Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/10325
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Cooperação como princípio constitucional positivo

Cooperação como princípio constitucional positivo

Publicado em . Elaborado em .

RESUMO

Hodiernamente as constituições têm ampliado seu conteúdo passando a introduzir em seu texto um imenso conteúdo programático. Entre as inovações da Constituição Federal do Brasil encontra-se a expressa proteção ao cooperativismo, que pode ser comprovada em vários de seus artigos, o que nos leva a crer na existência do princípio da cooperação. O princípio da cooperação deve permear o sistema normativo brasileiro, norteando as ações do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário) com o fito de propiciar as condições necessárias ao desenvolvimento do legítimo cooperativismo no Brasil.

Palavras-chave: Princípio da cooperação. Constituição. Cooperativismo.


1.INTRODUÇÃO

Entre as grandes invenções da modernidade encontra-se, sem sombra de dúvidas, a constituição escrita. A constituição escrita não é somente relevante pelo fato de condensar em um único documento as normas que irão reger a sociedade, mas especialmente pelo fato de reunir em seu corpo aquelas normas mais essenciais de organização social, regras essas voltadas para a limitação do poder como forma de afirmação dos direitos fundamentais. E, contemporaneamente, as constituições têm ampliado muito o seu conteúdo, passando a tratar de vários temas, estabelecendo, por exemplo, finalidades para a ação estatal (conteúdo programático das constituições).

A atual Constituição brasileira ao definir dentro do Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, em seu art. 5º, inciso XVIII, que "a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento", certamente erigiu como direito coletivo fundamental o de associação. Escolheu também um tipo especial de associação, a cooperativa, como empresa autônoma, integrante do sistema econômico-social nacional, merecedora de proteção especial expressa no Texto Magno. Isto nos leva a concluir pela existência de um princípio geral, constitucionalmente positivado, de apoio ao cooperativismo, que aqui intitularemos de princípio da cooperação.

O presente trabalho, fruto de pesquisa bibliográfica, tem por escopo trazer à discussão a existência do princípio da cooperação como norma programática inserida na Constituição Federal, orientadora da atuação dos poderes do Estado, com vistas a responder a duas proposições básicas, que serão o seu norte principal: (i) o que nos leva a concluir pela existência da cooperação como um princípio geral inserto na Carta Magna?; e (ii) qual são as funções exercidas pela cooperação como princípio geral integrante do ordenamento jurídico brasileiro? A nossa pretensão não é de encerrar o tema proposto, mas levantar as bases para sua discussão visando a incentivar diretamente o cooperativismo nacional.


2.A FUNÇÃO DOS PRINCÍPIOS NA CIÊNCIA DO DIREITO

Antes de examinarmos o princípio da cooperação propriamente dito, é oportuno fazermos algumas observações sobre a função dos princípios dentro do Direito.

Inicialmente, poder-se-ia dizer que princípio é onde começa algo. É o início, a origem, o começo da causa. Entretanto, não é esse conceito geral de princípio perante o Direito.

Além da idéia de início anteriormente comentada, princípio também encerra a noção de "proposição elementar e fundamental que serve de base a uma ordem de conhecimentos" [01], ou ainda a "proposição lógica fundamental sobre a qual se apóia o raciocínio" [02]. É este o sentido que foi incorporado por várias ciências, incluindo a Jurídica. Em conclusão, Maurício Godinho Delgado escreveu que "para a Ciência do Direito os princípios conceituam-se como proposições fundamentais que informam a compreensão do fenômeno jurídico. São diretrizes centrais que se inferem de um sistema jurídico e que, após inferida, a eles se reportam, informando-o" [03].

Celso Antônio Bandeira de Mello esclarece que princípio "é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade de sistema normativo, no que lhe confere a tônica de sentido harmônico" [04].

Neste diapasão, trazendo para o foco do tema proposto, quando as constituições elegem determinadas normas, muitas das vezes, elas acabam se transformando em verdadeiros princípios por estarem positivamente incorporadas ao sistema. José Afonso da Silva, citando Gomes Canotilho e Vital Moreira, vaticina que "os princípios, que começam por ser a base de normas jurídicas, podem estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-princípios e constituindo preceitos básicos da organização constitucional" [05] (sem negrito no original).

Continuando sua análise sobre os princípios constitucionais positivos, o Prof. José Afonso da Silva divide-os em dois grupos. O primeiro deles, princípios políticos-constitucionais, seria composto por aquelas decisões políticas fundamentais que "se manifestam como princípios constitucionais fundamentais, positivados em normas-princípios que "traduzem as opções políticas fundamentais conformadoras da Constituição", segundo Gomes Canotilho" [06] ou, ainda, "são decisões políticas fundamentais sobre a particular forma de existência política da nação, na concepção de Carl Schmitt" [07]. O segundo grupo – que, por ora, mais nos interessa -, o dos princípios jurídicos-constitucionais, seria formado por princípios constitucionais gerais informadores da ordem jurídica nacional. "Decorrem de certas normas constitucionais e, não raro, constituem desdobramentos (ou princípios derivados) dos fundamentais (...)" [08].

Sobre a função dos princípios na Ciência do Direito, Maurício Godinho Delgado explica que eles atuam em duas fases. Uma que ele denomina de Fase Pré-jurídica ou Política, na qual "os princípios despontam como proposições fundamentais que propiciam uma direção coerente na construção do Direito" [09]. E outra, que ele chama de Fase Jurídica, onde os princípios atuariam com maior relevância, que tem maior importância na compreensão deste ensaio. Então, vejamos.

Godinho divide os princípios segundo a função específica que assumem na Fase Jurídica, reunindo-os em três grupos: a) princípios descritivos (ou informativos); b) princípios normativos subsidiários; e, c) princípios normativos concorrentes. Ressalva, outrossim, que "qualquer princípio geral de Direito, ou os específicos a ramo jurídico especial, cumprem os papéis interpretativos, normativos subsidiários e normativos concorrentes. As funções desempenhadas é que se diferenciam, sem que impliquem a existência de categorias incomunicáveis de princípios gerais do Direito" [10] (sem negrito no original).

No papel de informadores, os princípios "contribuem no processo de compreensão da regra e institutos jurídicos balizando-os à essência do conjunto do sistema de Direito (...), como instrumental de auxílio à interpretação jurídica" [11]. De outra sorte, quando atuam como normas subsidiárias, "cumprem o papel de fontes formais supletivas (...), na medida em que atuam como verdadeiras regras jurídicas em face de casos concretos não regidos por fonte normativa principal da ordem jurídica" [12]. Estas duas são as funções tradicionais dos princípios.

Godinho ressalta ainda que, após a segunda metade do século XX, passou-se a agregar outra função aos princípios, qual seja a "normativa própria". Segundo ele, "tal função maior percebida nos princípios permitiria qualificá-los como "normas-chaves de todo o sistema jurídico" (Paulo Bonavides), "fundamento da ordem jurídica" (Frederico de Castro), "super-fontes" (Flórez-Valdez), verdadeiros "mandamentos de otimização" da ordem jurídica (Robert Alexy)" [13]. E arremata:

"Esta última função atua, de maneira geral, em concurso com a interpretativa da regra analisada. Nesta atuação, ora estende o comando desta, ora o restringe, ora até mesmo esteriliza-o, a partir de uma absorção de seu sentido no âmbito mais abrangente cimentado pelos princípios correlatos. Nesta linha, se uma regra legal realiza o comando genérico contido em certo princípio, mas entra em choque com outro, pode prevalecer, sem dúvida, em face do peso do princípio realizado. Contudo, isso não significa que o princípio preterido não tenha certa influência na compreensão da norma enfocada, atenuando, adequadamente, seus efeitos pensados na origem" [14].

Tomando-se por base o que foi apresentado, chega-se a conclusão de que os princípios são muito mais do que simples regras, na medida em que não apenas tutelam interesses ou vínculos subjetivos, determinando a prestação (ação ou omissão) de um em favor de outro, sob pena de ter de arcar com uma determinada conseqüência (sanção). Os princípios, então, permeiam todo o Sistema Normativo, exercendo várias funções - como as aqui descritas -, e se irradiam por ele espalhando os valores que visam proteger, auxiliando sua expansão e aplicação.


3.O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO

A nova Carta Política, traspassada em todo o seu texto por um forte sentimento social - incentivando o coletivo em detrimento do individual - elegeu como objetivos fundamentais a serem perseguidos pela República Federativa do Brasil a busca por uma sociedade livre, justa e solidária e a redução das desigualdades sociais (art. 3º). E, a partir de então, pela primeira vez em sua história, o cooperativismo ganhou proteção de status constitucional, merecendo destaque em vários artigos da Constituição Cidadã. Partilhamos das idéias de Renato Lopes Becho, que afirmou in litteris:

"Cremos que, para bem entender o significado da atenção recebida pelas cooperativas pelo legislador constituinte originário, é mister situarmos um traço marcante na Constituição Federal de 1988; uma transição da preocupação do individual para o coletivo. Como o cooperativismo é uma manifestação da mesma filosofia que serviu de propulsão para outras transformações, como a instituição do Mandado de Segurança Coletivo, do reconhecimento e proteção dos direitos difusos e coletivos em geral e outros mecanismos dessa linha, deve-se interpreta-lo como instrumento de melhoria das condições sociais, econômicas, culturais e jurídicas de seus associados" [15].

Calha aqui uma rápida discussão sobre o relevante papel sócio-econômico desempenhado por esta empresa dentro da economia capitalista - neoliberal e globalizada.

No momento em que o ser humano descobriu que isoladamente era impossível, mas que unindo seus esforços aos de outros ficava em melhores condições de competir, para resolver os problemas que interessavam a todos, nascia a cooperação. Hodiernamente, o cooperativismo ganhou ares de processo econômico, pois passou a responder por alternativas de geração de renda e enfrentamento do desemprego gerado pela tecnologia e pelas exigências do mercado globalizado.

É indiscutível o fato de que o mundo do trabalho está em mudança e que a precariedade de emprego é uma realidade. O professor José Eduardo Faria caracteriza com propriedade a sociedade moderna, a partir dos anos de 1980, quando a globalização da economia atinge o seu apogeu dentro do capitalismo moderno:

"Competitividade, produtividade e integração, no plano econômico, fragmentação, exclusão e marginalidade, no plano social. De um lado a diferenciação funcional da sociedade em subsistemas auto-organizados e auto-regulados(...). De outro, um crescente desemprego estrutural acompanhado da degradação das condições de vida daqueles que foram expulsos do mercado formal de trabalho, frente aos quais as novas instâncias de poder tem revelado discutível interesse ou escassa capacidade de resposta" [16].

Neste diapasão, onde a marginalização social campeia e em que novas formas de trabalho estão surgindo, as cooperativas podem ser alternativas de sucesso na exploração de atividades relacionadas à produção, ao consumo, à construção civil, à saúde, à educação, à inclusão social e à prestação de serviços autônomos. Nesta perspectiva, vários países estão entendendo que estas iniciativas de pessoas (incluindo o associativismo) devem ser apoiadas.

"O Estado brasileiro interferindo no processo de evolução das cooperativas, disciplinando e incentivando sua atuação e garantindo dignidade e outros valores fundamentais aos trabalhadores, estará, dessa forma, estimulando o verdadeiro cooperativismo, em atendimento ao comando constitucional supramencionado que lhe impõe essa tarefa, bem como se alinhando à comunidade internacional que, das mais variadas formas, tem incentivado o cooperativismo" [17].

Também Vilma Dias Bernardes Gil, tecendo comentários sobre a obra de Diva Benevides Pinho, aponta que o cooperativismo representa, ao mesmo tempo, um movimento, uma doutrina e uma técnica.

Enquanto movimento, o cooperativismo "tem por objeto a promoção de um sistema de produção, repartição e consumo, fundado na dupla qualidade de associado – sócio-empresário" [18]. Sistema de produção, porque propõe uma forma diferente de produzir diferente das outras empresas, na medida que não tem divisão de classes entre donos do capital (de um lado) e proletário (de outro lado), pois na cooperativa os sócios são ao mesmo tempo donos, usuários e sua mão-de-obra. Na cooperativa, ao contrário da empresa capitalista, é o trabalho dos sócios que mantém a estrutura necessária à produção (o capital), que beneficia a todos. Sistema de repartição, pois institui uma forma nova de divisão de sobras (o lucro para o capitalismo), proporcional às operações de cada sócio com a cooperativa – "a cada um conforme seu trabalho" é a justiça econômica para o cooperativismo. Sistema de consumo, na medida em que os sócios são os principais usuários (consumidores) dos serviços e produtos oferecidos por sua cooperativa, assim eles trabalham para atender primeiramente suas próprias necessidades e da comunidade que os cerca, impulsionando o seu desenvolvimento social.

Por seu turno, como doutrina, o cooperativismo "busca a correção das distorções das economias de mercado e de planificação centralizada, bem como a própria reforma moral do homem, através de normas inspiradas nos princípios filosóficos de liberdade, igualdade, democracia, justiça social, solidariedade e outros, consolidados nas normas rochdeleanas" [19]. Contra a economia de mercado sim, vez que baseada na "lei da oferta e procura" busca sempre a maior lucratividade, com a prática do maior preço, enquanto as cooperativas buscam sempre o "preço justo", funcionando, pois, como verdadeiros ‘agentes reguladores de preços’ dentro da economia capitalista. Também contra a planificação centralizada do socialismo, porque a cooperativa é gerida por meio da participação efetiva dos sócios na tomada de decisões, sem o intervencionismo direto do Estado na sua administração, através do princípio cooperativista do "controle democrático".

Por fim, as cooperativas também são representantes de uma técnica, "consistente na autogestão consciente e voluntária dos cooperados, em ambiente democrático, com o objetivo de obter, pelo esforço comum, a promoção econômica, social e humana de todos" [20]. Com isto, a cooperativa seria então uma forma de organização do trabalho e dos trabalhadores, que têm nela um instrumento de aproximação com o mercado, sem qualquer intermediação, com vistas à melhoria da condição socioeconômica sua e de sua comunidade (princípio da "preocupação pela comunidade").

Por esses motivos, justifica-se a preocupação do legislador constituinte em dispensar expressa proteção ao legítimo cooperativismo, visto que ele desempenha importante papel na luta contra os efeitos nefastos da globalização neoliberal no campo social e das relações trabalhistas, oportunizando trabalho, renda aos que se dele se aproximam e, assim, possibilitando a redução das desigualdades sociais.

A Constituição garantiu a autonomia que faltava às entidades cooperativas para melhor desempenharem sua atividade, ao definir como cláusulas pétreas (i) a não interferência estatal e a (ii) prescindibilidade de autorização para seu funcionamento (art. 5º, XVIII). Tal autonomia possibilitou ao cooperativismo brasileiro quebrar com o ciclo histórico de sua ligação com a figura do Estado, que o confundia muitas vezes com o associativismo sindical, coisa bem diversa. Paulo Renato Fernandes da Silva escreveu que:

"Tal norma consagra no ordenamento jurídico os princípios da liberdade e da autonomia das sociedades cooperativas. Liberdade, porque a criação das cooperativas não depende de autorização estatal; e autonomia porque compete ao próprio ente cooperativo se estruturar e se organizar internamente (poder de auto-organização), vedada a intervenção estatal no seu funcionamento. Isso tudo, nos termos da Lei nº 5764/71, no que estiver em harmonia com a Carta Magna, pelo princípio da recepção" [21].

No geral, além do apoio expresso a determinados ramos de atuação das cooperativas (art. 174, § 3º, §4º e art. 187, da Constituição, por exemplo) os dispositivos de maior destaque inseridos no texto constitucional de proteção e incentivo ao cooperativismo no país são:

"Art. 146. Cabe à lei complementar:

...omissis...

III- estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.

...omissis...

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

...omissis...

§2º A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo."

O primeiro deles representa norma de proteção às cooperativas, obrigando ao Estado a dispensar adequado tratamento tributário ao ato cooperativo - do qual não falaremos neste trabalho, haja vista não ser este o seu foco -, o que demonstra que o legislador constituinte pretendeu incentivar financeiramente a atividade cooperativa, como já sinalizava a Lei nº. 5.764/71 (art. 2º, parágrafo único). Paulo Renato Fernandes também comenta que:

"Com efeito, a matéria a ser regulamentada pela Lei complementar deve conter carga normativa que traga consigo vantagens reais e efetivas no tocante à tributação ou mesmo ausência de tributação do ato cooperativo. Ademais, a interpretação sistemática dos artigos 5º - XVIII, 174,§2º, e o próprio 146 –III – "c", não deixa pairar qualquer dúvida quanto ao assunto, porquanto a disciplina tributária espargida pela Constituição está em melódica consonância com a regra segundo a qual a lei apoiará e estimulará o cooperativismo" [22].

O segundo dos dispositivos retro transcritos é o mais contundente de todos, pois revela claramente o apoio do Estado brasileiro ao cooperativismo. A um, porque está inserido no Capítulo dos Princípios Gerais da Atividade Econômica, querendo mostrar que as cooperativas desempenham importante papel dentro da economia do País que, ao mesmo tempo em que defende a propriedade privada (art. 170, II), também visa à redução das desigualdades sociais (art. 170, VII) - onde melhor podemos incluir o papel desempenhado pelo cooperativismo. A dois porque impõe ao Estado o estímulo ao cooperativismo, dentro da atividade reguladora da economia por Ele desempenhada. O já citado Paulo Renato Fernandes escreveu que:

"O regime das cooperativas é diferente do comum das demais sociedades, pois se baseia na reunião de esforços, na solidariedade e no trabalho de todos para o atingimento dos seus fins econômicos e sociais. A cooperativa não objetiva contabilizar lucro, na realidade, apenas distribui para seus associados o produto do trabalho de cada um. Por isso tudo, a prática da cooperação é realizada sem intuito egoístico, almejando resultados econômicos positivos para uma grande parcela de pessoas, sendo que tais resultados são gerados pelo labor dos próprios cooperados, e não pela exploração da força de trabalho de outrem.

...omissis...

Enfim, o constituinte conferiu tratamento desigual aos desiguais, tentando com isso gerar uma situação de, no mínimo igualdade jurídica de tratamento entre os agentes econômicos, a fim de compensar a desigualdade econômica real entre ambos na seara de um mercado cada vez mais competitivo e volátil (...)" [23].

Comungando das palavras de Estenio Campelo, arremata-se:

"Houve com isto uma retração na postura intervencionista, salientando-se o papel das normas jurídicas programáticas contidas na Carta Magna, (...) direcionadas ao legislador ordinário, bem como a todo o Estado com o fito de viabilizar os meios necessários para o desenvolvimento de um cooperativismo mais autônomo, responsável pelo seu próprio sucesso ou fracasso" [24].

É assaz o destaque de tais prescrições constitucionais, pois concluímos ser possível - por tudo que foi dito - extrair-se do Texto Supremo a existência de um verdadeiro princípio da cooperação, cujo conteúdo condensaria os valores e sentimentos defendidos pelo cooperativismo. Tal princípio deve permear todo o ordenamento jurídico brasileiro, orientando a atividade legislativa e balizando a de interpretação e aplicação das leis feita pelos operadores do direito. Conclusão esta que responde a nossa primeira proposição.


4.FUNÇÕES DO PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO

Uma vez tendo concluído pela real existência do princípio da cooperação, resta fazermos comentários sobre as funções que ele pode desempenhar dentro do sistema normativo constitucional brasileiro. Isso porque entendemos não ser aceitável interpretarmos qualquer norma contida no ordenamento jurídico sem nos remetermos à Constituição, já que, segundo Kelsen, é ela "que deve sustentar o fundamento de validade da ordem jurídica como um todo" [25]. Explica-se.

Primeiramente, como norma programática, entendida como aquela que requer dos órgãos estatais uma determinada atuação, na consecução de um objetivo traçado pelo legislador constituinte (como o próprio nome diz, um programa), o princípio da cooperação é norma de eficácia contida (segundo a classificação do Prof. José Afonso da Silva). Isso porque o constituinte "em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a lhes traçar os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legisladores, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado" [26]. Cabe ressaltar que todas as vezes que o legislador concretiza o programa nele previsto, o princípio da cooperação perde sua natureza de norma programática e passa a ter plena eficácia, dentro dos limites contidos na lei editada. É o exemplo da Lei 5.764/71, que foi recepcionada em grande parte pela Constituição de 1988, e o da Lei 8949/94, que incluiu o parágrafo único ao art. 442 da CLT, que visam incentivar o cooperativismo como impõe o § 2º do art. 174 da Constituição Federal.

Entretanto, ainda que sendo norma programática, o princípio da cooperação requer do legislador, (in)diretamente, uma determinada atuação, qual seja a de sempre visar o incentivo ao cooperativismo. Por isso, não se pode pensar em qualquer projeto de lei que tenha por escopo desestimular o cooperativismo, ou submetê-lo ao controle ou autorização estatais, porque a Constituição impõe o seu incentivo e, logicamente, proíbe qualquer legislação a ele contrária, sob pena de patente inconstitucionalidade. Trata-se da eficácia negativa das normas constitucionais programática, pela qual este tipo de norma, "embora não produzam seus plenos efeitos de imediato, são dotados da chamada "eficácia negativa", isto é, revogam as disposições em contrário aos seus comandos e impedem a produção de legislação ulterior em disparidade com o programa por elas estabelecidos" [27].

Então, fica estabelecida a primeira função do princípio da cooperação, que é a de tornar inconstitucional qualquer norma existente no sistema que vise desestimular - seja de que forma for – o cooperativismo.

Segundo, como princípio jurídico constitucional (no dizer de José Afonso da Silva), o princípio da cooperação, assim como qualquer outro, exerce as funções informadora (interpretativa) e normativa.

Como informador do sistema, o princípio da cooperação auxilia na interpretação jurídica. Se interpretar é explicar, explanar ou aclarar o sentido da lei, os princípios teriam o papel de ajudar nesta atividade. Por exemplo, quando o art. 90 da Lei 5.764/71 dispõe que "qualquer que seja o tipo de cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados", pode suscitar no intérprete o sentimento de que tal norma estaria inconstitucionalmente afastando os cooperados da proteção trabalhista, no entanto o princípio da cooperação informa que o constituinte dispensou tratamento especial à atividade cooperativa, isto porque viu nela uma valorosa forma de trabalho, mais vantajosa que o trabalho subordinado (emprego formal).

Atuando como norma subsidiária, fonte formal supletiva (como diz Maurício Godinho Delgado), os princípios entrariam em cena para - num caso concreto, onde não existisse norma principal do ordenamento a regulamentá-lo - exercerem a função de norma. Neste diapasão, por exemplo, caso um Ente da Federação determinasse a isenção de certo ramo de cooperativas quanto ao pagamento de um tributo qualquer, com vistas a "incentivar o cooperativismo" e se, neste caso, a concorrência (capitalista) se insurgisse contra tal escolha com a alegação de que não existiria norma geral determinando tal isenção e que isso contrariaria o princípio da legalidade e da livre-concorrência; na falta de norma principal para resolver o conflito, o princípio da cooperação vem integrar o sistema e possibilitar ao aplicador do direito decidir em favor da isenção às cooperativas. No conteúdo deste princípio, pois, está contida a idéia de adequado tratamento tributário ao ato cooperativo (art. 146, III, c da Constituição) – o que já tivemos a oportunidade de comentar.

Finalmente, exercendo a função "normativa própria"(consoante Godinho Delgado) concorrendo com as demais regras legais, como verdadeira "super-fonte" do direito, o princípio da cooperação é responsável pela extensão, restrição ou até mesmo esterilização do conteúdo de uma determinada regra(norma) analisada. Citemos, a título de exemplo, o emblemático caso do parágrafo único do art. 442 da CLT, que derrogou o já citado art. 90 da Lei 5.764/71, que contém o mesmo conteúdo deste último, motivo pelo qual se mostrou despiciendo. Isso porque "o associado cooperativista não é empregado não porque o parágrafo assim vem a dispor, mas porque, quando cumpridos os ideais cooperativistas, a realidade não se ajustava ao disposto nos arts. 3º e 4º da Carta Trabalhista" [28].

Ao interpretar o indigitado parágrafo do artigo consolidado, muitas pessoas – carregadas de más intenções – entenderam que ele possibilitou a intermediação de mão-de-obra por meio de trabalhadores organizados em (falsas) cooperativas, o que não é verdade. O princípio da cooperação restringiu o alcance desta regra, ao deixar claro aos aplicadores do direito que a Constituição protege somente a legítima atividade cooperativa - qualquer que seja o ramo em que atue - consentânea com os princípios do cooperativismo, especialmente os da "adesão livre e voluntária", da "participação econômica do sócio", do "controle democrático exercido pelos sócios" e da "autonomia e independência", os quais não são encontrados na esmagadora maioria das artificialmente constituídas "cooperativas" de mão-de-obra que surgiram após a entrada em vigor do parágrafo do art. 442 da CLT.

Com isso, terminamos de responder o segundo de nossos questionamentos iniciais, vez que restou claro que o princípio da cooperação funciona, ao mesmo tempo, como norma programática munida de eficácia negativa, e também como Princípio Informador e Normativo, na forma aqui delineada.

Por fim, acredita-se que o princípio da cooperação atue também como um "mandado de otimização" (como denomina Robert Alexy) da ordem jurídica, verdadeiro fator de equidade com o fito de abrandar o sentido objetivo das normas. A "aequitas", entendida como sentimento de justiça avesso a um critério de julgamento ou tratamento rigoroso e estritamente legal das normas, é indispensável para a realização da justiça, não devendo os juristas descurarem da referência maior do direito – Justiça para todos – buscando pautarem sua atuação continuamente sobre a égide daquela (a equidade).

Nesta senda, por exemplo, é do conhecimento de todos que muitas cooperativas, principalmente aquelas voltadas para o beneficiamento mais social do que econômico de seus membros, que muito raramente geram sobras (o lucro para a empresa capitalista), tais como as do Ramo Educacional (quando formadas por pais de alunos) ou do Ramo Especial, não possuem grandes fundos de reserva e nem bens suficientes para arcarem com despesas urgentes e imprevisíveis sem comprometerem o bom andamento de suas atividades, como os ônus de uma possível execução contra si. Tomando como fundamento o princípio da cooperação e o status que a Constituição deu ao cooperativismo, poderia o juiz com equidade, no exemplo dado, inverter a ordem do art. 655 do CPC e fazer com que a penhora recaísse sobre "móveis" ou "veículos", por oportuno, ao invés de imediatamente determinar o seqüestro do dinheiro (art. 655, I do CPC) nas contas da entidade. Muitas das vezes, uma decisão como essa pode evitar que uma legítima cooperativa "feche as portas" e que uma centena de trabalhadores/cooperados perca a oportunidade de se beneficiar com os serviços prestados pela entidade, relegando-os à situação anterior de submissão às mazelas do capitalismo neoliberal.

Com efeito, essa é apenas mais uma forma de utilização do princípio da cooperação no ordenamento jurídico brasileiro, cujos fins são amplamente viáveis e consentâneos com o comando constitucional. Entretanto, sua aplicação exigirá coragem e vontade dos operadores do direito a fim de lutarem contra as desigualdades, injustiças e falta de solidariedade no seio da sociedade brasileira.

É mister ressalvar, no entanto, que a aplicação do princípio da cooperação, a exemplo de todo e qualquer princípio constitucional – quer seja explícito, quer implícito – não é absoluta, pois depende de sua ponderação, em cada caso concreto, com outros princípios também constitucionalmente previstos. O importante é sempre visar o interesse social, pois este é, em última análise, a ratio essendi do Estado Democrático de Direito.


5.CONCLUSÃO

A participação das cooperativas no sistema social e econômico do país é de suma importância, principalmente porque possibilitam a redução das desigualdades regionais e sociais, promovem o bem de todos, sem preconceitos de qualquer ordem e ajudam a construir uma sociedade livre, justa e solidária, valorizando a livre iniciativa e o trabalho humano, que são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil contidos no art. 3º da Carta Política de 1988.

Pelos motivos apresentados justificamos a escolha do legislador constituinte em dispensar especial proteção ao cooperativismo, o que nos fez concluir pela existência do princípio da cooperação como princípio geral contido na Constituição. A nossa preocupação cinge-se ao fato de que o princípio da cooperação deve nortear toda a atividade estatal, quer seja legislativa (como "princípio-norma" programática), quer seja administrativa e judiciária (como princípio informador ou normativo subsidiário ou concorrente). Esperamos ter alcançado o objetivo de fomentar este debate.

É indispensável haver uma conscientização de que somente com as ações estatais voltadas para a consecução do princípio da cooperação, onde se busque o seu real conteúdo, função e ampliar sua utilização no ordenamento jurídico brasileiro, é que se pode proporcionar o desenvolvimento do legítimo cooperativismo - como parece ser a vontade ("mens legis") do constituinte originário - com vistas à redução das desigualdades e a construção de um Brasil mais justo e solidário.


REFERÊNCIAS

BECHO, Renato Lopes. Tributação das cooperativas. 2 ed. São Paulo: Dialética, 1999.

CAMPELO, Estenio. Cooperativas de trabalho: relação de emprego. Brasília: Brasília Jurídica, 2005.

CARELLI, Rodrigo de Lacerda. Cooperativas de mão-de-obra: manual contra a fraude. São Paulo: LTR, 2002.

COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 4 ed. São Paulo: LTr, 2005.

FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999.

GIL, Vilma Dias Bernardes. As novas relações trabalhistas e o trabalho cooperativo. São Paulo: LTR, 2002.

HOUAISS, Antônio, et. alli. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1993.

SILVA, Paulo Renato Fernandes da. Cooperativas de trabalho, terceirização de mão-de-obra e direito do trabalho. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005.


NOTAS:

01 HOUAISS, Antônio, et. alli. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. P. 2299.

02 HOUAISS, Antônio, et. alli. ob. cit.

03 DELGADO, Mauricio Godinho Delgado. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTR, 2005. P. 187.

04 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. P. 230.

05 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1993. P. 85.

06 SILVA, José Afonso da. ob. cit.

07 SILVA, José Afonso da. ob. cit.

08 SILVA, José Afonso da, ob. cit.. P. 86.

09 DELGADO, Mauricio Godinho Delgado. ob. cit.

10 DELGADO, Mauricio Godinho Delgado, ob. cit. P. 188.

11 DELGADO, Mauricio Godinho Delgado. id ibidem.

12 DELGADO, Mauricio Godinho Delgado, ob. cit. P. 189.

13 DELGADO, Mauricio Godinho Delgado. ob. cit. P. 190.

14 DELGADO, Mauricio Godinho Delgado. ob. cit. P. 191.

15 BECHO, Renato Lopes. Tributação das cooperativas. 2 ed. São Paulo: Dialética, 1999. P. 96.

16 FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999. P. 281.

17 GIL, Vilma Dias Bernardes. As novas relações trabalhistas e o trabalho cooperativo. São Paulo: LTR, 2002. P. 241.

18 PINHO apud GIL, Vilma Dias Bernardes. ob. cit. P. 141.

19 PINHO apud GIL, Vilma Dias Bernardes. id. ibidem.

20 PINHO apud GIL, Vilma Dias Bernardes. idem.

21 SILVA, Paulo Renato Fernandes da. Cooperativas de trabalho, terceirização de mão-de-obra e direito do trabalho. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. P. 44.

22 SILVA, Paulo Renato Fernandes da. ob. cit. P. 54.

23 SILVA, Paulo Renato Fernandes da. ob. cit. P. 50.

24 CAMPELO, Estenio. Cooperativas de trabalho: relação de emprego. Brasília: Brasília Jurídica, 2005. P. 26.

25 COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2001. P. 12.

26 PAULO, Vicente. Aulas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Impetus, 2006. P. 63.

27 PAULO, Vicente. ob. cit. P. 64.

28 CARELLI, Rodrigo de Lacerda. Cooperativas de mão-de-obra: manual contra a fraude. São Paulo: LTR, 2002. P. 19.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA FILHO, José Carlos Bastos. Cooperação como princípio constitucional positivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1516, 26 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10325. Acesso em: 4 maio 2024.