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A mecanização dos atos judiciais e seus perigos para o acesso à justiça

A mecanização dos atos judiciais e seus perigos para o acesso à justiça

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1. INTRODUÇÃO

A proposta do presente trabalho é motivar o debate dos operadores jurídicos sobre a visível e crescente "padronização" de determinadas peças judiciais, bem como a "mecanização" de certos atos judiciais.

Procuraremos apresentar exemplos desta situação forense, bem como provocar a discussão em torno de como este "fenômeno" atinge (ou pode atingir) a classe jurídica e a população em geral.

Ao final esperamos que o leitor possa ter tido a oportunidade de refletir sobre este tão delicado tema e o presente trabalho possa contribuir para o debate sobre a melhoria da prestação jurisdicional.


2. DA REVOLUÇÃO OPERADA NO OFÍCIO DO OPERADOR JURÍDICO COM O ADVENTO DO COMPUTADOR

É certo que o computador trouxe avanços anteriormente inimagináveis para o trabalho de todos. Esta máquina, tão envolvente e emocionante, não transformou somente as atividades daqueles que necessitam de exatidão técnica milimétrica para o bom desenvolvimento de seu mister (tais como a medicina e a indústria automobilística) mas, de igual forma, revolucionou o ofício do operador do direito.

Quem não se recorda dos depoimentos dos advogados mais experientes, os quais relatam a sua dificuldade em realizar pesquisas jurisprudenciais, uma vez que tais pesquisas tinham que ser realizadas por intermédio de consulta a periódicos oficiais (tais como a Revista dos Tribunais), folha por folha, índice por índice, até que a decisão jurisprudencial almejada pudesse ser encontrada?

Não era difícil encontrar advogados nas bibliotecas públicas ou nas bibliotecas das faculdades vasculhando inteiramente os periódicos jurisprudenciais, visando pesquisar a maior quantidade possível de decisões, para então poder responder às consultas realizadas por seus clientes.

Com o passar dos tempos e com a democratização do acesso aos aparelhos de informática (mais precisamente o computador), o processo de pesquisa doutrinária e jurisprudencial, que antes se mostrava cansativo e extremamente demorado, passou a ser diametralmente simples e com agilidade anteriormente incalculável.

Se antes breve pesquisa jurisprudencial levava horas, quiçá até dias para ser concretizada, atualmente pode ser concluída em espaço de horas, ou quem sabe em questão de minutos. Isto sem contar que a pesquisa pode ser realizada com extrema precisão e perfeição, dada a abrangência de tribunais que o profissional atualmente pode acessar [01].

Poderíamos afirmar extreme de dúvidas que, com a democratização do computador, se democratizou, igualmente, a informação jurídica.

Entretanto, sem querer ser melodramático ou pessimista, se a popularização do computador trouxe avanço significativo e benefício inegável para o bom desenvolvimento do trabalho do operador jurídico, podemos afirmar, com segurança absoluta também, que tal popularização trouxe a reboque inegáveis malefícios e perigos para o bom andamento e julgamento das demandas.


3. DOS MALEFÍCIOS ORIUNDOS DA INFORMATIZAÇÃO DO TRABALHO DO PROFISSIONAL DO DIREITO

Parodiando as leis da física, onde tudo que sobe obrigatoriamente tem de descer, todo benefício alcançado, por variadas vezes, traz consigo algum problema.

O malefício encontrado no uso contínuo do computador não está relacionado com a máquina propriamente dita, mas, sim, com o mau uso deste equipamento por seu operador.

Diz-se mau uso do computador porque, paradoxalmente, da mesma forma que, em questão de minutos, o operador do direito tem a possibilidade de realizar pesquisa doutrinária ou jurisprudencial, por outro lado, tem a mesma possibilidade de encontrar determinado arquivo que se encontrava isolado em algum lugar longínquo da memória do computador e, com um simples "Crtl + C" [02] e outro não menos complicado "Crtl + V", utilizá-lo em outra tarefa.

Com esta singela atitude, uma petição que demoraria horas, dias ou até meses para ser resolvida, em poucos minutos, pode encontrar seu fim.

Só que esta facilidade pode desandar em uma abominável mecanização de procedimentos judiciais e perigosa padronização de defesas e de decisões judiciais.

Mas em que consiste esta mecanização dos casos?

Todos os operadores jurídicos sabem que cada caso levado ao conhecimento do Poder Judiciário envolve uma relação litigiosa entre partes diferentes.

Quando estas duas partes não chegam a acordo, nada mais resta do que bater às portas do Poder Judiciário para que este órgão - o único com força de solucionar litígios definitivamente em países democráticos [03] - decida a sorte daqueles litigantes.

Não é preciso mencionar que todo o cidadão que procura o Poder Judiciário o faz com vistas a defender seus interesses, confiando que o servidor público responsável pela solução do litígio (juiz) o faça com a análise percuciente, imparcial e refletida das provas produzidas por ela, para chegar ao final desejado, dando a cada um o que é seu!

Dessa forma o cidadão, ao confiar à solução do problema a este Poder constituído, jamais admitirá imaginar que seu caso possa ser decidido sem a atenção esperada, bem como que sua decisão possa ter sido utilizada em outros casos semelhantes ao seu.

Da mesma forma, o cidadão não esperará que seu patrono se utilize deste tipo de recurso e reproduza, ipsis literis, peça que já havia confeccionado para outro caso, sem sequer analisar com cuidado e relatar ao magistrado as peculiaridades existentes naquela demanda.

Espera-se então do advogado, promotor ou magistrado que as versões apresentadas pelas partes sejam devidamente confrontadas com as provas até então existentes para que, após isso, possa se decidir sobre quem tem razão no litígio.

Daí se vê que nenhuma pessoa em sã consciência aceitaria que seu advogado, ou mesmo o magistrado que conduz a causa, realizasse seu trabalho com pouca atenção e deixasse de analisar com extremo cuidado e zelo as peculiaridades do caso debatido.

Como se vê, é isso em tese o que o cidadão espera do operador jurídico.

Lamentavelmente em alguns casos, provavelmente pela constância com que são discutidos no seio do Poder Judiciário [04], alguns operadores jurídicos, com vontade de resolver rapidamente aquele litígio, preferem utilizar-se de modelos pré-confeccionados de peças judiciais, no intuito de agilizar a solução daquela demanda, aumentando inclusive sua produtividade.

Entretanto, esta repetição constante de peças pode desaguar em nulidades processuais e acarretar em sérias injustiças.

Passemos então a demonstrar esta padronização e mecanização (e suas conseqüências) de casos, primeiramente com relação ao trabalho do profissional da advocacia.


4. DA PADRONIZAÇÃO DE PETIÇÕES. COMODISMO INACEITÁVEL.

O perigo mencionado no item anterior, apesar de não alcançar somente os advogados, invariavelmente os atinge com a força de um "tsunami", pois vários julgadores não têm admitido que o profissional da advocacia sucumba à tentação de "copiar" e "colar" peças judiciais.

O advogado às vezes, por pura falta de tempo (em outras vezes por insensata preguiça - o que é lamentável), é tentado a repetir uma mesma petição.

Um exemplo desta "tentação" se encontra quando o advogado tem que confeccionar petição de recurso a tribunais superiores

Ao ser instado a recorrer para as instâncias superiores, alguns advogados repetem em seu recurso as mesmíssimas alegações produzidas perante o juízo de 1º grau.

Entretanto este é um luxo que ao advogado não é dado se aproveitar.

Se um conselho poderíamos dar aos causídicos que pensam poder se utilizar deste expediente, o conselho a ser dado seria o seguinte: jovem advogado, não caia nesta tentação!!!

Todos sabem que a perda de prazo para o bom advogado é como a perda de um ente querido.

De igual forma, o não conhecimento de recurso por tribunal, por ausência de requisito formal de regularidade, para o bom profissional da advocacia, é falta grave que não pode ser admitida.

Nunca nos esqueçamos que "[...] nós juristas, nós os advogados, (...). temos uma alta magistratura, tão elevada quanto aos que vestem as togas, presidindo os tribunais; somos os auxiliares naturais e legais da justiça" [05]

Ou seja, o mister do advogado, antes de se prestar a defesa do interesse privatístico das partes, se presta primordialmente ao alcance da justiça!

Dessa forma, tanto a perda de prazo, quanto o não conhecimento de recurso por ausência de pressuposto formal de regularidade, a par de revelarem desleixo profissional (o que já é grave), podem desaguar na criação de situação totalmente injusta para a parte que confiou o mandato ao profissional da advocacia, o que, além de gerar responsabilização civil, macula indelevelmente a carreira do profissional.

Mas por que nos prestamos a tecer comentário sobre as conseqüências da perda de prazo ou do não conhecimento de recurso por tribunal e, igualmente, nos propomos a dar conselho a outros profissionais com relação aos perigos da mecanização de peças profissionais?

Pelo simples fato de que caso o advogado sucumba à tentação de "copiar" e "colar" qualquer tipo de peça jurídica, deve-se alertar que, constantemente, os Tribunais [06] sequer conhecem de recursos assim formulados, haja vista que o recurso desta forma produzido não atende ao princípio da dialeticidade, previsto no artigo 514 [07], do Código de Processo Civil.

Ora, se o advogado ao recorrer se dá ao luxo de simplesmente "copiar" e "colar" a peça apresentada em primeiro grau, sem se dar ao mínimo de trabalho de demonstrar os eventuais vícios existentes na decisão objurgada, nada mais correto do que o colegiado deixar de apreciar as razões recursais.

Nas palavras do Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná – Miguel KFOURI NETO: "o recurso de apelação não se presta a mera repetição, ou mesmo, colagem da contestação." [08]

Concluindo seu raciocínio, amparando-se no pensamento de Theotonio NEGRÃO: "Não é suficiente mera menção a qualquer peça anterior à sentença (petição inicial, contestação ou arrazoados), à guisa de fundamentos com os quais se almeja a reforma do decisório monocrático. À luz do ordenamento jurídico processual, tal atitude traduz-se em comodismo inaceitável, devendo ser afastado." [09]

Daí se vê o grande perigo a que o bom profissional da advocacia está exposto caso sucumba à sedutora opção de "copiar" e "colar" peça jurídica.

Mas não é somente nestes casos que os tribunais têm inadmitido recursos. Mais exemplos são extraídos com freqüência da jurisprudência.

Outra falha processual que os tribunais invariavelmente não perdoam reside no expediente muitas vezes utilizado de apresentar ao Poder Judiciário petições visivelmente confeccionadas de forma padronizada. Não é preciso mencionar que tais recursos são prontamente repelidos [10], com direito inclusive a repreensão do profissional que assim se porta.

Com vistas ainda a corroborar tudo o até aqui aduzido, é de bom alvitre advertir ainda que não são somente as petições repetitivas das razões de 1º grau e as petições chamadas "padronizadas" que merecem não ser conhecidas pelos tribunais. Da mesma forma, alguns profissionais apresentam recursos com alegações genéricas e despidas de qualquer fundamentação, cujo único caminho só pode ser o seu não conhecimento. [11]

A orientação dos tribunais em não conhecer estes tipos de recursos é por demais acertada e merecedora de aplausos, pois somente vêm a produzir a melhora da prestação jurisdicional.

No entanto, para que ocorra a efetiva melhora da prestação jurisdicional convém relembrar que o advogado não está sozinho na condução da máquina judiciária e, se a ele é exigido que não sucumba a este tipo de tentação, não podemos esquecer, igualmente, que todos os demais operadores jurídicos estão proibidos de morder a "maçã do pecado".

Apesar de sabermos da imensa carga de trabalho que envolve os magistrados brasileiros, tendo em vista o munus publico e a confiança que os jurisdicionados lhes depositam, mister se faz que a análise de cada caso se dê de forma cuidadosa e criteriosa, pois, afinal de contas, são vidas que estão sendo discutidas.

É totalmente desaconselhável (e não é isso que se espera desta classe tão importante) a mecanização de decisões judiciais.

Afigura-se totalmente inadmissível que decisões sejam proferidas com fundamentos genéricos e imprecisos, as quais, além de poderem ser utilizadas para uma infinidade de situações, revelem a falta de cuidado e objetividade de análise do conjunto probatório em que estão inseridas.

É claro que estamos falando de casos esporádicos e que não são constantes na magistratura, mas que, acaso não sejam combatidos, de excepcionais podem se transformar em regra e, daí, irremediável defeito na prestação do serviço jurisdicional será colocado à disposição dos cidadãos.


5. DA PADRONIZAÇÃO DE DECISÕES JUDICIAIS. O PERIGO DA MECANIZAÇÃO DE DETERMINADOS ATOS.

Aqui chegamos ao ponto nuclear da discussão que pretendemos trazer aos leitores: se os tribunais são implacáveis e sequer conhecem de recursos interpostos por advogados ou promotores de justiça que se apresentam padronizados ou com repetições de alegações já produzidas em instância inferior, como deverá se portar o operador jurídico (em especial o advogado), quando se deparar com decisão padrão, que apresente somente a aparência de fundamentação?

Como deverá se portar diante de decisão visivelmente mecanizada e que pode ser aplicada para uma infinidade de situações?

Antes de responder a estes questionamentos, é de bom alvitre passar os olhos sob em que circunstâncias isso poderá ocorrer.

Quantos de nós profissionais atuantes do foro já não tivemos a triste experiência de se deparar com decisões judiciais que, apesar de apresentarem aspecto e forma legal, não analisaram com a merecida atenção o caso posto a julgamento?

Isto pode acontecer em pedidos de liminares em medidas cautelares; em pedidos de antecipações de tutelas; em pedidos de produção de provas; em pedidos de efeito suspensivo, formulados em agravos de instrumento; em embargos de declaração; enfim, em uma grande gama de situações corriqueiras do dia-a-dia forense.

Geralmente este tipo de decisão apresenta forma semelhante. Após a apresentação do relatório do caso, ao iniciar-se a fundamentação são encontrados alguns jargões, dentre os quais, ad exemplum, podem ser destacados: "dos documentos juntados aos autos não visualizo a possibilidade de deferimento do pedido formulado". Ou então: "analisadas as razões expostas pelo requerente não visualizo suporte fático para o deferimento do pedido".

Atente-se para o fato de que, em hipotéticos exemplos, tais fundamentos são lacunosos e manifestamente genéricos, pois não indicam quais documentos foram considerados inidôneos pelo magistrado para comprovar as alegações das partes. Geralmente o juiz deixa de fazer remessa às folhas dos autos em que estão inseridos tais documentos para fundamentar seu pensamento. Ao invés de relatar, p. ex., que "o documento juntado à fl. ‘xx’ não corrobora a alegação apresentada pela parte", o magistrado simplesmente se utiliza do expediente de empregar expressão genérica como "da análise dos documentos" para indeferir o pedido formulado.

Por certo tais decisões infelizmente são fruto da denominada "padronização" de atos judiciais, o que é inadmissível em qualquer contexto ou época vivida.

Cabe frisar que o que se espera do Poder Judiciário não é que este julgue casos "a rodo".

Espera-se, sim, que julgue as demandas com percuciência e serenidade para que injustiças não sejam criadas.

Mas e se este tipo de decisão aflorar no seio de uma demanda, o que deverá ocorrer?

Athos Gusmão CARNEIRO, com a autoridade de quem foi magistrado por várias décadas, a par de noticiar a existência deste tipo de desastrosa decisão judicial, indica qual será o caminho legal para a mesma:

"5. Não é tão simples, todavia, expressar exatamente o conceito de decisão não fundamentada, distinguindo-o do de decisão mal fundamentada e de decisão insuficientemente fundamentada, e precisando em que casos o vício existente na sentença (ou no acórdão, ou na decisão interlocutória) resultará na gravíssima sanção de nulidade do provimento judicial.

Em monografia excelente sobre as nulidades das sentenças, TERESA ARRUDA ALVIM PINTO refere existirem a grosso modo, três espécies de vícios intrínsecos das sentenças que se reduzem a um só, em última análise: 1. ausência de fundamentação; 2. deficiência de fundamentação; e 3. ausência de correlação entre fundamentação e decisório.

Poderíamos acrescentar, máxime em tempos de informatização do Judiciário, o caso das sentenças ou decisões "padronizadas", com (aparente) fundamentação tão genérica e imprecisa que se aplica a um grande número de lides semelhantes.

Segundo a profª TERESA, todos os casos implicam, ao final, em ‘... ausência de fundamentação e geram nulidade da sentença. Isto porque ‘fundamentação’ deficiente, em rigor, não é fundamentação, e, por outro lado, ‘fundamentação’ que não tem relação com o decisório, não é fundamentação: pelo menos não o é daquele decisório.’ (‘Nulidades da Sentença’, ed. RT, 3ª ed., 1993, pág. 200)" [12] (grifo nosso)

Como demonstrado no escólio do ministro gaúcho, as decisões "’padronizadas’, com (aparente) fundamentação tão genérica e imprecisa que se aplica [m] a um grande número de lides semelhantes" não podem ser aceitas como decisões válidas e merecem ser excluídas do mundo jurídico.

Ressalte-se que uma decisão dessa forma fundamentada, por óbvio e inevitavelmente, não foi prolatada com a esperada atenção e com a criteriosa análise dos dados postos em debate pelas partes, donde se acredita que ofende o princípio da motivação das decisões judiciais.

No mundo moderno, o princípio da motivação (adequada) das decisões judiciais, dada sua relevância, ganhou considerável destaque sendo que, no direito brasileiro foi elevado, inclusive, ao patamar mais alto da legislação, inserido que foi na Constituição Federal (artigo 93, inciso IX).

Em brilhante estudo realizado sobre nulidades no processo e na sentença, Tereza Arruda Alvim WAMBIER discorre sobre os motivos que conduziram o legislador a prever expressamente a necessidade de motivação das decisões judiciais. Explica a festejada professora:

"Outro enfoque que pode ser concebido, típico da nossa épica, é o que vê na idéia de garantia a fonte básica de inspiração da obrigatoriedade da motivação das decisões judiciais.

Essa idéia tem uma série de desdobramentos que se aplicam nitidamente ao processo, ainda que digam respeito a toda atividade estatal. A motivação:

1. oferece elementos concretos para que se possa aferir a imparcialidade do juiz;

2. poder-se-á, também, por meio do exame da motivação da decisão, verificar da sua legitimidade;

3. por fim, garante às partes a possibilidade de constatar terem sido ouvidas, na medida em que o juiz terá levado em conta, para decidir, o material probatório produzido e as alegações feitas pelas partes." [13]

Como visto, o princípio da motivação adequada das decisões judiciais é de singular importância, uma vez que previne a imparcialidade do juiz; assegura o direito da parte à revisão da decisão judicial; além de garantir a ampla defesa do direito pelo cidadão na oportunidade de produção e análise de provas no processo judicial.

Mas o que seria então uma fundamentação adequada?

José Joaquim CALMON DE PASSOS esclarece qual é a fundamentação adequada e esperada de toda decisão judicial:

"A fundamentação só é atendível como clara e precisa quando ela é explícita e completa quanto ao suporte que o juiz oferece para suas decisões sobre questões de fato e de direito postas para seu julgamento. Se o fato não é controvertido, inexiste questão de fato, dispensada a fundamentação, bastando a referência ao fato certo. Se houver controvérsia, a decisão só é fundamentada quando o juiz aprecia a prova de ambas as partes a respeito e deixa claro as razões porque aceita uma e repele a outra. Já as questões de direito, suas decisões são fundamentadas quando o juiz expõe o embasamento doutrinário, jurisprudencial ou dogmático sério que o leva a decidir como decide, tendo em vista os fatos já admitidos para formação de seu convencimento, nos termos precedentemente expostos" [14]

Outrossim, constatada que a decisão não foi fundamentada como se espera, o seu caminho só pode ser um: a declaração de nulidade!.

E a jurisprudência é farta ao cassar decisões que desrespeitam este princípio tão importante para o processo e para a resolução dos litígios.

"ACAO DE PRESTACAO DE CONTAS - PRIMEIRA FASE - PROCESSUAL CIVIL - SENTENCA QUE NAO APRECIA TODAS AS QUESTOES AVENTADAS PELO REU - AUSENCIA DE FUNDAMENTACAO - NULIDADE DECRETADA - RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 1. Todos os julgamentos dos órgãos do poder judiciário serão fundamentados, devendo o juiz analisar as questões de fato e de direito, sendo nula a sentença que não observar os preceitos do art. 93, IX, da CF e os requisitos essenciais do art. 458, II, do CPC. 2. Nula é a sentença que silencia sobre argumento relevante apresentado por uma das partes. 3. (...)." [15] (grifo nosso)

No mesmo sentido ainda: TJPR, agravo de instrumento n.º 171.394-4, 5ª Câmara Cível, relator Desembargador Lauro Augusto Fabrício de Melo, julgamento em 14.06.2005; TJPR, agravo de instrumento n.º 172.787-3, 8ª Câmara Cível, relator Desembargador Rafael Augusto Cassetari, julgamento em 08.06.2005; e TJPR, recurso em sentido estrito n.º 170.886-3, 1ª Câmara Criminal, relator Desembargador Otto Luiz Sponholz, julgamento em 23.06.2005.

Dessume-se, dos exemplos extraídos de singular jurisprudência, que a decisão não fundamentada não merece existir no mundo jurídico, devendo ser combatida por todos, até para melhora da prestação jurisdicional.


6. ALGUNS EXEMPLOS DE CASSAÇÃO DE DECISÕES PADRONIZADAS FRUTOS DA MECANIZAÇÃO DOS ATOS JUDICIAIS

Terminando esta breve exposição, gostaríamos de ressaltar a existência de corajosa jurisprudência, proferida por magistrados que não se apegaram nem um pouco ao corporativismo e, ao se depararem com decisões anômalas, as quais colocam em risco a própria confiança dos cidadãos no Poder Judiciário Brasileiro, não titubearam em cassar este tipo de decisões.

Apresentemos alguns poucos exemplos de decisões nesse sentido:

"REVISAO DE CONTRATOS BANCARIOS. DEBATE EM TESE. SENTENCA VIRTUAL: DESCONSTITUICAO. Se são juntos aos autos dois contratos - abertura de credito em conta corrente e financiamento direto ao consumidor - deve a sentença referir qual deles e revisto, ou se ambos o são, na medida em que e afirmada uma renegociação que não veio lançada na conta corrente. ademais, trata-se de sentença virtual, padronizada, sem sequer referir questões fáticas de suma relevância para o desate de mérito. Desconstituíram a sentença, prejudicados os recursos interpostos. (05 fls)." [16]

"PROCESSUAL. SENTENCA CITRA PETITA. E DE SER DESCONSTITUIDA A SENTENCA QUE, PROFERIDA DE FORMA PADRONIZADA, NAO EXAMINOU A TOTALIDADE DOS PEDIDOS CONTIDOS NA INICIAL. SENTENCA DESCONSTITUIDA DE OFICIO." [17]

"SENTENÇA PADRONIZADA, INCOMPLETA NO RELATÓRIO E OMISSA NA FUNDAMENTAÇÃO - INFRINGÊNCIA AO ART. 458, I E II, DO CPC – NULIDADE." [18] (grifo nosso)

"APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ACIDENTE. PROCEDÊNCIA. divergentes os laudos do assistente e do perito. impugnação. sentença com características padronizadas. conclusões do laudo, deixando de se fundamentar em exames a que o obreiro teria que ser submetido. período de fraudes na comarca. Prova duvidosa. Ausência de comprovação de que o apelante tivesse descumprido os seus prazos. art. 183, do CPC. Nulidade do processo, a partir da perícia. Provimento do recurso. Decisão unânime." [19]

Eis aí alguns bons exemplos de julgamentos, os quais demonstram invejável firmeza e total desprendimento com eventual espirit de corps e que deve pautar toda a atuação do Poder Judiciário.


7. CONCLUSÕES

Estas eram as informações que almejávamos trazer aos leitores nesta pequena resenha literária no intuito de promover o debate sobre tão espinhoso assunto.

Convém destacar (antes que alguns mais apressados entendam que este articulista é contra o avanço tecnológico) que não somos, nem um pouco, contrários à utilização de trechos de peças anteriormente redigidas, mesmo em discussão de casos diferentes.

Não seríamos hipócritas de afirmar que nunca nos utilizamos deste expediente e que nunca repetiríamos capítulo de petição já confeccionado anteriormente para debate de outra causa.

Já repetimos sim (até porque se o capítulo reputa-se bem confeccionado merece ser repetido), entretanto procuramos utilizá-lo com cuidado e serenidade, para que a comodidade não coloque em risco o bom trabalho e a boa defesa do cliente.

Ora, exigir que o magistrado, que tem alto volume de processos para decidir, não possa repetir parte de sentença que já tenha utilizado em outros casos análogos seria de uma ilogicidade gritante.

Entretanto, o que não podemos admitir é que tal repetição se dê sem critérios e que o magistrado, para suprimir trabalho, repita sentença sem ao menos analisar as provas produzidas nos autos e as peculiaridades de cada caso posto em debate.

Não é porque o magistrado já tem posicionamento fortemente firmado em um tipo de demanda que ele reaproveitará sentença proferida anteriormente e dispensará a análise das argumentações das partes, bem como suas provas produzidas para decidir.

Por isso, acreditamos que a melhor solução para este tipo de dilema seja aquela apresentada pelo TRF da 4ª Região, o qual, com sensibilidade e argúcia, admitiu a utilização deste tipo de mecanismo mas, não sem advertir que o mesmo deve ser utilizado com critérios e com vistas a não ser utilizado com exageros, ao ponto de se produzir peça totalmente destoante da realidade jurídica debatida no caso. [20]

Eis aí mais um desafio a ser enfrentado por todos nós!


8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. V. 40, t. 4, 1913, p. 21 Observações: Trecho do discurso "O Caso do Amazonas". Não há original no Arquivo da FCRB.

CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao Código de Processo Civil. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 20011, páginas 40-41.

CARNEIRO, Athos Gusmão. Sentença Mal Fundamentada e Sentença Não Fundamentada – conceitos – nulidade. Artigo publicado na Revista Jurídica n.° 216, outubro de 1995, pág. 5.

GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil. 2º vol. 14 ed., São Paulo: Saraiva, 2000.

GUIMARÃES, Mário. O Juiz e a função jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense, 1958.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento : a tutela jurisdicional através do processo de conhecimento. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

RIBEIRO, Antônio de Pádua. Das Nulidades. Artigo publicado na Revista Jurídica n.º 201, julho de 1994, página 5.

SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 1º vol. 22 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

THEODORO JR., Humberto. As nulidades no Código de Processo Civil. Artigo publicado na Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil nº 01 - SET-OUT/1999, pág. 136.

WAMBIER, Tereza Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 5 ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, página 323.


NOTAS

01 Afirma-se que a pesquisa é mais perfeita hoje em dia porque anos atrás poucas revistas jurídicas eram admitidas como repertórios oficiais de jurisprudências, sem contar que muitos profissionais, devido ao alto custo deste tipo de publicação, não conseguiam mantê-las em seus escritórios tendo que recorrer as bibliotecas das faculdades ou então as bibliotecas públicas para o acesso à informação. Atualmente, ao contrário, com o advento da internet, quase todos os tribunais do país fornecem acesso ao conteúdo de suas decisões, sem que o profissional e o cidadão tenham que pagar alguma coisa por isso, o que torna a pesquisa mais eficiente e menos custosa.

02 Todo operador de computador sabe que ao utilizar-se dos recursos da tecla "Crtl" associada ao comando da letra "C" simultaneamente teremos a cópia do caractere ou da expressão selecionada, bem como com o uso do recurso da tecla "Ctrl" associada ao comando da letra "V" simultaneamente teremos a colagem do caractere, oração ou texto copiado para o editor de texto que o usuário deseja.

03 Eis o posicionamento do Ministro Antonio de Pádua Ribeiro do Superior Tribunal de Justiça:

"O Estado moderno chamou a si a tarefa de solucionar os conflitos intersubjetivos de interesses, consubstanciadores de litígios ou lides, altamente comprometedores da paz social. Por isso mesmo, proíbe a todos aqueles, sujeitos à sua soberania, fazer justiça pelas próprias mãos, ao tempo em que o direito objetivo define, como crime, tal prática, admitida apenas em raras exceções." (Das Nulidades. Artigo publicado na Revista Jurídica n.º 201, julho de 1994, página 5)

04 Exemplos claros desses casos são as indenizações por danos morais; ações de despejo; ações de responsabilização civil por acidentes, dentre tantos outros.

05 BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. V. 40, t. 4, 1913, p. 21 Observações: Trecho do discurso "O Caso do Amazonas". Não há original no Arquivo da FCRB.

06 "APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE RESCISÃO DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA - RAZÕES RECURSAIS QUE NÃO ATACAM ESPECIFICAMENTE OS FUNDAMENTOS DA SENTENÇA RECORRIDA - MERA REPETIÇÃO DA PEÇA INICIAL - INFRINGÊNCIA DO ARTIGO 514, INCISO II, E ARTIGO 515, AMBOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - AUSÊNCIA DE REQUISITO DE ADMISSIBILIDADE RECURSAL - RECURSO NÃO CONHECIDO.

O conhecimento da apelação pressupõe a impugnação, de ponto por ponto, da sentença combatida, apresentando-se os fundamentos de fato e de direito que demonstrem o equívoco do julgamento (artigo 514, II, CPC), sob pena de não se transferir ao juízo ''ad quem'' o conhecimento da matéria em discussão (artigo 515, do mesmo Codex).

Portanto, a ausência de impugnação específica da matéria, como acontece no caso presente, impede o conhecimento do recurso interposto." (TJPR, apelação cível n.º 158.707-3, 6ª Câmara Cível, relator Desembargador Milani de Moura, publicado no DJ n.º 6839 de 1º.04.2005.) "APELAÇÃO – RAZÕES DE RECURSO DISSOCIADAS DA DECISÃO OBJURGADA – PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE – NÃO CONHECIMENTO – Se o recurso não preenche o requisito da dialeticidade, deixando de enfrentar com argumentos contrários os fundamentos da sentença que deseja ver modificada, dele não se conhece." (TJDF – APC 20000710002850 – DF – 2ª T.Cív. – Rel. Des. Edson Alfredo Smaniotto – DJU 24.03.2004 – p. 25)

Ver também o recurso especial n.º 255169 de São Paulo julgado pela 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator Ministro Franciulli Netto, publicado no DJU de 15.10.2001 – p. 00256.

07 Art. 514. A apelação, interposta por petição dirigida ao juiz, conterá:

(...)

II - os fundamentos de fato e de direito;

08 TJPR, apelação cível n.º 289.581-4, 15ª Câmara Cível, relator Desembargador Miguel Kfouri Neto, julgamento em 28.06.2005.

09 Idem.

10 "PROCESSO CIVIL. APELAÇÃO PADRONIZADA. 1. Apelação padronizada, apresentando razões que não guardam qualquer relação com o mérito da causa. 2. Todo o recurso deve necessariamente conter a exposição do fato e do direito e as razões do pedido de nova decisão. 3. Apelo divorciado da questão deduzida em juízo não merece conhecimento." (TRF 4ª Região, Apelação Cível n.° 9004057269, 1ª Turma, relatora Juíza Ellen Gracie Northfleet, julgado em 27.09.90)

11 "Processo Civil. Apelação. Fundamentação genérica. Não conhecimento do recurso. Não se conhece de recurso de apelação interposto sem exposição dos fundamentos de fato e de direito que embasam a pretensão do recorrente, com alegações genéricas e dissociadas das questões debatidas na sentença. Referência legislativa: Código de Processo Civil, artigos 514, inciso II e 515." (TJPR, Apelação Cível n.° 108.522-5, 1ª Câmara Cível, relator Desembargador Ulysses Lopes, julgamento em 18.12.2001) (grifo nosso)

12 CARNEIRO, Athos Gusmão. Sentença Mal Fundamentada e Sentença Não Fundamentada – conceitos – nulidade. Artigo publicado na Revista Jurídica n.° 216, outubro de 1995, pág. 5.

13 WAMBIER, Tereza Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 5 ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, página 323.

14 CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao Código de Processo Civil. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 20011, páginas 40-41.

15 TJPR, apelação cível n.º 170.257-2, 5ª Câmara Cível, relator Desembargador Lauro Augusto Fabrício de Melo, julgamento em 14.06.2005.

16 TJRS, apelação cível n.º 70000037838, 17ª Câmara Cível, relator: Fernando Braf Henning Júnior, julgado em 22.02.2000.

17 TJRS, apelação cível n.º 197148984, 5ª Câmara Cível, relator: Silvestre Jasson Ayres Torres, julgado em 12.02.1998.

18 TJGO, Ap. C. n.° 23519-0/188, 1ª CC, r. Des. Júlio Resplande de Araújo, publicado no DJ n.° 10.962.

19 TJRJ, Apelação Cível n.° 1999.001.07142, 15ª Câmara Cível, relator Desembargador José Mota Filho, julgamento em 11.09.1999.

20 "PROCESSUAL CIVIL. SENTENÇA TERMINATIVA. RECURSO. PEÇA PADRONIZADA. AUSÊNCIA DE OBJETO. (...) 2. Contra esta decisão, recorreu a parte autora, em arrazoado visivelmente padronizado que, longe de atacar os motivos que ensejaram a extinção sem julgamento de mérito, apenas fez remissões divagantes aos termos da inicial. 3. Como é de cediço conhecimento, tanto os advogados, como os procuradores autárquicos ou até mesmo os juízes são forçados a utilizarem certos mecanismos, como a padronização de formas de expressão para casos análogos, com o fito de ter uma razoável produção os primeiros e atender minimamente a demanda os últimos. 4. Entretanto, tal constatação que, conseqüentemente, induz a uma maior tolerância, não pode ir até o exagero, como o caso dos autos, em que o apelo não tem qualquer relação com o decisum. 5. Apelo não conhecido." (TRF 4ª Região, Apelação Cível n.° 9604438700, 5ª Turma, relatora Desembargadora Marga Inge Bath Tesller, julgado em 29.11.1996) (grifo nosso)


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AGOSTINI, Leonardo Cesar de. A mecanização dos atos judiciais e seus perigos para o acesso à justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1540, 19 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10426. Acesso em: 29 abr. 2024.