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A Constituição na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen

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Introdução

O objetivo do presente texto é apresentar um análise da concepção de Hans Kelsen sobre a Constituição. Apresentando os fundamentos de sua concepção e natureza jurídica da Constituição procurando, assim, estabelecer os elementos próprios e característicos desta teoria, tendo como texto básico a Teoria Pura do Direito.


A pureza metodológica e Constituição

Compreender a teoria da Constituição de Kelsen dentro da Teoria Pura do Direito é, antes de tudo, perceber que esta é conseqüência do objetivo kelseniano de estabelecer os princípios de uma ciência jurídica com objeto e características próprias, diferenciados de outras ciências e elementos externos ao Direito.

Este princípio metodológico fundamental o permite uma auto designação de "pura" teoria do Direito, assim Kelsen propõe-se garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluindo deste tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto se não possa, rigorosamente, determinar como Direito, libertando a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos(1).

Neste diapasão uma teoria da Constituição kelseniana se exprime em construir uma explicação rigorosamente jurídica desta, excluindo da sua conceituação todo e qualquer elemento que seja estranho à Constituição como instituto jurídico. Não que Kelsen negue a fenomenologia social da Constituição, como um fenômeno que também têm a sua manifestação natural, pois esta como todo e qualquer outro fenômeno do direito é um elemento social e como tal não pode ser estabelecida uma simples contraposição de natureza e sociedade, pois constituição como norma que regula uma real ou efetiva convivência entre homens, pode ser pensada como parte da vida em geral e, portanto, como parte da natureza, ou pelo uma parte do seu ser, situa-se no domínio da natureza, pois têm, neste sentido, uma existência inteiramente natural(2).

Kelsen não se furta apontar, mesmo ante a pureza metodológica de sua teoria, que existe uma relação indireta das normas com a comunidade, refletida pela circunstância de que a conduta normatizada serve ao interesse comunitário ou lesa-o, e isto é decisivo para o fato de que esta conduta se torne objeto de uma norma, e, mesmo no caso dos chamados deveres da pessoa contra si mesma estes são deveres sociais, pois a função das normas é prescrever a conduta de uma pessoa em face de outra pessoa(3).

Destarte, a preocupação com a Constituição de sua teoria não é explicar os elementos desta relação indireta com o interesse comunitário, mas delimita-la como instituto jurídico e livre de todo e qualquer elemento estranho ao direito na sua caracterização. Este mote, traz o mote necessário de que tal objetivo somente será possível a partir da obtenção de um elemento ou objeto próprio e específico do Direito e partir deste a construção de raciocínios sobre outros elementos de sua teoria, no caso de nosso estudo a Constituição.

Este raciocínio permite a Kelsen perceber a necessidade de obtenção de um paradigma próprio e específico para norte as reflexões de sua teoria pura, e encontra este paradigma na " norma".

Portanto, uma compreensão da Constituição em Kelsen passa necessariamente pela compreensão da norma, pois como veremos mais ao sul deste texto, esta será identificada como a norma fundamental.


Norma e Constituição

O homem como ser dotado de livre arbítrio pode em tese praticar as mais diversas condutas que estão na ordem do ser, bem como pode deitar os mais diversos mandamentos ou ordens aos homens do seu meio social.

Podemos afirmar que a norma tem o objeto específico de ser dirigida a uma conduta humana que deve ser, considerando a relação indireta do direito com os interesses comunitários.

A partir da diferenciação entre o ser e o dever-ser, Kelsen traça o elemento característico da norma como um ordem dirigida a regular a conduta humana que deve ser observada na preservação dos interesse comunitários.

A norma tem um destinatário e esta é uma expressão para saber, com toda certeza, que a conduta estatuída como devida na norma é uma conduta humana, a conduta de uma pessoa(4).

Se a norma estatui um conduta humana que deve ser, como tal, a norma, é o sentido de um querer de um ato de vontade, e, se a norma constitui uma prescrição, um mandamento, é o sentido de um ato dirigido à conduta de outrem, de um ato, cujo sentido é que um outro (ou outros) deve (ou devem) conduzir-se de determinado modo(5)

Sendo um dever-ser, significa o sentido do ato de fixação da norma é um ato de vontade, dirigido a um ser que é a conduta existente na realidade, a qual corresponde à norma, e isto significa uma conduta igual àquela que aparece na norma como devida, mas não é a ela idêntica(6), pois situam-se em planos diferentes.

A norma, porem, é que atribui significação jurídica à conduta humana regulada, funcionando como esquema de interpretação desta conduta, como lícita ou ilícita, boa ou má, servindo como o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico), como resultado de uma interpretação específica, de uma interpretação normativa(7).

Desta forma, é a norma que atribui a uma conduta humana o caráter jurídico, sem a norma antecedente a conduta é apenas um fenômeno da ordem do ser sem qualquer significação para o Direito. Temos, portanto, um antecedente lógico da norma como porta de entrada para que as condutas humanas possam ser compreendidas pelo direito.

Porém, toda ordem ou mandamento dirigido a conduta de outrem pode ter o sentido subjetivo de uma norma, no sentido de que é uma ordem dirigida à conduta de outrem que deve ser. O "Dever-ser" é o sentido subjetivo de todo ato de vontade de um indivíduo que intencionalmente visa a conduta de outro(8).

Disto decorre a necessidade de Kelsen estabelecer um critério que permita diferenciar um sentido subjetivo do dever-ser, para a norma como ato de vontade qualificado que tenha objetivamente este sentido, pois só assim, este dever-ser poderá ser designado como norma(9)

O sentido subjetivo do dever ser constitui também o sentido objetivo quando a conduta a que o ato intencionalmente se dirige é considerada como obrigatória (devida), não apenas do ponto de vista do indivíduo que põe o ato, mas também do ponto de vista de um terceiro desinteressado, desde que tal indivíduo é havido como tendo o dever ou o direito de se conduzir de conformidade com aquele dever-ser, que vinculando os seus destinatários(10).

O sentido subjetivo do dever ser é unilateral no sentido de bastar um querer dirigido à conduta de outrem, por outro lado o sentido objetivo do dever ser exige bilateralidade no pois a conduta dirigida ao outro sujeito deve ser considerada obrigatória não apenas do ponto de vista de quem impõe o ato, mas também do ponto de vista de um terceiro desinteressado que considera o ato vinculante do destinatário, e no caso da norma jurídica esta vinculação possibilita até mesmo a exigência da conduta definida na norma por meio da coação(11).

Define mesmo como característica comum ás ordens sociais-jurídicas serem ordens coativas, que reagem contra as situações consideradas indesejáveis e socialmente perniciosas, afastando as condutas humanas indesejáveis(12)

Chegando no ponto de distinção entre o dever-ser subjetivo e objetivo da norma, temos uma nova encruzilhada da teoria pura do direito de explicar o porque do sentido objetivo da norma, ou seja, porque a norma é considerada obrigatória sem que para isso se tenha que recorrer a critérios externos ao direito, como a moral ou justiça, para servirem como fundamento vinculativo das condutas.

Fixada a premissa de que a norma é um ato de vontade e um dever ser vinculativo, não necessariamente é, como tal a norma tem de ser estabelecida por um ato de vontade. Não pode existir uma norma sem um ato de vontade que a estabeleça, não pode existir um imperativo sem um mandante, uma ordem sem um ordenador(13)

É necessário existir, portanto, um órgão autorizado a estabelecer o dever ser, vinculativo dos sujeitos, por outro lado, também deverá existir uma norma que justifique esta autorização. Assim:

          "A função normativa da autorização significa : conferir a uma pessoa o poder de estabelecer e aplicar normas.( ...omissis ). Uma norma do Direito autoriza pessoas determinadas a produzirem normas jurídicas ou aplicarem - nas. Nestes casos , diz-se : o Direito confere a pessoas determinadas um poder legal".(...)"Visto que o Direito regula sua própria produção e aplicação, a função normativa da autorização desempenha, particularmente, um importante papel no direito. Apenas pessoas, às quais o ordenamento jurídico confere este poder podem produzir ou aplicar normas de Direito"(14)

Kelsen encontra o elemento próprio do direito que permite o fechamento hermético do fenômeno do direito : a norma. Norma que autoriza a um órgão estabelecer as normas, é também o meio que justifica esta autorização, assim, retira qualquer justificativa extra-jurídica para o fenômeno do direito.

Isto o permite afirmar que "interessa especialmente ter em conta que os actos através dos quais são produzidas as normas jurídicas apenas são tomados em consiste, ração, do ponto de vista do conhecimento jurídico em geral, na medida em que são determinados por outras normas jurídicas"(15).

Compreendendo portanto esta circularidade, outra natureza não poderia ter a Constituição dentro da teoria de Kelsen do que ser uma "norma", tanto no sentido subjetivo como no sentido objetivo. Ato de vontade dirigido aos sujeitos e que os vincula.

Paralelamente, emerge a necessidade de distinguir a Constituição como norma que é das outras normas postas, pois não poderia ela ser qualquer norma e, assim, ele começa a delimitar os elementos que permitem-na ser caracterizada como norma fundamental. Pari passu, há necessidade de encontrar uma justificação téorica para esta norma fundamental que também é posta, ou seja o seu fundamento último, e seguindo o paradigma fundamental estabelecido este fundamento deverá necessariamente ser uma norma, a qual ele atribui o nomen de norma hipotética fundamental, norma esta pressuposta.

Desta forma, apesar do caráter lógico-epistêmico do pensamento kelseniano, na solução para encontrar um fundamento especifico do Direito (a norma), válida a lição Paulo de Tarso Ramos Ribeiro que, fundado na lição de BOBBIO de que o positivismo jurídico pode ser caracterizado como uma ideologia da justiça, pela identificação da justiça das normas com a sua validade, leciona que :

" Nesse pano de fundo ideológico, não é possível desvincular os conceitos de norma e valor, validade e justiça, direito e moral. E isto, porque, de uma forma singular, o inverso também é verdadeiro; isto é, se de um lado a lógica positivista aceita, e até mesmo proclama a desvinculação epistemológica entre direito e moral como uma espécie de ethos próprio, de outro, sem a vinculação final entre eles, no sentido de uma justificação (axiológica) última dos meios(normas) não se chega à obediência civil. Vale dizer, o resultado final só é obtido com a vinculação: as normas devem ser obedecidas enquanto tais, porque justas; a obediência às normas jurídicas é, sob esse ângulo, um dever moral..

Mesmo para um autor como Kelsen, o primus inter pares do positivismo jurídico, não lhe foi possível suprimir de todo de sua Teoria Pura do Direito a discussão acerca do fundamento último da obrigação de obedecer, que nele culmina com a norma fundamental pressuposta de natureza lógico-transcendental. Com ela, é forçoso constatar a prevalência de valores éticos, se não na eleição das pautas normativas, na sua obediência. Ainda que, com isso, não se esteja a afirmar, de modo algum, a renúncia kelseniana ao rigor metodológico positivista na formulação de sua teoria geral, conquanto em sua obra se limite a enunciar a interrupção momentânea do relativismo moral, que conduz ao infinito a reflexividade dos valores que enformam as normas jurídicas, por uma norma, fundamento de validade das demais, aceita por todos porque pressuposta"(16)

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O próprio Kelsen sabe reconhecer os limites pressuposição da norma hipotética fundamental, ressaltando que embora seja possível pensar as ordens jurídicas sem pressupor a norma fundamental, como relações entre indivíduos que comandam e indivíduos eu obedecem ou não obedecem, lembra que isto é, sociológica e não juridicamente, dado que a norma fundamental, como norma pensada ao fundamentar a validade do Direito positivo, é apenas a condição lógico-transcendental desta interpretação normativa, ela não exerce qualquer função ético-política mas tão só uma função teorético-gnoseológica(17).

Temos assim, que apesar de Kelsen encontrar um fundamento lógico para a sua epistemologia do Direito, esta pode assumir um caráter ideológico como apontado por Paulo de Tarso Ramos Ribeiro, quando se não questiona a forma de inserção do fundamento último do sistema de normas que é a norma pressuposta. Mas Kelsen atento, justifica a sua teoria.

Dentro deste diapasão, podemos observar que a Constituição histórica de determinado país tem a natureza jurídica de uma norma é a norma fundamental deste sistema jurídico particular, pois serve de fundamento de validade de todas as demais normas deste.

Mas, o fundamento de validade desta Constituição histórica deverá ser também uma norma, mas uma norma pressuposta, e por não encontrar outro nome mais adequado, cremos, Kelsen a chama também de Constituição à norma hipotética fundamental. Para fazer a diferenciação entre estas normas, cria a noção de compreensão da Constituição em dois sentidos : jurídico-positivo e no sentido jurídico-epistemológico.

Disto posto, temos que para Kelsen o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de outra norma, onde há escalonamento piramidal, pois uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior(18) (Dinâmica Jurídica).

Dizer que a norma hipotética fundamental é pressuposta não significa atribuir a ela qualquer fundamento transcendental, mas apenas que não é uma norma posta no direito por uma autoridade jurídica, mas uma norma que o sentido subjetivo dos fatos geradores de normas postas de conformidade com a Constituição é interpretado como o seu sentido objetivo, ou seja, obrigatório(19), como premissa maior de um silogismo é logicamente indispensável para a fundamentação da validade objetiva das normas, sendo uma norma apenas pensada e como tal não é uma norma cujo conteúdo seja imediatamente evidente(20).

A Constituição é uma norma, Kelsen abdica de qualquer possibilidade de compreender a Constituição como documento originário do pacto social como poderiam pensar os jusnaturalistas ou apenas uma folha de papel como diria Lassale, pois pressuporia a consideração de elementos estranhos ao direito nestas afirmativas. A Constituição histórica é a norma fundamental que atribui validade a um sistema de direito positivo, e a norma hipotética fundamental é o fundamento de validade desta.


Constituição como fundamento de validade do sistema jurídico.

A Constituição, portanto, somente pode ter a natureza de uma norma, logo é um dever ser como ordem, mandamento que se dirige a conduta de uma coletividade, estabelecendo como devem se conduzir as pessoas que estão sob o seu raio de ação.

Kelsen leciona que "a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e mais elevada. Como norma mais elevada ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não poder ser posto em questão. Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental (grundnorm)" (21)

Fechado o circuito do Direito, temos a necessidade de localizar a Constituição dentro deste sistema, e como adiantado, retro, a Constituição será o fundamento de validade de um sistema jurídico, podendo assumir o caráter jurídico-positivo e jurídico-epistemológico.

Cumpre realizar um corte na presente análise, pois uma vez que nosso objeto é a Constituição, cumpre observar que não indagaremos sobre o poder constituinte, ou seja o órgão que institui a norma constitucional, mas que dentro do paradigma kelseniano nada mais seria do que aquele órgão a que a norma atribui a competência para estabelecer as normas.

Cumprindo o seu escopo de fundamento de validade do sistema de direito positivo, a Constituição poderá ser considerada do ponto de vista dinâmico e estático.

Caracterizando-se o princípio dinâmico como o princípio segundo o qual uma norma é válida porque posta ou criada por uma forma determinada por uma norma(22), conclui-se que a Constituição é o foro adequado para estabelecer as regras que regulam o procedimento legislativo, que portanto estabelece a legitimidade de inserção de uma norma no mundo jurídico e atesta a sua validade e, por isso, pertence ela à ordem jurídica cujas normas são criadas de conformidade com esta norma fundamental.

A Constituição como norma fundamental não define o conteúdo somente a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder de uma autoridade legisladora, uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental. (23)

O princípio estático, por outro lado é o princípio segundo o qual, uma vez estabelecido um determinado conteúdo normativo, fixado por meio do processo legislativo fixado na Constituição (princípio dinâmico), podem ser deduzidas novas normas através de uma operação lógica destas normas postas, segundo uma lógica do geral para o particular(24) . Assim, a Constituição segundo o princípio estático delimita os conteúdos normativos dos quais devem ser derivados os conteúdos das normas inferiores.

Destaca-se, que apesar de Kelsen referir-se aos processos legislativos, não exclui a produção de normas mediante o costume, desde que exista uma norma autorizando esta força legislativa, que inclusive pode ser uma norma costumeira, não devemos confundir o conceito de norma em Kelsen com "norma" em sentido de ato legislado por um órgão centralizado(25).

A Constituição reúne em si o princípio estático e o princípio dinâmico quando é uma fundamental que reúne em si o princípio dinâmico, conferindo poder a uma autoridade legisladora e esta mesma autoridade ou uma outra por ela instituída não só estabelecem normas pelas quais delegam noutras autoridades legisladoras mas também normas pelas quais se prescreve um determinada conduta dos sujeitos subordinados às normas e das quais - como o particular do geral - podem ser deduzidas novas normas através de uma operação lógica. (26)


Constituição - validade e vigência

A constituição como fundamento de validade de uma ordem jurídica legitima as normas deste sistema, ou a sua vigência, pois dita que algo deve ou não deve ser, por sua vez encontra o sue fundamento de validade na norma hipotética fundamental pressuposta.

Resta evidente que a validade ou vigência de uma norma no sentido kelseniano diz respeito apenas ao fato de existir uma norma que sustenta a existência de uma norma no ordenamento jurídico positivo, por outro lado, Kelsen não deixa de registrar que as normas como um fenômeno também possuem uma dimensão no ser, ou seja, têm uma realidade manifesta na natureza social dos organizações jurídicas, a isto ele exprime como eficácia de uma norma.

A vigência ou validade da norma pertence à ordem do dever-ser, e não á ordem do ser, por isso deve também distinguir-se a vigência da norma da sua eficácia, isto é, do fato real de ela ser efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta humana conforme a norma se verificar na ordem dos fatos(27).

Embora estabelecendo uma prefeita distinção do ponto de vista teórico entre vigência e eficácia da norma, destaca Kelsen que uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma norma que não é eficaz em uma certa medida, não será considerada como norma válida (vigente), pois um mínimo de eficácia é a condição da sua vigência. Inclusive uma norma jurídica deixará de ser considerada válida quando permanecer duradoiramente ineficaz. A eficácia é, nesta medida, condição da sua vigência(28).

Constituição é a norma fundamental que representa o fundamento de validade de uma ordem jurídica e é a base de uma ordem de coerção eficaz. Assim, somente pode-se entender por Constituição uma norma a qual a conduta real (efetiva) dos indivíduos de um determinado território corresponda, globalmente considerada, ao sentido subjetivo dos atos dirigidos a essa conduta e que este sentido subjetivo é reconhecido como sendo também o seu sentido objetivo, ou seja vinculante e entendida como obrigatório pelos sujeitos, portanto uma Constituição válida também o deve ser eficaz. (29)

Entender uma constituição eficaz não é dizer que toda a conduta dos sujeitos corresponderá ao seu dever-ser, mas as normas postas de conformidade com ela são globalmente e em regra aplicadas e observadas. Dizer que a Constituição é eficaz não significa que ela, sempre e sem exceção é cumprida e aplicada. (30)A Constituição não perde a sua validade pelo fato de uma norma jurídica singular perder a sua eficácia, isto é, pelo fato de ela não ser aplicada em geral, ou em casos isolados, embora ela deva ser observada e aplicada(31).

Pensar doutra forma é dizer que uma determinada ordem positiva possui normas que não são válidas, pois a norma fundamental como regra basilar da sua produção é pressuposta como válida e logo eficaz ou tendo um mínimo de eficácia, pois se estas normas valem elas não podem deixar de ser eficaz, o que não significa 100% da observância do dever-ser fixado. Pensar a Constituição sem eficácia, a ordem jurídica que sobre ela se apoia, como um todo, perde a sua eficácia, e com ela cada uma das suas normas, perdem a sua validade (vigência) (32).

Esta linha tênue entre validade e eficácia normativa é que permite a Kelsen reconhecer o fenômeno da desuetudo, como um costume negativo cuja função essencial consiste em anular a validade de uma norma existente. A falta de eficácia continuada de uma norma válida, ou seja, recorrente e apoiada numa norma superior. Se o costume é em geral um fato gerador de Direito, então também o Direito estatuído (legislado) pode ser derrogado através do costume(33). Como norma a Constituição também pode ser derrogada pelo Costume.

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Sobre o autor
Ibraim José das Mercês Rocha

advogado, procurador do Estado do Pará, mestre em Direito pela UFPA, secretário do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública no Pará, ex-diretor do departamento jurídico do Instituto de Terras do Pará (ITERPA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Ibraim José Mercês. A Constituição na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 43, 1 jul. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88. Acesso em: 29 mar. 2024.

Mais informações

Trabalho elaborado em julho de 1999, como requisito parcial para obtenção dos créditos da disciplina de Direito Constitucional do Mestrado em Direito da UFPA, orientador Professor Dr. Antônio Maués

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