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A lide simulada na Justiça do Trabalho

A lide simulada na Justiça do Trabalho

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1. Introdução

Trataremos, no presente trabalho, de efetuar uma análise sobre as conseqüências da lide simulada na Justiça do Trabalho, porquanto nos parece de suma importância o aprofundamento da discussão sobre o tema, uma vez que inúmeros são os casos de ajuizamentos de reclamatórias fraudulentas, tendentes a suprimir direitos trabalhistas do empregado, produzindo efeitos diretos sobre a prestação jurisdicional por parte dos Magistrados daquela Justiça Especializada.

Buscaremos enfocar os instrumentos legais pelos quais poderá ser reduzida ou suprimida a incidência dessas lides simuladas, questionando, ainda, a participação do Advogado na simulação, bem como demonstrando a posição jurisprudencial acerca da matéria.

Justifica-se a abordagem do tema em questão, mormente quando se percebe substancial ocorrência desse tipo de reclamatórias, as quais afrontam os dispositivos legais e desvirtuam o objetivo da Justiça Obreira, que sabidamente tem o caráter protetivo do trabalhador, figura hipossuficiente na relação capital/trabalho.


2. Enfoque Jurídico do Tema

A Consolidação das Leis do Trabalho, em seu artigo 477, dispõe sobre a obrigatoriedade de pagamento das parcelas rescisórias ao empregado, com base na maior remuneração por ele percebida, quando este não houver dado causa à despedida.

É função do legislador insculpir nos dispositivos legais um mínimo de proteção ao empregado, no sentido de que este receba efetivamente as verbas a que faz jus, mormente diante do caráter alimentar do salário, como já mencionado anteriormente, vez que, amiúde, é a única fonte de sobrevivência do trabalhador.

No dizer do eminente Juiz do Trabalho Francisco Rossal de Araujo

"muitas vezes, ocorre um certo relaxamento do Poder Judiciário, dos órgãos de fiscalização do Poder Executivo, ou mesmo até dos Sindicatos com relação às parcelas resilitórias. Com sua apuração se dá em conjunto, normalmente o valor a ser pago ultrapassa os valores habituais, se considerados apenas o salário do empregado e alguma remuneração extra. Pelo fato do valor ser um pouco superior ao habitual, iniciou-se a mentalidade de que possa ser barganhado, como se tratasse de um direito ‘menor’. Ao ser reafirmada a natureza salarial e, por conseqüência, alimentar, na maioria das parcelas resilitórias, reafirma-se que o caráter protetivo deve agir com toda a sua intensidade. Do contrário, abrir-se-ia a porta para a fraude e para a barganha o que, em se tratando da natureza do bem jurídico em questão, significa diminuir o valor da dignidade do trabalhador."

Pode-se abstrair dessas assertivas que os Magistrados da Justiça do Trabalho têm mostrado preocupação com a ocorrência das lides simuladas, porém, evidenciando a idéia de que permanece no meio do empresariado a mentalidade de que pouco importa a natureza alimentar do salário, bastando que, ao ocorrer a despedida do obreiro e a conseqüente necessidade de pagamento das rescisórias, as quais apresentam-se como um encargo financeiro mais volumoso, venha-se a lançar mão de artifícios que possibilitem a redução ou a supressão do pagamento de alguns direitos do empregado.

Há que se considerar que o Direito do Trabalho alcança ao salário o princípio da irrenunciabilidade, portanto, não há como, de forma válida e eficaz, o afastamento voluntário dos direitos do trabalhador, eivando de nulidade qualquer ato que se direcione em sentido contrário àquele princípio laboral. Faz-se necessário que a ordem pública trabalhista seja efetivamente mantida, posto que é um baluarte a impedir a ocorrência de fraudes que venham a alterar e ofender esse princípio.

Cabe ressaltar que, nos tempos em que não havia na Consolidação das Leis Trabalhistas qualquer previsão acerca da efetiva quitação da verbas resilitórias, era praxe a elaboração de recibos extrajudiciais, firmados pelo empregado por ocasião de sua despedida, onde constava a expressão "pelo qual dou plena e geral quitação, nada mais tendo a reclamar, nem no presente, nem no futuro", situação que esgotava qualquer possibilidade de reação do obreiro, no sentido de reivindicar possíveis diferenças que entendesse devidas a seu favor. Note-se que tal situação perdurou durante muito tempo, mas a evolução jurisprudencial a respeito da matéria redundou na edição da Lei nº 4.066/62, que condicionou a validade do pedido de dispensa ou do recibo de quitação, desde que contasse o empregado com mais de um ano de serviço prestado à empregadora, à assistência do sindicato da categoria ou do Ministério do Trabalho. Ainda, a partir daí, a quitação ficaria restrita às parcelas efetivamente descriminadas no termo de quitação, culminando com a Súmula 41 do Tribunal Superior do Trabalho que regulou a questão. Desta forma, as cláusulas que "plena e geral quitação" usualmente insculpidas nos recibos rescisórios extrajudiciais, perderam a sua eficácia. Paulatinamente, essa posição consolidou-se ao longo do tempo, cristalizando-se na Lei nº 5.584/70, que resultou no parágrafo 2º do artigo 477 da Consolidação das Leis do Trabalho, o qual ampliou os efeitos liberatórios na quitação das parcelas, e não apenas dos valores constantes do termo de quitação devidamente firmado pelo empregado. Atualmente, temos o Enunciado nº 330 do Tribunal Superior do Trabalho, que registra a condição de expressa ressalva por ocasião da quitação, de cada parcela recebida, para que não se opere, em relação a essa, a efetiva quitação.

Assim, podemos observar que a jurisprudência tratou de resguardar os direitos do trabalhador no sentido de que, em que pese a ocorrência do término do contrato de trabalho, as condições pelas quais será procedido o pagamento das verbas rescisórias revestem-se de um caráter extremamente protetivo, com o escopo de evitar a proliferação de fraudes, isso quanto ao aspecto extrajudicial das quitações operadas, pois aquelas realizadas no âmbito judicial, através de conciliações na Justiça do Trabalho, ainda são alvo de lides simuladas, caracterizando perfeitamente uma reação dos empregadores à posição dos diplomas legais afetos ao tema, em especial o artigo 2º do artigo 477 da Consolidação das Leis do Trabalho, já mencionado.

Necessário dizer que, em que pese a Justiça do Trabalho esforçar-se para assegurar os direitos trabalhistas mínimos ao obreiro, diante da fraude, e uma vez homologado o acordo posto à apreciação, poderá ocorrer, um paradoxo, pois justamente o Órgão que pretende disciplinar, regular e fiscalizar o correto ajuste da terminação laborativa, estará, eventual e involuntariamente, frise-se, participando da lapidação de tais direitos.


3.

A Função do Magistrado na Homologação dos Acordos

A conciliação é sabidamente uma das mais expressivas formas de solução das lides, dela resultando, por força legal, efeito de coisa julgada material, equiparando-se, pois, à sentença que julgar procedente, procedente em parte ou improcedente os pedidos postulados numa Ação Trabalhista, nos termos do parágrafo único do artigo 831 da Consolidação das Leis do Trabalho, no caso da esfera trabalhista.

Vale lembrar, por oportuno, que o caráter irrecorrível da decisão que homologa um acordo, como constava no diploma legal antes mencionado, foi alterado pela Lei nº 10.035/00, que trata da execução das verbas previdenciárias incidentes sobre acordos pela própria Justiça do Trabalho, permitindo, portanto, que o INSS - Instituto Nacional da Seguridade Social, recorra das decisões homologatórias de acordos, desde que entenda ser credor do recolhimento previdenciário sobre parcelas remuneratórias.

A questão é abordada de forma cristalina por José Roberto Freire Pimenta, conforme se depreende do seguinte trecho de artigo por ele publicado:

"Se o juiz moderno (e especialmente o juiz do trabalho, cuja atuação tem carga inquisitorial ainda mais intensa) não é e nem pode ser uma estátua de pedra que deva permanecer distante e impassível diante da luta processual travada pelos litigantes (cabendo-lhe, ao contrário, participar ativamente do processo, de forma a assegurar que este cumpra sua finalidade de concretizar a vontade abstrata da lei e de pacificar, com justiça, a lide levada ao seu conhecimento), também não pode ele, ao examinar a proposta de conciliação submetida pelas partes, limitar-se apenas a verificar se todas as formalidades legais foram atendidas e a assegurar a inexistência de qualquer vício de consentimento."

Assim, o Juiz do Trabalho, face à especialização peculiar de que necessita para bem exercer o seu ofício, deve conduzir o processo dentro dos parâmetros legais, obviamente, observando as formas legais previstas, a inexistência de vícios processuais a macular a lide, porém, não pode e nem deve restringir-se a essa postura, porquanto o Processo do Trabalho ainda traz em si uma enorme carga inquisitorial, sendo partícipe ativo na condução da lide.

Desta forma, por ocasião da audiência inicial, e até mesmo antes disso, quando do prévio exame dos autos do processo, deverá o Magistrado atentar com afinco na busca de indícios de vícios que possam macular a ação. Não se diga, entretanto, que o Juiz estará "à cata" de fraudes em todo e qualquer processo que lhe vier à apreciação, mas sim, que a sua atuação, como condutor do processo, deve ser a mais próxima possível do completo domínio do feito.

Registre-se que o conceito de lide adotado pelo Código de Processo Civil nos remete ao entendimento de que a mesma é um conflito de interesses, qualificado por uma pretensão resistida, a uma interpretação singela. Assim, na lide simulada não haverá um dos requisitos necessários à configuração desse conceito, pois inexistirá a resistência, dado ao fato de que, já na audiência inicial, o acordo será proposto, inocorrendo sequer a contestação. Vê-se que é de crucial importância a atenção do Juiz ao comportamento das partes durante o procedimento.

Partindo desse pressuposto, entende-se que o Magistrado deve ter em mente que a prestação da tutela jurisdicional, principalmente no âmbito trabalhista, em razão do caráter alimentar do salário, não deve ser utilizada pelas partes para a materialização de intenções diversas daquelas legalmente previstas, ou seja, a aplicação do direito ao caso concreto.

Existe previsão expressa quanto à postura a ser tomada pelo Magistrado quando houver a confirmação da existência de simulacro da reclamatória, consoante o teor do artigo 129 do Código de Processo Civil, verbis:

Art. 129 – Convencendo-se, pelas circunstâncias da causa, de que autor e réu se serviram do processo para praticar ato simulado, ou conseguir fim proibido por lei, o juiz proferirá sentença que obste aos objetivos das partes.

É necessário salientar que, apesar das precauções eventualmente tomadas pelo Magistrado, detectando e impedindo a concretização da lide simulada, nas Comarcas que possuem mais de uma Vara do Trabalho, o intento das partes ainda poderá lograr sucesso, em virtude de um novo ajuizamento fraudulento, contanto que a ação seja distribuída para uma Vara diversa daquela em que a pretensão foi deduzida inicialmente.

De outro lado, sob a imposição do princípio dispositivo, o qual tem caráter restritivo à atuação do Magistrado relativamente ao caso concreto que lhe seja submetido, o Poder Judiciário, e em especial a Justiça do Trabalho, defrontam-se com enormes dificuldades em detectar e apurar as lides simuladas, posto que geralmente esses ilícitos são cometidos de maneira cautelosa, e o Juiz não poderá extrapolar os limites que lhe são impostos, atendo-se ao julgamento do feito, sem tomar qualquer iniciativa que ofenda àquele princípio.

Deverá o julgador, portanto, realizar com muita acuidade a audiência inaugural, no sentido de perceber qualquer anormalidade que indique a existência de qualquer das características de uma lide simulada.


4. O Papel do Advogado e sua Participação na Simulação

Não se poderia deixar de fazer menção expressa à questão da responsabilidade dos advogados, pelos atos praticados à margem das regras e princípios que disciplinam a postura processual dos contendores. A Lei nº 8.906/94, que trouxe à tona o novo estatuto da advocacia, deu importante passo no sentido de coibir os abusos comumente praticados pelos profissionais da advocacia, imunes pelos mandatos recebidos.

Ressalte-se que os profissionais da advocacia são indispensáveis à administração da Justiça, a teor do artigo 133 da Constituição Federal, deles dependendo a solução pacífica da maioria dos litígios. Das suas atuações, alicerçadas na realidade dos fatos, resultará a esperada solução célere do litígio. O próprio conhecimento das questões técnicas os habilita ao exercício do papel de verdadeiros árbitros, sempre na defesa dos interesses do constituinte e na busca da paz social.

Lamentavelmente, entretanto, verifica-se que em muitos casos, e em especial nas lides simuladas na Justiça do Trabalho, alguns profissionais da advocacia não têm pautado sua conduta em conformidade com os padrões mínimos de moral e ética, uma vez que constata-se nos foros trabalhistas o ajuizamento de diversas ações desprovidas de razoabilidade, fundadas em fatos completamente divorciados da realidade. Bem verdade que a falta de ética profissional constatada pelos órgãos do Judiciário determina o encaminhamento da questão à Comissão de Ética da OAB. Entretanto, permanece o gravame patrimonial imposto ao constituinte, ficando o Advogado imune a qualquer obrigação, ressalvada a hipótese (na prática inacessível à grande maioria dos trabalhadores) de que seja demandado perante a Justiça Comum e obrigado a reparar o dano causado por dolo ou culpa no exercício de suas funções.

Na esfera trabalhista, verifica-se, na maioria das vezes, um baixo nível de instrução dos trabalhadores, que permite aos advogados inidôneos persistir na prática dos atos de violência patrimonial, permanecendo sob a imunidade conferida pelos instrumentos de outorga de poderes. Conquanto não configure como causa de incapacidade, nos moldes do art. 6º, do Código Civil, a hipossuficiência e o restrito nível de instrução dos trabalhadores representam indiscutíveis "capitis diminutio", que não podem ser desconsideradas pelos Juízes. Por tal razão, nestes casos, embora reste evidente, às vezes, a participação do obreiro na simulação, há que se conferir ao Advogado a maior parcela de responsabilidade, ante a sua indiscutível superioridade ao seu constituinte, ao menos tecnicamente.

É responsabilidade dos operadores do direito, com efeito, desempenhar o papel pedagógico inerente à natureza pública de suas funções, agindo como verdadeiros protetores da ética e da moral, possibilitando que o judiciário resgate a posição de principal reduto de restauração da ordem jurídica e de defesa da sociedade, que, ao final, são os principais objetivos dessa instituição.

Evidentemente, a advocacia não caracteriza-se apenas como uma profissão, mas traz embutido em sua natureza um "munus", que afigura-se na obrigatoriedade de um bom e correto desempenho por parte daquele que foi contratado pela parte para defender os seus interesses.

No Brasil verifica-se que o advogado adquiriu o "status" de indispensável à administração da Justiça, tão-somente, após a promulgação da Constituição de 1988, conforme se vê ao teor do artigo 133, abaixo transcrito:

Art. 133 - O advogado é indispensável à administração da justiça sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.

A sua falta, portanto, compromete a validade e a eficácia do processo, resultando numa diminuição substancial da qualidade do serviço prestado ao cidadão, advindo daí sérias conseqüências à própria justiça. A segurança jurídica fica comprometida, pois, dependendo do poder econômico da parte, a contratação de advogados mais ou menos qualificados certamente influenciará no resultado da lide. Resta evidente que a ausência de advogado junto à parte litigante materializa verdadeiro desequilíbrio processual.

Em decorrência, é imprescindível a presença de advogado legalmente constituído em todas as ações de competência da Justiça do Trabalho, quer para o empregador, quer para o empregado.


5.

O Princípio da Boa-Fé

O comportamento humano em sociedade, teoricamente, deveria pautar-se pelos ditames da simplicidade, da honestidade e da boa-fé. Presume-se, portanto, que por ocasião da ocorrência de um litígio, as partes procedam de maneira lisa, honesta, conduzindo-se dentro dos parâmetros legais, morais e éticos, de modo a propiciar busca da verdade com serenidade e clareza.

O princípio da boa-fé no direito processual tem a natureza efetivamente ética. Não se trata, porém, de exigir que a parte se comporte de maneira ingênua, exibindo seus argumentos em ocasiões desnecessárias, permitindo que a outra parte obtenha vantagens com isso, mas sim, de que ambas conduzam-se sem malícia, dolo, sem o uso de artifícios ou fraudes ou outros elementos que possam macular a sua postura.

Há que se considerar que o princípio da boa-fé vem insculpido no Código de Processo Civil, que em seu artigo 17 dispõe, verbis:

Art. 17 – Reputa-se litigante de má-fé aquele que:

I – deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;

II – alterar a verdade dos fatos;

III – usar do processo para conseguir objetivo ilegal;

IV – opuser resistência injustificada ao andamento do processo;

V – proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;

VI – provocar incidentes manifestamente infundados;

VII – interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.

A clareza solar do diploma legal não deixa dúvidas quanto à possibilidade de responsabilização da parte que afrontar tal dispositivo. Resta claro, ainda, que tal princípio tem por finalidade a proteção da verdade e deve nortear o comportamento de todos os participantes, inclusive advogados, juízes, agentes do Ministério Público e serventuários da Justiça, e ainda aqueles que participarem eventualmente de uma relação jurídica, tais como os arrematadores em hasta pública, por ocasião da efetivação dos lances.

No entender de Rui Portanova:

"nosso Código de Processo Civil, certo de que a má-fé tem várias e imprevisíveis modalidades para manifestar-se, dispõe tanto de forma geral como em situações particulares, buscando obstar improbidades de todos os sujeitos que atuam no processo. Para reprimir a má-fé, o código elaborou um sistema minucioso de sanções que abrange todas as violações de caráter moral, atingindo todos que atuem no processo e durante todas as fases do procedimento, por ação ou omissão, no processo contencioso ou de jurisdição voluntária".

O processo, então, deverá transcorrer, desde a sua gênese, de forma serena a tranqüila, com a completa observância, por parte dos participantes inseridos dentro da relação processual, de uma forma ou de outra, dos ditames legais, sob pena de ocorrer mácula ao perfeito desenvolvimento do procedimento, o que, sem dúvida, acarretaria prejuízo à alguma das partes e, quem sabe, à própria prestação jurisdicional.

Mas não é só no Código de Processo Civil que vislumbramos salvaguardas do princípio titulado. O próprio Código de Ética e disciplina da OAB, já mencionado, em seu artigo 1º, exige que a postura do advogado esteja em conformidade com os princípios da moral individual, social e profissional.

Portanto, mesmo que, por ocasião do ajuizamento de uma reclamatória fraudulenta esteja o trabalhador em dificuldades financeiras, e o recebimento apenas das verbas rescisórias dar-lhe-ia um alento, não se pode relevar o procedimento adotado, no sentido de compactuar-se com o fim da dignidade que deve pautar o exercício da advocacia, que, frise-se, é defensor do estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, como bem determina o artigo 2º do Código de Ética e disciplina da OAB. Ora, diante de tantas responsabilidades, não se pode cogitar de que o exercente dessa digna função cometa qualquer deslize, a ponto de comprometer profundamente os baluartes que sustentam a verdadeira democracia devendo arcar, por conseqüência, com as responsabilidades previstas em lei.


6. As Verbas Rescisórias Geralmente Omitidas na Quitação

Não se discute a natureza alimentar do salário. Tratando-se de uma sociedade, tal qual a brasileira, onde existe o desemprego, o subemprego, a exploração da mão-de-obra com o pagamento de baixas remunerações, a intensa carga tributária que afeta a operacionalidade das empresas, essa natureza reveste-se de maior importância, constituindo-se no pilar sobre o qual assenta-se praticamente toda a família do obreiro. Assim, por ocasião da terminação da relação de emprego, deveria ele receber corretamente os seus haveres rescisórios, o que, infelizmente não acontece, quando da ocorrência da lide simulada.

Sobre a natureza alimentar do salário, registre-se o perfeito entendimento de Francisco Rossal de Araújo, que leciona:

"A natureza alimentar do salário é de fácil compreensão. O ser humano deve trabalhar para dar valor econômico às matérias-primas da natureza. Apesar de alguma doutrina econômica dizer que o valor das mercadorias é dado pela utilidade que elas têm para quem vai utilizá-las (paradoxo da água e do diamante), a maioria dos economistas prefere o critério mais objetivo da quantidade de trabalho. O valor-utilidade, por ser extremamente subjetivo, impede a formulação de uma teoria econômica e, por esse motivo, prefere-se o critério do valor-trabalho. Todo o valor de uma mercadoria não decorre exclusivamente do trabalho a ela agregado, pois existem outros elementos, como o custo da matéria-prima, o custo financeiro, etc. É certo, porém, que nenhuma mercadoria deixa de incluir o componente trabalho no seu valor. (...) A parte que retorna ao trabalhador permite a sua sobrevivência e, conforme a circunstância, também pode permitir que faça alguma poupança, no sentido de lhe permitir adquirir outros bens. Nesse sentido, o salário também pode produzir uma redistribuição de riqueza. Seja qual for o caso, o certo é que uma redistribuição de riqueza é sempre parcial, pois, se fosse total, desapareceria a noção de lucro e, sem ela, o sistema capitalista não existiria por falta de um de seus elementos essenciais".

Desta forma, tratou-se de proteger o trabalhador contra a despedida arbitrária, proteção essa configurada na Carta Constitucional de 1988, em seu artigo 7º, I, que diz:

Art. 7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

I – relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentro outros direitos;

Veja-se que tal disposição demonstra a especial importância dada pelo legislador à garantia do emprego, ciente de que sem ele o trabalhador não poderá intentar qualquer melhoria de sua condição social, mormente nos tempos atuais, em que se percebe a imposição de diretrizes externas a comandar a economia nacional, principalmente do Fundo Monetário Internacional (FMI), a pretexto de uma globalização da economia. Não se pode negar essa intromissão, ela é palpável e avança cada vez mais.

Relativamente à terminação da relação de emprego, vital é para o empregado que o recebimento das parcelas ocorra dentro da normalidade prevista legalmente, ou seja, que todos os direitos trabalhistas a que faz jus sejam satisfeitos plenamente, de modo a permitir-lhe um certo conforto

financeiro, durante o período em que deverá lançar-se ao mercado em busca de uma nova colocação, o que não afigura-se uma facilidade, ao contrário, com os índices de desemprego ampliando-se cada vez mais em nosso País, o futuro mostra-se incerto e nebuloso, quanto ao encontro breve de uma nova colocação.

Há que se referir a existência do seguro-desemprego, que contempla o pagamento ao trabalhador alijado da força de trabalho de valores destinados a suprir-lhe temporariamente as necessidades financeiras, mas observe-se que trata-se de uma medida paliativa, que de maneira alguma poderá substituir a efetividade do salário e a perspectiva da reinserção do trabalhador no mercado de trabalho.

Percebe-se que normalmente um dos motivos que levam as empresas a intentar o ajuizamento de lides simuladas é o acúmulo de valores a serem satisfeitos ao trabalhador por ocasião de sua despedida. Evidentemente, os valores deverão ser pagos de uma só vez, aumentando de maneira substancial o desencaixe financeiro por parte da empregadora. Então, numa tentativa de reduzir esse compromisso, ocorre a supressão de determinadas verbas que deveriam ser quitadas no Termo de Rescisão, tais como: férias vencidas e não gozadas, com o respectivo acréscimo do terço previsto constitucionalmente, horas extras trabalhadas e impagas, benefícios previstos em acordos coletivos, vale-transporte não concedido durante a contratualidade, gratificações, ocorrendo o pagamento somente de aviso prévio, férias proporcionais, 13º salário proporcional, saldo de salários, em conjunto com a liberação de guias para a obtenção do seguro-desemprego e para o levantamento dos valores do FGTS depositados na conta vinculada do empregado. Veja-se que a quantidade de verbas que podem ser omitidas no pagamento da rescisão contratual concorrem substancialmente para um verdadeiro enriquecimento ilícito da empregadora, e ao mesmo tempo para uma dilapidação enorme da condição econômica do trabalhador, já fragilizado pela perda do emprego, que evidentemente, é o mal maior na situação por ele vivenciada.


7.

Como Coibir a Utilização das Lides Simuladas

Sabe-se que um dos objetivos da simulação é a obtenção da quitação da inicial e do contrato de trabalho, com o escopo de impedir futuro ajuizamento de reclamatória. Partindo desse pressuposto, e tendo em vista que as partes normalmente comparecem na audiência inaugural com a lide conciliada, deverá o Magistrado tomar certas precauções no momento da homologação do acordo. Além de observar os aspectos formais do ajuste colocado à sua apreciação, deverá, principalmente, verificar o seu conteúdo, conferindo a existência ou não de verdadeira transação.

Uma vez detectada a fraude, o julgador deverá escolher o melhor caminho a fim de obstar o prosseguimento de tal ilícito. Na maioria das vezes a solução encontrada consiste na imediata prolação de decisão, extinguindo o feito sem o julgamento do mérito, por carência de ação, e ainda, pela aplicação subsidiária do artigo 129 do Código de Processo Civil, conforme disposição contida no artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho.

Sobre essa modalidade de solução adotada pelos Magistrados, veja-se o entendimento de José Roberto Freire Pimenta:

"Embora tecnicamente tal conduta seja irrepreensível, tenho sustentado que nos casos em que o empregado na verdade nada teve a ganhar (e muito a perder) com aquela reclamação e simplesmente não teve escolha, tendo que se sujeitar à exigência patronal nesse sentido (sob pena de não receber de imediato suas verbas rescisórias e a documentação necessária para receber os valores relativos ao FGTS e a seguro-desemprego), esta solução simplesmente privará o trabalhador desses meios de subsistência imediata – e isto apenas temporariamente, pois este, com toda a certeza, ajuizará nova reclamação trabalhista, de teor e finalidade idênticos, em cuja audiência tomará redobrado cuidado para nada revelar ao Juízo à qual a mesma for distribuída, para que a homologação da falsa transação seja feita sem maiores problemas".

Outra possibilidade que se vislumbra é a de que o julgador proceda a homologação parcial da conciliação, suprimindo a cláusula de quitação plena do contrato de trabalho, concedendo efeito liberatório somente às verbas constantes do Termo de Rescisão de Contrato de Trabalho, ou aos valores ajustados para pagamento, o que elimina a clara imposição econômica da reclamada sobre o trabalhador. Nesses casos, normalmente a empresa não concordará com a homologação, pois resta evidente que o seu principal objetivo é a obtenção da quitação total do contrato.

Existe ainda a possibilidade de o juiz negar-se a homologar completamente o ajuste, determinando o normal prosseguimento do feito, com a entrega da contestação por parte da reclamada. Diante dessa atitude, normalmente as partes são tomadas de surpresa e, não raro, o reclamante desiste da ação, obviamente com a concordância da parte contrária, uma vez que o verdadeiro objetivo não foi alcançado e, provavelmente, após o arquivamento do feito, o empregado ajuizará reclamação idêntica, nos termos do artigo 269 do Código de Processo Civil, em outra Vara do Trabalho, com a mesma finalidade. Neste ponto, cabe fazer referência à atitude a ser tomada pelo julgador, pois, embora ele não possa negar a homologação da desistência, deverá, obviamente nas Comarcas em que houver mais de uma Vara do Trabalho, expedir ofício às demais, no sentido de informar o ocorrido, inclusive anexando cópia da ata onde reste evidenciada a prática da simulação, para coibir de maneira eficaz a reiteração daquela reclamatória.

O Ministério Público do Trabalho, a seu turno, está amparado por lei para exercer a representação dos interesses da Justiça do Trabalho na pretensão de ver nulo ou anulado ato judicial fundado em ato jurídico contaminado pela simulação. Papel importantíssimo lhe incumbe, como guardião institucional dos direitos sociais garantidos constitucionalmente aos trabalhadores, pois, uma vez cientificado da ocorrência de uma lide simulada, deverá fazer uso de todos os instrumentos administrativos e judiciais cabíveis, tais como: procedimento investigatório, inquérito civil público, termo de ajuste de conduta e ação civil pública de natureza cominatória, para coibir definitivamente a proliferação da reprovável simulação de lides trabalhistas.


8. Considerações Finais

Entendemos que restou oportuna a abordagem do tema, uma vez que o principal objetivo da Jmpregadustiça do Trabalho é o de assegurar ao trabalhador os direitos sociais constitucionalmente garantidos, os quais, infelizmente, em inúmeras oportunidades são desrespeitados frontalmente, com o ajuizamento de reclamatórias fraudulentas, impondo a força do poder econômico sobre a força de trabalho.

Ademais, tentamos focalizar o assunto principalmente em dois aspectos, quais sejam: as conseqüências da lide simulada para o advogado, com a sua responsabilização e aplicação das sanções legalmente previstas e também quanto ao próprio esvaziamento do Direito do Trabalho, porquanto a Justiça do Trabalho, órgão encarregado de aplicar a legislação vigente no âmbito laboral, uma vez vitoriosa a lide simulada, ver-se-á transformada em um órgão simplesmente homologador de rescisões, tarefa para a qual não foi criada.

Outrossim, constatamos que o assunto permanece em discussão junto aos operadores do Direito, mas de maneira não muito freqüente, o que não deveria ocorrer, em razão da sua enorme importância jurídica, social e econômica, pois relacionado diretamente ao binômio capital/trabalho, fenômeno que é inerente à sociedade e crucial para a própria sobrevivência do trabalhador e de sua família. Cabe, neste ponto, salientar a dificuldade que tivemos, por ocasião da pesquisa bibliográfica, em encontrar obras a respeito do tema, configurando essa situação a insuficiente discussão do assunto existente dentre os operadores do Direito, em que pese a sua relevância.

Em muito contribuiria para a diminuição da existência de lides simuladas na Justiça do Trabalho se as partes envolvidas nesse processo, principalmente os advogados, pela sua condição técnica, alertassem os seus constituintes para a situação ilegal da simulação, elevando o seu nível de consciência a fim de sequer materializar-se a fraude. De outra banda, devem as autoridades competentes permanecer em contínua vigilância no sentido de coibir com eficácia a propagação dessa modalidade de fraude, lançando mão dos dispositivos legais colocados à sua disposição, a fim de permitir a correta aplicação do Direito, de forma harmônica e condizente com uma sociedade que pretende ser democrática e respeitadora da ordem social. Entende-se que nem sempre isso é possível, diante da argúcia e determinação daqueles que insistem em perpetrar esse ataque contra um dos princípios fundamentais do Direito, qual seja, o princípio da boa-fé, por isso a insistência de que o tema deve ser constantemente debatido em congressos, simpósios, universidades, assembléias e outros fóruns adequados para tanto, com o escopo de conscientizar o quão profundo é o mal causado por essa modalidade de fraude.


9. Obras Consultadas.

SUSSEKIND, Arnaldo. Instituições de Direito do Trabalho. 19ª ed., Ed. LTr, 2000.

ARAUJO, Francisco Rossal de. A Boa-fé no Término do Contrato de Emprego: o pagamento das verbas rescisórias (resilitórias). Revista de Jurisprudência Trabalhista nº 185, ano 16, p. 91/103, mai/1999.

PIMENTA, José Roberto Freire. Lides Simuladas: A Justiça do Trabalho como Órgão Homologador. Ed. LTr nº 01, ano 64, p. 39/56, jan/2000.

PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. Ed. Livraria do Advogado. Porto Alegre, 1999.

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO

CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO

CÓDIGO PENAL BRASILEIRO



Informações sobre o texto

Extrato do trabalho de conclusão de curso apresentado perante a banca examinadora na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Campus de Gravataí (RS).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Luiz Eduardo Vieira. A lide simulada na Justiça do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 56, 1 abr. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2849. Acesso em: 5 maio 2024.