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A tendência de abstração do controle difuso de constitucionalidade no direito brasileiro

11/02/2007 às 00:00
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O controle difuso de constitucionalidade se manifesta no caso concreto, afastando a aplicação da lei tida por inconstitucional e gerando efeitos apenas entre as partes do processo.

Não obstante isso, a jurisprudência do STF tem se inclinado no sentido de alargar os efeitos das decisões proferidas no controle difuso para além das partes envolvidas no processo. Tal tendência vem sendo evidenciada por recentes decisões que deram efeitos mais abrangentes aos julgados do STF, o que analisaremos pormenorizadamente mais adiante.


Formas de manifestação:

As formas de manifestação deste tipo de controle junto ao STF se dão por meio do Recurso Extraordinário e de incidentes dentro dos processos de competência do Tribunal, tais como os "Habeas Corpus", Mandados de Segurança, entre outros.

O Recurso Extraordinário está previsto no art. 102, III da CF/88, com a redação dada pela EC 45/2004, sendo cabível nas causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

  1. Contrariar dispositivo desta Constituição;
  2. Declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;
  3. Julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição;
  4. Julgar válida lei local contestada em face de lei federal.

A emenda supra mencionada, além de trazer a possibilidade de interposição do Recurso Extraordinário para o caso de decisão que julgar válida lei local contestada em face de lei federal, ainda trouxe outra inovação, que foi a exigência de demonstração da repercussão geral das questões constitucionais debatidas no processo, de forma a filtrar mais a entrada desse tipo de recurso no STF, o que foi regulamentado pela lei 11.418/2006, trazendo para o código de processo civil esta exigência.

O Recurso Extraordinário será utilizado para aferir a constitucionalidade na via difusa, mas excepcionalmente poderá ser utilizado para o controle abstrato de constitucionalidade, como no caso de julgamento pelo Tribunal de Justiça de representação de inconstitucionalidade de lei estadual ou municipal contestada em face da Constituição Estadual, nesse caso a decisão poderá ser atacada por via de Recurso Extraordinário, mas na via abstrata, tendo em vista que não há uma lide subjetiva a ser discutida, somente a inconstitucionalidade em tese de uma lei.

Mas a questão de maior importância a ser discutida é a abstração das decisões em sede de controle difuso, onde há uma lide subjetiva a ser discutida. A já citada EC 45/2004, conhecida como reforma do Poder Judiciário, trouxe outra importante alteração, introduzindo no nosso ordenamento a súmula vinculante, assim regulamentada:

"Art. 103-A O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

§1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

§2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta da inconstitucionalidade.

§3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso."

Como se percebe na leitura do texto constitucional, a mudança é de grande monta, atribuindo ao STF um poder quase que absoluto para determinar o que deva ser aplicado pelos tribunais e também vinculando a atuação da administração pública. O procedimento foi regulamentado pela lei 11.417/2006, observando, subsidiariamente, o regimento interno do STF.

Se por um lado teremos uma acentuada economia processual, evitando que sejam manejados recursos em ações idênticas às já sumuladas pelo STF, por outro lado teremos uma exacerbada concentração de poderes num único órgão.

Num panorama geral, a súmula vinculante se mostra de uma operabilidade e de uma eficiência louváveis, mas a preocupação acentua-se quando pensamos em sede controle difuso de constitucionalidade. Suponhamos que o STF, em Recurso Extraordinário na modalidade de controle difuso, venha a declarar a inconstitucionalidade de uma lei, e posteriormente seja aprovada uma súmula vinculante impondo esta interpretação aos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública direta e indireta, em todas as suas esferas, o que teremos é uma decisão no controle difuso com efeito "erga omnes", contrariando a própria natureza do instituto.

Outra forma de manifestação do controle difuso junto ao STF é sua declaração incidental no bojo de outro processo, como no caso de um "Habeas Corpus" ou de um Mandado de Segurança em que a causa de pedir seja a inconstitucionalidade, esta deverá ser enfrentada pelo Tribunal antes de decidir o mérito da questão.

Este tipo de decisão deve produzir efeitos apenas entre as partes, por se tratar de controle incidental dentro de um processo subjetivo, mas o que se vem percebendo na jurisprudência da Suprema Corte é uma abstração, bem como uma manipulação dos efeitos da decisão, a exemplo do que acontece no controle abstrato, por expressa previsão legal (art. 27 da lei 9.868/99).


Conseqüências:

A tendência de abstração em sede de controle difuso de constitucionalidade traz algumas conseqüências que muitas vezes não são percebidas quando se faz uma análise meramente perfunctória do tema, senão vejamos.

A primeira conseqüência que vemos é a inevitável usurpação da competência do Senado Federal, prevista no art. 52, X da CF/88, por parte do Supremo Tribunal Federal. Ora, se a Constituição da República de 1988 teve o cuidado de dividir a competência para os atos que culminarão com a declaração de inconstitucionalidade com efeito "erga omnes", estabelecendo que ao STF cabe apreciar a inconstitucionalidade incidentalmente, e ao Senado, por ato discricionário, suspender a execução da norma tida como inconstitucional, queria o constituinte que ao menos dois poderes (legislativo e judiciário) participassem do ato.

Outra conseqüência que se depreende do estudo deste fenômeno é que haverá um desrespeito à legitimação prevista constitucionalmente para o desencadeamento de um processo de controle abstrato de normas. A CF/88 elencou em seu art. 103 os legitimados para a propositura das ações do controle abstrato de constitucionalidade, queria o constituinte que este tipo de ação não fosse deflagrada por qualquer do povo, e admitindo-se a abstração dos efeitos da decisão no controle difuso, teremos um desrespeito a esta regra de legitimação, posto que qualquer pessoa que tenha capacidade processual genérica, poderá ensejar a declaração de inconstitucionalidade de uma lei.


Vantagens e desvantagens:

Numa análise mais detida do instituto, perceberemos que o mesmo apresenta vantagens e desvantagens que deveremos sopesar no momento de decidir qual corrente adotar.

As vantagens que conseguimos perceber se encontram na manifesta economia processual que representa a aplicação desta teoria, ou ainda uma tendência teórica, uma vez que teremos a declaração de inconstitucionalidade de uma lei em sede de controle difuso, mas com efeito "erga omnes", não sendo exigido das pessoas que se encontrem na mesma situação jurídica, que estas ingressem em juízo para que obtenham o mesmo efeito prático já obtido pelo primeiro demandante.

Outra vantagem é que o controle de constitucionalidade em tese estaria acessível aos cidadãos comuns, tendo em vista que não se exigiria legitimação específica para a ação, assegurando de forma mais abrangente a supremacia e a rigidez constitucionais.

Mas como toda moeda tem dois lados, as desvantagens também aparecem, e a primeira que vislumbramos é o desrespeito às competências estabelecidas constitucionalmente, o que abriria um perigoso precedente em que a jurisprudência estaria construindo um pensamento que contraria o texto constitucional, e se isso for admitido, por via de conseqüência, a própria Constituição estaria sendo fragilizada.

Outra desvantagem percebida seria a hipertrofia do poder judiciário diante dos outros poderes da República, tendo em vista que praticamente o STF teria o poder de retirar do ordenamento jurídico uma proposição legislativa que foi transformada em lei, seguindo o devido processo legislativo constitucional, pela apreciação de qualquer processo subjetivo, por inconstitucionalidade na via incidental.

Estes argumentos a favor e contra a aplicação desta tendência são expostos de forma que o leitor adote o posicionamento que melhor lhe aprouver, tendo em vista que se trata de uma questão controvertida e por isso merecedora de maior reflexão jurídica.


Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal aplicando esta nova tendência:

O Supremo Tribunal Federal vem seguindo uma linha teórica que parece abraçar e consolidar a tendência de abstração do controle difuso de constitucionalidade. Comecemos analisando alguns julgados em sede de Recurso Extraordinário, e posteriormente analisaremos a decisão do Supremo no HC 82.959 que com certeza é um divisor de águas no estudo deste fenômeno.

Como uma primeira manifestação, temos o posicionamento de Gilmar Ferreira Mendes no processo administrativo nº 318.715/STF que culminou na edição da emenda nº 12 ao Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), publicada no DJ de 17/12/2003. Vejamos o excerto:

O Recurso Extraordinário "deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesses das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas de Corte Constitucional vêm adotando."

Acentua ainda que a função do Supremo nos recursos extraordinários não é a de resolver conflitos subjetivos, nem o de revisar a decisão das cortes inferiores, mas que o recurso tem o papel de servir de pressuposto para uma atividade jurisdicional que transcende aos interesses subjetivos.

Como podemos notar no texto acima, o eminente jurista não encara o Recurso Extraordinário como uma ferramenta à disposição das partes que litigam em juízo, mas uma ferramenta posta à disposição do próprio STF, para que ele analise a validade em abstrato da norma impugnada.

Esta mesma linha de raciocínio foi defendida pelo ministro no julgamento da medida cautelar no RE 376.852, publicado no DJ de 27/03/2003, onde defende a transformação do Recurso Extraordinário em remédio de controle abstrato de constitucionalidade.

Tal entendimento foi seguido pela ministra Ellen Gracie, no julgamento do AI 375.011, constante do informativo 365 do STF, em que dispensa o prequestionamento para permitir que o Tribunal conheça da matéria constante do RE.

O mesmo pensamento levou o ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento do RE 298.694, publicado no DJ de 23/04/2004, a admitir o julgamento do mesmo com fundamento diverso daquele enfrentado pelo tribunal recorrido, flexibilizando o requisito do prequestionamento e consagrando a tese de que o Recurso Extraordinário transcende ao interesse das partes e se amolda como instrumento para controle abstrato da constitucionalidade.

Agora veremos os fundamentos utilizados no julgamento do HC 82.959, verdadeiro marco divisor de águas no estudo da abstração dos efeitos da decisão em sede de controle difuso de constitucionalidade.

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O HC 82.959 foi impetrado em 2003 pelo próprio detento O. C., condenado a 12 anos e 3 meses de reclusão por atentado violento ao pudor, e pedia a possibilidade de progressão de regime com fundamento na inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei n. 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), questão que já havia sido enfrentada pelo Tribunal anteriormente e cuja posição dominante era pela sua constitucionalidade.

É patente a intenção do Supremo em atribuir efeitos "ultra partes" ao citado julgado, como se extrai do seguinte excerto:

"[...] a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal em questão não gerará conseqüências jurídicas com relação às penas já extintas nesta data, pois esta decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão."

Como se vê, a decisão se preocupa com a repercussão em outros casos similares, abandonando a idéia de que a decisão, por ter se dado no controle difuso, teria eficácia apenas entre as partes, mas já regulamenta o efeito que a mesma terá nos casos afins.

Preocupou-se também com a eficácia da decisão determinando que seja "ex nunc", não retroagindo aos atos praticados com base na lei inconstitucional que não mais se afigurem suscetíveis de revisão, pois a declaração não gerará conseqüências jurídicas com relação às penas já extintas naquela data.

Esta decisão mostrou de forma patente a tendência que está dominando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, qual seja a de abstração do controle difuso de constitucionalidade, seja por meio da objetivação do Recurso Extraordinário, seja pelo alargamento dos efeitos da decisão em sede de controle incidental.


CONCLUSÃO

O controle difuso de constitucionalidade, como fora moldado em 1.803 no direito norte-americano, praticamente só será visto nas decisões proferidas pelas instâncias inferiores, especialmente pelos juizes monocráticos, tendo em vista que o simples afastamento da aplicação da lei tida por inconstitucional ao caso concreto, sem maiores conseqüências, só será visto nesta instância. Quando se passa para o julgamento pelos tribunais, já percebemos a vinculação dos juízes e órgãos fracionários subordinados, inclusive pela dispensa de recurso quando a matéria já tiver sido enfrentada pelo pleno ou órgão especial.

Quando a questão bate à porta do Supremo, aí a situação se manifesta de forma mais acentuada, de forma que o controle difuso assume uma roupagem quase idêntica à do controle concentrado, tendo em vista que a discussão da inconstitucionalidade se desprende da causa que lhe deu origem e passa a ser debatida em tese.

A tendência de abstração dos efeitos da decisão em sede de controle difuso de constitucionalidade é uma realidade que não pode ser refutada, mas devemos analisá-la com especial atenção e verificar até onde poderemos ir sem causar um rompimento da estabilidade jurídica.

Vemos na abstração pura e simples do controle difuso de constitucionalidade um perigo que deve ser discutido a fundo, primeiro porque teremos que analisar os limites deste tipo de atuação, sendo que a declaração de inconstitucionalidade feita como no caso do HC 82.959, não deveria ser estendida automaticamente aos casos análogos, como deixou transparecer o Supremo, quando regulou seus efeitos quanto a terceiros. Se uma declaração de inconstitucionalidade com efeito "erga omnes" era o que queria o Supremo, entendemos perfeitamente possível que fosse oficiado o Senado para que, por ato discricionário, editasse uma resolução suspendendo a execução da lei declarada inconstitucional, ou ainda, no caso de inércia deste, poderia ser oficiado o Procurador-Geral da República, que como responsável por zelar pelo ordem constitucional, poderia ingressar com uma ADIN, caso entendesse conveniente. Portanto vemos com muita reserva esta possibilidade dada ao STF de chamar para si a responsabilidade de declarar a inconstitucionalidade de uma lei e atribuir-lhe efeito "erga omnes", seja através da súmula vinculante, à qual não somos desfavoráveis, seja através da extensão dos efeitos da decisão, pois há recursos mais democráticos para se atingir esta finalidade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, atualizada até a Emenda Constitucional nº 52/2006. Brasília, DF, Diário Oficial da União, 09/03/2006.

COMIN, Fernando da Silva. Os crimes hediondos e a individualização da pena à luz de uma nova proposta de atuação. Disponível na Internet: http://jus.com.br. Acesso em 26 de dezembro de 2006.

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JESUS, Damásio de. O Supremo Tribunal Federal julga inconstitucional o cumprimento da pena em regime integralmente fechado nos crimes hediondos e assemelhados (art. 2.º, § 1.º, da Lei n. 8.072/90). Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 26 de dezembro de 2006.

MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005.

MOTTA FILHO, Sylvio Clemente da; SANTOS, William Douglas Resinente dos. Controle de Constitucionalidade. Rio de Janeiro: Impetus, 2002.

PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Controle de Constitucionalidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.

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Sobre o autor
Jonatas Vieira de Lima

Procurador da Fazenda Nacional, especilista em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Jonatas Vieira. A tendência de abstração do controle difuso de constitucionalidade no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1320, 11 fev. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9485. Acesso em: 28 mar. 2024.

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