tomados como existentes porque os Juizes de Menores e a polícia são ineficientes".

33. BRASIL. Senado Federal. Código de Menores, Lei n.º 6.697/79: comparações, anotações, histórico. Brasília, 1982, p. 427.

34. O relator senador José Lindoso ofereceu projeto substitutivo em que abandonou a enunciação de direitos.

35. A elaboração do Código de Menores envolveu assim o debate entre o Direito da Criança e o Direito do Menor, pelo menos, sob certos aspectos. O fato da doutrina do Direito do Menor ter sido vitoriosa no que seria o Código de Menores de 79 não anula a existência e a importância da controvérsia em sua elaboração, sobretudo, pelo reconhecimento de que foi a Declaração dos Direitos da Criança de 1959 que possibilitaria criar as condições para a existência dessa controvérsia. Isto por que a mencionada Declaração, pela primeira vez, colocaria a criança e o adolescente em evidência do ponto de vista da proteção legal. E o fez isso, enunciando direitos que - mesmo sem um valor normativo que conduzisse à sua exigibilidade enquanto direito subjetivo - romperiam com uma tradição internacional de omissão com a problemática da criança. Deixava-se para trás a visão da criança vista como um objeto; deixava-se para trás a responsabilização para com a criança restrita exclusivamente ao âmbito familiar como, por exemplo, ocorria com as legislações influenciadas pela doutrina da situação irregular.

36. BRASIL. Senado Federal. Código de Menores, Lei n.º 6.697/79: comparações, anotações, histórico. Brasília, 1982, p. 473.

37. BRASIL. Senado Federal. Código de Menores, Lei n.º 6.697/79: comparações, anotações, histórico. Brasília, 1982, p. 473.

38. BRASIL. Senado Federal. Código de Menores, Lei n.º 6.697/79: comparações, anotações, histórico. Brasília, 1982, p. 451.

39. Existindo a impossibilidade da expressão situação irregular abarcar todas as hipóteses de patologia social, caberia ao "Juizado de Menores classificar a situação do menor como irregular ou não" (p. 88 in Correio Brasiliense, de 14.10.1979, sob o título "Seminário: vê como vive menor do DF). Isso reflete o extremo poder que o juiz de menores possuía para definir a situação do menor, verdadeiro arbítrio conferindo-lhes o poder para definir o destino de um menor em uma base extremamente subjetiva. Esse é o mesmo entendimento do Relator do Código de Menores na Câmara dos Deputados, o então deputado Claudino Sales, segundo o qual ante a impossibilidade da norma abarcar todas as faces da "situação irregular" de forma expressa já que a realidade social é extremamente mutável deve a expressão situação irregular ser "uma chave para generalizar todas as situações do menor jurisdicionado". Isso significa tipificar uma norma em branco, que seria utilizada conforme o entendimento de cada juiz que justificaria a conduta do menor como uma patologia social. BRASIL. Senado Federal. Código de Menores, Lei n.º 6.697/79: comparações, anotações, histórico. Brasília, 1982, p. 89 in DCN, SI 17.8, 1979, p. 8.042).

40. BRASIL. Senado Federal. Código de Menores, Lei n.º 6.697/79: comparações, anotações, histórico. Brasília, 1982, p. 85 (Direito do Menor - um direito novo. Revista da Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, 27 (21), maio 1979, pp. 391-4). Prof. Allyrio Cavallieri).

41. BRASIL. Senado Federal. Código de Menores, Lei n.º 6.697/79: comparações, anotações, histórico. Brasília, 1982, p. 83

42. A tutela jurídica do menor só ocorre ante o disposto no art. 2º que define os casos de situação irregular "sobre o qual incidirão todas as normas do Código" BRASIL. Senado Federal. Código de Menores, Lei n.º 6.697/79: comparações, anotações, histórico. Brasília, 1982, p. 473).

43. Para mostrar a existência no direito brasileiro (Código Mello Matos) da doutrina da situação irregular, acentua o professor Cavallieri que a prevenção, referida em 79, se correlaciona com a vigilância prevista no Código de 27. À expressão situação irregular correspondem as denominações abandonado, delinqüente, transviado, exposto, infrator. BRASIL. Senado Federal. Código de Menores, Lei n.º 6.697/79: comparações, anotações, histórico. Brasília, 1982, p. 86.

44. BRASIL. Senado Federal. Código de Menores, Lei n.º 6.697/79: comparações, anotações, histórico. Brasília, 1982, p. 83

45. BRASIL. Senado Federal. Código de Menores, Lei n.º 6.697/79: comparações, anotações, histórico. Brasília, 1982, p. 84

46. BRASIL. Senado Federal. Código de Menores, Lei n.º 6.697/79: comparações, anotações, histórico. Brasília, 1982, p. 135

47. Essa amplitude estaria em seu ponto máximo na doutrina da proteção integral quando os destinatários das normas fossem todas as crianças e adolescentes, independentes de qualquer condição; em relação à doutrina da situação irregular, a amplitude é reduzida na medida em que o código tem destinatários na medida em que estes são identificados à determinada condutas.

48. CHAVES, Antônio. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 2ª ed. São Paulo: LTr, 1997, pg. 41/42. O autor faz referência ao deputado Nelson Aguiar que, em discurso publicado no Diário do Congresso Nacional de 05.09.1987, págs. 523-525, considerou espantoso tal fato. Observação interessante do Deputado comentada por Antônio Chaves: "Diagnostica a causa do mal no vício histórico que trazemos e que tem acarretado conseqüências graves à vida da Nação: o direito da criança está incorporado ao Direito da Família de tal forma que só possa ser exercido através do pai e da mãe, o que significa dizer que a criança sem família neste País não tinha direito."

49. José C. de Oliveira Sampaio destaca o papel desempenhado pelos seguintes documentos internacionais: Declaração de Genebra (1924), Declaração Universal dos Direitos Humanos ( 1948), Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), Convenção Americana dos Direitos Humanos ( Pacto de San José – 1969). Tais documentos teriam contribuído para a afirmação da doutrina da proteção integral e para a incorporação dessa no ordenamento jurídico brasileiro. SAMPAIO, José C. de Oliveira. Infância e Juventude: o princípio da prioridade absoluta e a colocação em família substituta no ECA – os limites etários da guarda. Revista Direito e Paz, São Paulo, n.º 02, 2000, p. 35.

50. O artigo 227 da Constituição Federal foi fruto de uma emenda popular denominada "CRIANÇA, PRIORIDADE NACIONAL". Organizada pela entidades Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Federação Nacional das sociedades Pestalozzi (FENASP), Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança (FNDDC) e Serviço Nacional Justiça e Não-Violência a emenda pretendia alertar para as grave situação da infância e da juventude brasileira além de criar condições de que a Constituição tivesse dispositivos que promovessem e defendessem os direitos das crianças e dos adolescentes.

51. SILVA, Antônio F. do Amaral e. O Estatuto, Novo Direito da Criança e do Adolescente e a Justiça da Infância e da Juventude. Retirado de www.direitoejustiça.com em 20 de maio de 2002.

52. SILVA, Antônio F. do Amaral e. O Estatuto, Novo Direito da Criança e do Adolescente e a Justiça da Infância e da Juventude. Retirado de www.direitoejustiça.com em 20 de maio de 2002.

53. COSTA, Dionísio Leite da. Reflexões sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Revista Direito e Paz, São Paulo, n.º 02, 2000.

54. Tese de Mestrado apresentado pela Prof. Liliane Capilé sobre o Trabalho Infantil apresentada junto ao Dep. Serviço social, UFMT, item 4.

55. Dissertando sobre o surgimento da idéia da criança como objeto de direito, Allyrio Cavallieri a identifica na lei antiga que "autorizava o poder familiar a dispor da vida e da morte do próprio filho, o que justificaria o gesto de Abraão, ao sacrificar o filho Isaac. Seus reflexos estão no Código de Napoleão, naturalmente filtrados pelo cristianismo e em todas as legislações ocidentais que o imitaram, como o Brasil, mas, ainda assim, propugnador de um pátrio poder quase absoluto" (p. 219). Citando o advento do Código Civil francês como o marco em que a criança era considerada sujeito e não objeto de direito, lembra Cavallieri que, naquele Código, a relativização do pátrio poder operou-se através da permissão conferida ao juiz de menores "para afastar o pátrio poder, toda vez que estivessem em perigo a saúde, a segurança, a moralidade e a educação de uma criança, mesmo inserida numa família" Cf. Allyrio Cavallieri, O Direito do Menor, in Ministério da Justiça, arquivos, 35: 146, Jun/1978, citado em BRASIL. Senado Federal. Código de Menores, Lei n.º 6.697/79: comparações, anotações, histórico. Brasília, 1982, p. 80.

Pode-se dizer que o poder conferido ao juiz de menores para destituir o pátrio poder nos casos previstos na lei representa a tentativa de limitar o arbítrio dos pais, guardando um sentido protetivo nos casos em que a infância e a juventude estivessem ameaçadas.

56. SAMPAIO, José C. de Oliveira. op.cit., p. 35.

57. Sobre o surgimento da doutrina da Proteção Integral, Roberto da Silva observa que "foi enunciada inicialmente na Declaração dos Direitos da Criança de 1959, mas o 8º Congresso da Associação Internacional de Juízes de Menores (Genebra, 1959) posicionou-se no sentido de que não era função do Poder Judiciário assegurar à criança direitos tão amplos como o direito ao nome, à nacionalidade, à saúde, à educação, ao lazer e ao tratamento médico dos deficientes." Roberto da Silva, op. cit..

58.

59. DARLAN, Siro. Redução da idade de Responsabilidade Penal. Revista Cidadania e Justiça. Ano 3. N.º 7. 2º semestre de 99.

60. CHAVES, Antônio. Op. cit., pg. 51. O autor identifica ainda um sentido estritamente legal na expressão proteção integral: "é que toda a matéria passará a ficar subordinada aos dispositivos do estatuto, como de resto se deduz do último dos seus artigos, o de n.º 267." Por sua vez, o enunciado do artigo 267 do Eca é o seguinte: "Revogam-se as leis ns. 4.513, de 1964, e 6.697, de 10 de outubro de 1979 (Código de Menores), e as demais disposições em contrário."

61. SILVA, Antônio F. do Amaral e. O Estatuto, Novo Direito da Criança e do Adolescente e a Justiça da Infância e da Juventude. Retirado de www.direitoejustiça.com em 20 de maio de 2002.

62. DARLAN, Siro. Redução da idade de Responsabilidade Penal. Revista Cidadania e Justiça. Ano 3. N.º 7. 2º semestre de 99.

63. Saliente-se o que já foi dito anteriormente: apesar de ser um instituto comum entre o Código de Menores e o ECA, este disciplinou-a conforme a doutrina da proteção integral apresentando importantes inovações, dentre as quais destacam-se: a reavaliação da medida de internação a cada seis meses (art. 121, §2º, ECA), diferentemente do que ocorria no Código de Menores onde a medida podia ser avaliada em até dois anos (art. 41, §1º, Lei 6.697/79); a definição de um prazo máximo de internação de 3 anos (art. 121, §3º, ECA) enquanto no Código de Menores essa situação não está definida, possuindo o juiz a capacidade de determinar o tempo de internação que poderia exceder à três anos (art. 41, Lei 6.697/79); a previsão de que o local da internação seja destinado exclusivamente para adolescentes (art. 123, ECA), por sua vez, o Código de Menors admite excepcionalmente a internação em estabelecimento destinado a maiores; a previsão de direitos aos adolescentes internados (art. 124, ECA) que não existia no Código de Menores.

64. Entre as medidas aplicáveis ao menor, destacam-se às relativas à colocação em família substituta. A idéia é evitar a internação mediante a guarda, a tutela e a adoção sobretudo nos casos orfandade comprovada ou de abandono total. Sabe-se que a maior parte dos abandonos ocorre em decorrência de carência econômicas. Vem daí o art. 23, pár. único do ECA que prevê a inclusão da família carente em programas oficiais de auxílio como forma de impedir a perda ou suspensão do pátrio poder. Registre-se a inexistência de um dispositivo de cunho preventivo no como aquele no Código de Menores em que pese o entendimento abalizado de parte da doutrina: "A assistência ao menor na própria familiar é a forma mais eficaz de prevenir o abandono. Esta ação é própria dos órgãos executivos de assistência, e será exercida por meio de subsídio familiar e de assistência técnica à família" (conforme Alberto de Gusmão, juiz de menores, p. 148 in III Encontro Nacional de Juizes de Menores, Juizado de Menores do Distrito Federal, setor de Biblioteca e Documentação, citado em BRASIL. Senado Federal. Código de Menores, Lei n.º 6.697/79: comparações, anotações, histórico. Brasília, 1982, p. 136-7). Somente ante a impossibilidade de integração na própria família, recorre-se à família substituta sendo a internação o último recurso.

Outro aspecto importante, que evidencia a valorização à personalidade da criança no ECA, é a previsão de oitiva da criança nos casos de colocação em família substituta, desde que possam se expressar. De fato, não havia no Código de Menores tal previsão. Assim, era a lei do divórcio (6.515/77) que disciplinaria a matéria, estabelecendo em seu art. 10 a guarda ao cônjuge que não tiver dado causa ao divórcio. Apesar de ser uma lei recente, as afinidades, a afeição entre pais e filhos não são avaliados, ignorando o que é ideal para os filhos "De forma que as crianças são distribuídas como coisas: ‘se todos os filhos couberem a um só cônjuge (...)’, reza o parágrafo único do art. 327" citado em BRASIL. Senado Federal. Código de Menores, Lei n.º 6.697/79: comparações, anotações, histórico. Brasília, 1982, p. 164.

65. É bem provável que a divulgação das violações cometidas e abusos cometidos contra menores no âmbito do SAM e a ineficácia da internação que culminava na estigmatização do adolescente tenha influenciado o legislador a inserir dispositivos atinentes à fiscalização dos estabelecimentos que abrigavam menores (arts. 48 e 49, Código de Menores). O ECA disciplina a matéria para além da timidez observada no Código de Menores de 79, estabelecendo a necessidade de registro dessas entidades (art.91, ECA), os princípios exigidos em seus programas (art. 92) e as obrigações a serem seguidas por essas entidades (art. 94).

66. Medidas como a descentralização (municipalização) foram previstas no ECA com vistas a desburocratização do atendimento à criança e ao adolescente. As super-estruturas de controle e a formulação de uma política do menor de caráter nacional – construídas, sobretudo, pela influência da Doutrina da Segurança Nacional, em que a FUNABEM era a versão acabada – mostraram-se ineficazes para executar os programas voltados para infância e a juventude. O Código de Menores, por sua vez, coroava a mencionada política descentralizada, dispondo em seu art. 4º, I que a aplicação do referido Código se submetia as diretrizes da Política Nacional do Bem-Estar do Menor. A política de atendimento prevista no ECA, por sua vez, tem como diretrizes, dentre outras: municipalização do atendimento (art. 88, I); criação de conselhos municipais dos direitos da criança, órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas segundo leis federa, estaduais e municipais (ar. 88, II); criação e manutenção de programas específicos, observada a descentralização político-administrativa (art. 88, III); manutenção de fundos nacional, estaduais e municipais vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e do adolescente. Além disso, o art. 132 preceitua que:"Em cada Município haverá, no mínimo, um Conselho Tutelar composto de cinco membros, eleitos pelos cidadãos locais para mandato de três anos, permitida uma recondução". ( redação retificada pela Lei n.º 8.242, de 12.10.1991). A experiência da participação da comunidade é interessante, dentre outras coisas, por procurar dentro da própria comunidade soluções para os problemas da infância e juventude. Conforme os seus próprios recursos, a comunidade tem melhores condições de resolver determinados problemas já que conhece as necessidades dos menores que vivem em seu meio.

Antônio Chaves, op.cit., p. 586, ensina que a municipalização do problema do menor está ligado à idéia de "absorção dos menores carentes e abandonados por suas comunidades originais, e não pelas instituições públicas que os confinam e os marginalizam, familiar e socialmente".

Essa ação da comunidade, conforme previsão no ECA, ocorre por meio dos conselhos tutelares e conselhos de direitos. Evidentemente, a ação desses conselhos deve ser integrada por um conjunto de ações que possibilite a efetivação de suas decisões. Cabe aos Conselhos de Direitos definir a política municipal antes estabelecida por tecnocratas que pouco sabiam da realidade local (art. 88, II, ECA). Exercem atribuições que antes eram conferidas aos juízes de menores. Cabe aos Conselhos Tutelares zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e dos adolescentes definidos no ECA (art. 131, ECA).

67. Estabelecendo que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, o ECA estendeu-lhes garantias processuais antes não asseguradas nos diplomas legislativos anteriores. No Código de Menores, não havia, no curso do procedimento de apuração de ato infracional, a previsão de efetiva oportunidade de produção de provas, a defesa obrigatória por profissional habilitado, a garantia de liberdade a não ser em caso de flagrante ou ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária, a intervenção do Ministério Público em processos envolvendo infração penal e a intervenção de advogado. A justificativa para a posição de inferioridade processual do adolescente submetido a um procedimento de apuração de ato infracional se inspira na idéia de incapacidade, logo, a sua internação tem natureza de medida de segurança, situação que parecia justificar a inexistência de garantias processuais. O ECA vem corrige essas distorções já que o adolescente tem todas as garantias de defesa e produção de provas como um adulto. O reconhecimento de garantias processuais possibilita ao adolescente acusado de ato infracional atuar efetivamente no processo, defendendo-se e provando a sua tese. Não se pode esquecer que as medidas destinadas ao adolescente relativas a ato infracional podem culminar com a privação da sua liberdade. As garantias processuais estão estabelecidas no art. 110 e 111do ECA. Eis algumas delas: devido processo legal, pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, mediante citação ou meio equivalente, igualdade na relação processual, defesa técnica por advogado, etc.


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Autor

  • Rinaldo Segundo

    bacharel em direito (UFMT), promotor de justiça no MPE/MT e mestre em direito (Harvard Law School), é autor do livro “Desenvolvimento Sustentável da Amazônia: menos desmatamento, desperdício e pobreza, mais preservação, alimentos e riqueza,” Juruá Editora.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEGUNDO, Rinaldo. Notas sobre o direito da criança. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3626. Acesso em: 18 maio 2024.