Artigo Destaque dos editores

Natureza jurídica do direito à sepultura em cemitérios particulares

Exibindo página 1 de 2
Leia nesta página:

A doutrina e a jurisprudência, na maior parte das vezes, tratam unicamente do "jus sepulchri" em cemitérios públicos, que não se aplica aos cemitérios particulares.

I) INTRODUÇÃO

A natureza jurídica do jus sepulchri (direito à sepultura), como costuma ocorrer em direito [01], há décadas é objeto de divergências entre os doutrinadores. FERNANDO HENRIQUE MENDES DE ALMEIDA, em estudo pioneiro publicado nos anos 50 [02], enumera nada menos do que vinte e oito teorias a respeito do tema, defendidas por juristas pátrios e estrangeiros, o que, somado à omissão do legislador [03] e ao reduzido número de precedentes jurisprudenciais, contribui para dificultar o estudo do tema:

"Em razão disso, nas legislações municipais, nos estatutos das entidades titulares de cemitérios, nos atos jurídicos celebrados pelos interessados, aparecem os mais variados termos jurídicos (v.g., venda da sepultura, arrendamento, locação, propriedade do sepulcro, etc.), que não refletem a verdadeira natureza do direito formado, servindo apenas para obscurecer ainda mais o tema que, de si, já se apresenta complexo.

Daí a confusão reinante. Fala-se comprei uma sepultura, o arrendamento está vencido, et caetera" [04].

O estudo do jus sepulchri em cemitérios particulares, todavia, ainda apresenta maiores dificuldades, eis que a doutrina e a jurisprudência, na maior parte das vezes, tratam unicamente do direito à sepultura em cemitérios públicos, chegando a conclusões que não se aplicam aos cemitérios privados, noutras não fazem distinção entre uma e outra situação ou, ainda, não apresentam solução satisfatória a respeito da sua qualificação jurídica, o que justifica a elaboração do presente trabalho, que não pretende esgotar o assunto, mas, a exemplo do que afirmou FERNANDO HENRIQUE MENDES DE ALMEIDA [05], contribuir para que não permaneça em aberto "velha dúvida acerca de um instituto de larga prática".


II) SUBMISSÃO DO DIREITO À SEPULTURA AO REGIME JURÍDICO DE DIREITO PRIVADO

Inicialmente, salienta-se que da mesma forma que o estudo da enfiteuse dos terrenos de marinha, bens públicos da União, não se inclui no campo do direito civil [06], a análise da natureza jurídica do direito à sepultura em cemitérios particulares, bens privados, não pertence ao direito administrativo, mas ao direito civil, eis que a prestação de serviço público, por força de permissão administrativa, não afeta a titularidade do domínio [07] do imóvel no qual se encontra a necrópole:

"Por isso, examinando-se os cemitérios do ponto de vista do titular do domínio sobre seu solo, pode-se dizer que os mesmos classificam-se em cemitérios públicos e cemitérios privados. Públicos são todos aqueles que estiverem localizados em imóvel do domínio público, seja ele qual for. Aliter, cemitério privado, é todo aquele situado em imóvel de titularidade privada.

(...)

O fato do cemitério ser um bem que está a serviço público não faz com que todo cemitério seja público" [08] (grifos nossos).

Logo, ainda que existam diversas semelhanças, resultantes do modo e da finalidade do uso dos terrenos, entre o jus sepulchri nos cemitérios públicos e nos cemitérios particulares, o que provavelmente levou JUSTINO ADRIANO FARIAS DA SILVA [09] a reconhecer-lhes, equivocadamente, identidade de natureza jurídica, não são aplicáveis ao tema ora examinado as conclusões da doutrina e da jurisprudência a respeito da natureza jurídica do direito à sepultura em cemitérios municipais (= públicos).


III) CONTEÚDO DO DIREITO À SEPULTURA

O direito à sepultura (jus sepulchri) consiste, basicamente, no direito-de-sepultar [10] e no direito-de-manter-sepultado [11], que é conferido a pessoa física (e seus sucessores) ou jurídica por força de negócio jurídico celebrado com o proprietário de cemitério particular.

Trata-se, conforme decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo no julgamento da Apelação nº 52.591 [12], adotando o entendimento de CLÓVIS BEVILAQUA, de direito de uso [13], com finalidade específica (= inumação das pessoas da família), transmissível "mortis causa".

Diante de tais características, cabe ao operador do direito verificar, nas palavras de JUSTINO ADRIANO FARIAS DA SILVA [14], "que instituto civil poderia abrigar em seu seio o jus sepulchri".

Vale dizer, qual a natureza jurídica do direito à sepultura [15], o que deve ser feito confrontando seus elementos essenciais com as categorias definidas em lei [16], sem atribuir maior relevância à vontade das partes [17] ou ao "nomen juris" utilizado.


IV) NATUREZA JURÍDICA DO JUS SEPULCHRI

JUSTINO ADRIANO FARIAS DA SILVA [18], ao tratar do tema ora examinado, indaga, inicialmente, se o jus sepulchri em cemitérios particulares é direito real ou pessoal, critério útil para a solução do problema, em razão do princípio do numerus clausus dos direitos reais, vigente no direito brasileiro.

Deveras, se, conforme o entendimento dominante, não é possível a constituição de direitos reais que não se encontrem previstos em lei (= Código Civil e legislação extravagante) nem a alteração do conteúdo que a lei lhes atribui, é evidente que, para ser direito real, o jus sepulchri deverá se enquadrar em algum dos tipos de direitos reais regulados legalmente, pois, do contrário, tratar-se-á de direito pessoal.

Do rol dos direitos reais, devem ser excluídos, de início, os direitos reais de garantia (penhor, anticrese e hipoteca) [19], eis que o jus sepulchri não tem por finalidade garantir o adimplemento de dívida [20], vinculando o seu pagamento a determinado bem.

Por idêntica razão, não apresenta o direito à sepultura semelhança com as rendas constituídas sobre imóveis [21], que SILVIO RODRIGUES [22] também inclui entre os direitos reais de garantia, eis que o proprietário do imóvel no qual se encontra localizado o cemitério não perde, completamente, o direito de usar, gozar, fruir e dispor do terreno, o que é revelado pela experiência comum e pela análise dos instrumentos contratuais e estatutos das entidades titulares das necrópoles, diferentemente do que ocorria com o instituto regulado pelos artigos 749 a 754 do Código Civil de 1916, em que o bem imóvel era transferido para o patrimônio do rendeiro ou censuário [23], restando ao beneficiário ou censuísta apenas o direito de exigir o pagamento de renda.

Se o proprietário do imóvel não deixa de ser titular, na sua totalidade, das prerrogativas inerentes ao domínio (jus utendi, fruendi et abutendi), relativamente ao terreno no qual será construído o jazigo, é evidente, ainda, que o jus sepulchri não confere ao seu titular o domínio sobre aquela porção de solo, [24] porquanto a propriedade é o mais pleno dos direitos reais [25].

Não se cogitando de direito de propriedade, nem de direito real de garantia, resta examinar se o direito à sepultura configura alguma das modalidades de direito real de fruição, previstas no Código Civil de 1916 e no de 2002 (servidão, usufruto, uso e habitação, enfiteuse, superfície) ou em lei extravagante (concessão de uso).

O jus sepulchri não configura, a nosso ver, servidão predial, dado que tal espécie de jus in re aliena pressupõe a existência de dois imóveis, o que não ocorre no caso dos jazigos em cemitérios particulares. Do contrário, conforme pondera JUSTINO ADRIANO FARIAS DA SILVA [26], haveria de se reconhecer a propriedade do titular do direito à sepultura sobre a porção do terreno do cemitério, o que já demonstramos não ser correto.

Se, como visto, é da essência do direito à sepultura a sua transmissão por ocasião do falecimento do titular, não se trata, igualmente, de usufruto, uso ou habitação, eis que tais espécies de direitos reais limitados extinguem-se pela morte do usufrutuário, usuário ou habitante (artigo 1410, I c/c 1413 e 1416 do Código Civil), o que tornaria inócua a aquisição do direito [27]. A inviabilidade, a rigor, não decorre da temporariedade do direito em si, como entende JUSTINO ADRIANO FARIAS DA SILVA [28]. Caso fosse admitida no direito pátrio, por exemplo, a instituição de usufrutos sucessivos, em caso de morte do usufrutuário antes de esgotado o prazo de duração, o direito real, apesar de temporário, poderia ser transmitido aos herdeiros do de cujus, inexistindo, em tal hipótese, qualquer incompatibilidade, nesse particular, com o jus sepulchri, até porque a perpetuidade do direito, como se infere da lição de FERNANDO HENRIQUE MENDES DE ALMEIDA [29], ao mencionar a existência de jazigos temporários, não é inerente ao instituto ora examinado.

A enfiteuse, por sua vez, não se apresentava [30], prima facie, incompatível com o jus sepulchri, eis que o titular do domínio útil, como cediço, tem a prerrogativa de usar o bem [31] e o direito positivo expressamente admite a sua transmissão por herança (artigo 681 do CC/16). O caráter perpétuo da enfiteuse, outrossim, também era compatível com o jus sepulchri, apesar de, como salientado acima, não ser tal característica determinante para configurá-lo.

Aliás, considerando que o direito à sepultura não se confunde com as demais modalidades de direitos reais limitados previstos pelo Código Civil de 1916 ou o de 2002 e, como se verá adiante, a concessão de uso criada pelo Decreto-Lei nº 271/67 é transmitida por tempo certo ou indeterminado (direito real resolúvel), residia na enfiteuse a única possibilidade de atribuir-se ao titular do jus sepulchri direito real de caráter perpétuo. Para tanto, contudo, o direito à sepultura haveria de apresentar todos (e não apenas alguns) os elementos essenciais do direito real em questão, sob pena de, não o fazendo, restar afastada a sua caracterização como enfiteuse [32], uma vez que o princípio do numerus clausus impede que se reconheça a existência de "quase-enfiteuse" ou qualquer outra modalidade de direito real sui generis [33], diferente dos estabelecidos por lei. As dificuldades, porém, não são poucas, conforme se demonstrará a seguir.

Para que o jus sepulchri resultasse de enfiteuse, o direito de uso anteriormente cogitado, de início, deveria ter natureza perpétua, pois, do contrário, ainda que se fizessem presentes os demais requisitos legais, não se cogitaria de enfiteuse, mas de locação ou arrendamento [34], conforme dispõe expressamente a parte final do artigo 679 do Código Civil de 1916 [35], que encerrou controvérsia existente antes da sua promulgação [36], originária do direito romano [37].

Logo, não se poderia cogitar de constituição do direito à sepultura por contrato de enfiteuse se o prazo de duração é indeterminado [38], o que é admissível na concessão de uso (DL nº 271/67), na locação e no comodato, como ser verá a seguir, o que é claramente demonstrado por ORLANDO GOMES em parecer a respeito da distinção entre enfiteuse e locação:

"Quando as partes subordinam a eficácia de um contrato de prestações sucessivas a tempo indeterminado, entende-se que não quiseram vincular-se até a expiração de um termo prefixado. Assegurando-se reciprocamente maior liberdade de ação, preservaram a faculdade de, a todo tempo, resolverem o contrato, por iniciativa unilateral. Como não se prenderam por prazo, desligam-se quando apraz a um dos contraentes. A função da cláusula ‘por tempo indeterminado’ sempre foi essa. Jamais significou perpetuidade.

O que pode ser desfeito, a cada momento, não tem duração perpétua, Temporário, portanto, é o contrato destinado a vigorar por tempo indeterminado. O fato de aludir o Cód. Civil, no art. 679, à enfiteuse por tempo limitado, não significa que só se admite como arrendamento a enfiteuse por prazo certo, isto é, sujeita, na sua extinção, a dies certus. Também é temporário o contrato cujo termo é fixado por dies incertus na ou dies incertus quando, como no caso da enfiteuse vitalícia. O que importa, enfim, é a possibilidade da rescisão, tanto mais intensa quanto dependa da vontade unilateral de um dos contraentes.

Ora, a presença da cláusula ‘por tempo indeterminado’ é altamente significativa para a repulsa à hipótese de ter sido constituída uma enfiteuse, porque atenta contra a sua índole e finalidade. Ninguém se investe na condição de foreiro, da qual resultam direitos amplíssimos, quase iguais aos do proprietário, para perdê-la a todo tempo que apraza ao suposto senhorio. Mesmo nos países que admitem tão-somente a enfiteuse temporária, o prazo de vigência do contrato é sempre longo. Do contrário, o aforamento falharia à sua finalidade" [39].

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

O pagamento do foro, ainda, é requisito essencial, cuja inexistência desfigura o instituto, de tal sorte que, em caso de outorga do jus sepulchri a título gratuito, por liberalidade do proprietário do cemitério particular, não haveria que se cogitar de enfiteuse, mas de comodato. Todavia, não basta que haja o pagamento de determinada quantia em dinheiro para que se tratasse de enfiteuse, eis que o Código Civil (artigo 678 do CC/16) estabelecia que o foro ou pensão deveria ser "anual, certo e invariável". Logo, se a periodicidade do pagamento fosse inferior ou superior a um ano, não tivesse valor determinado ou variasse [40] ao longo do tempo, haveria locação (ou outra espécie de contrato, conforme o caso) e não enfiteuse. Em caso de venda ou dação em pagamento do jus sepulchri, o que a rigor somente deveria ser admitido antes da inumação de cadáver no terreno ou após a sua transferência, observadas as posturas municipais, seria devido, ainda, o pagamento de laudêmio, que reforça o caráter oneroso da avença, o qual na falta de estipulação expressa, seria de 2,5% (dois e meio por cento) do valor da alienação (artigo 686 do CC/16).

O direito de resgate (aquisição da propriedade pelo enfiteuta), por ser inerente à enfiteuse, inclusive àquelas constituídas antes do Código Civil de 1916 (artigo 693 c/ redação da Lei nº 5.827/72) igualmente haveria de aplicar-se ao direito à sepultura, admitindo-se, todavia, que as partes alterassem o prazo e o valor da indenização [41].

A constituição do jus sepulchri, como modalidade de enfiteuse, dependeria, ainda, da inscrição do respectivo título no Registro de Imóveis (artigo 676 do CC/16), o qual, a partir de determinado valor [42], deveria se revestir de forma pública (art. 134, II, do CC/16).

Sob a égide do Código Civil de 1916, a doutrina [43], ao escrever sobre o tema, afirmava sem discrepância que o jus sepulchri não configurava modalidade de direito de superfície, sob o argumento de que tal direito real não encontrava previsão no direito positivo brasileiro.

Com a promulgação do Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/2002), todavia, há que se reexaminar tal questão, eis que, além de disciplinar o direito de superfície (artigos 1.369 a 1.377), o diploma legal, como visto, eliminou a enfiteuse do rol dos direitos reais [44], reduzindo, ainda mais, a possibilidade de qualificação do direito à sepultura como direito real.

O direito de superfície, tanto no direito romano [45] como nas legislações estrangeiras que o adotaram [46], representa exceção ao princípio da acessão (artigo 1.248, V, do Código Civil), porquanto permite que a propriedade da construção ou plantação seja destacada da propriedade do solo [47], em caráter transitório ou permanente, tendo sido incorporado pelo Código Civil vigente apenas como forma de constituição de propriedade por tempo determinado (artigo 1.369) [48], circunstância que pode dificultar a utilização do instituto para a constituição do jus sepulchri.

Com efeito, se por um lado seria conveniente atribuir-se ao titular do jus sepulchri, através do direito de superfície, a propriedade do jazigo [49] e as prerrogativas que lhe são inerentes, dentre as quais o direito de uso e a possibilidade de transmissão mortis causa (artigo 1.372 do Código Civil), o caráter resolúvel do direito, constituído inexoravelmente por prazo determinado [50], implicaria na transmissão da propriedade ao proprietário do cemitério particular com o advento do termo final (artigo 1.375 do Código Civil) [51], não restando ao superficiário sequer pretensão ao recebimento de indenização, salvo estipulação em contrário. Tal inconveniente, todavia, pode ser contornado mediante a constituição do direito de superfície por prazo extremamente longo (v.g., 100, 200 anos ou mais), o que não é vedado pelo direito positivo [52], à semelhança do que ocorre com a locação (artigo 3º da Lei de Locações), resultando, do ponto de vista prático, na proteção do jus sepulchri por diversas gerações, como se de direito perpétuo se tratasse.

Visto que o prazo de duração do direito de superfície não é obstáculo à configuração do direito à sepultura, resta verificar se há compatibilidade com os demais caracteres do instituto, ressaltando-se, desde já, que a necessidade de registro imobiliário para constituição do direito (artigo 1.227 do Código Civil) e da forma pública do respectivo instrumento (artigo 1.369 do Código Civil), na medida em que aplicáveis a todos os direitos reais, não influem, igualmente, na resposta a tal indagação.

Inicialmente, salienta-se que a utilização do subsolo para fins de construção de jazigo não exclui a possibilidade de utilização do direito de superfície, eis que o § único do artigo 1.369 do Código Civil vigente, em sua parte final, expressamente a autoriza "se for inerente ao objeto da concessão", o que ocorre, por exemplo, nos cemitérios parques.

A constituição do direito de superfície a título gratuito ou oneroso (artigo 1.370 do Código Civil), por sua vez, é indiferente para fins de caracterização do jus sepulchri, eis que, como cediço, nada obsta que o titular da propriedade permita a inumação de cadáver em parcela do solo de cemitério particular, por mera liberalidade.

É irrelevante, também, a possibilidade de transmissão do direito de superfície por ato inter vivos, salvo se no local já houver sido realizada a inumação de restos mortais, hipótese em que se poderia cogitar de desvirtuamento da finalidade da concessão, modalidade de extinção da superfície (artigo 1.374 do Código Civil), inovação salutar que serve para inviabilizar, inclusive, a aquisição do direito à sepultura com finalidade especulativa [53].

Outrossim, o direito de preferência do proprietário ou do superficiário em caso de alienação do direito de superfície ou do imóvel, previsto no artigo 1.373 do Código Civil, tende a ter pouca ou nenhuma relevância prática, em se tratando do direito à sepultura, eis que, em primeiro lugar, o proprietário não terá, de regra, interesse da aquisição da propriedade resolúvel do superficiário, especialmente em caso de pagamento parcelado do preço por diversos anos, como pode ocorrer. O superficiário, por sua vez, dificilmente terá recursos para adquirir, na integralidade, o bem imóvel no qual se encontra localizado o cemitério particular, devendo ser lembrado, nesse particular, que a divisão do imóvel em lotes para fins de construção de jazigos, ainda que seguida da outorga do direito de superfície, não tem o condão, s.m.j., de afetar sua unidade jurídica, à míngua de desmembramento da matrícula [54].

A respeito do direito de superfície cabe perguntar, por derradeiro, se o inadimplemento do superficiário, em caso de pagamento parcelado do preço [55], implica ou não na rescisão do negócio jurídico, eis que é omisso o texto do Código Civil, indagação de particular relevância no caso do jus sepulchri.

PAULO ROBERTO BENASSE [56], invocando o direito comparado e a redação original do Projeto do Código Civil, defende a impossibilidade da extinção do direito de superfície em tal hipótese, ressalvando para o proprietário a cobrança ou execução das parcelas em atraso, entendimento que parece encontrar apoio na lição de MOREIRA ALVES [57], o qual afirma que no direito romano "o direito de superfície se extinguia nos mesmos casos em que a enfiteuse, exceção feita à decadência [58], porquanto o superficiário não tinha as obrigações que, se não cumpridas pelo enfiteuta, acarretavam a extinção da enfiteuse por decadência".

Tal interpretação, contudo, decorre de leitura apressada da lição do preclaro jurista, que, em outra passagem da obra, ressalta que "não era essencial, para a existência do direito de superfície, o pagamento de uma pensão anual (solarium) ao proprietário", o qual, não obstante, poderia ser "expressamente convencionado pelo proprietário do solo e pelo superficiário", assemelhando a superfície à enfiteuse, razão pela qual, na hipótese de inadimplemento, poder-se-ia cogitar da extinção da superfície pela decadência, em caráter excepcional, conforme admite MELHIM NAMEM CHALHUB:

"O proprietário do terreno pode recuperá-lo antes do termo do contrato na hipótese de descumprimento de obrigações por parte do superficiário, tais como, a falta de pagamento do cânon ou a diversa destinação dada ao terreno" [59].

Ainda na seara dos direitos reais, resta examinar, por derradeiro, a concessão de uso, instituída pelo artigo 7º do Decreto-Lei nº 271/67, ainda em vigor [60], nos seguintes termos:

"Art. 7º. É instituída a concessão de uso de terrenos públicos ou particulares, remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, ou outra utilização de interesse social.

§ 1º A concessão de uso poderá ser contratada, por instrumento público ou particular, ou por simples termo administrativo, e será inscrita e cancelada em livro especial.

§ 2º Desde a inscrição da concessão de uso, o concessionário fruirá plenamente do terreno para os fins estabelecidos no contrato e responderá por todos os encargos civis, administrativos e tributários que venham a incidir sobre o imóvel e suas rendas.

§3º Resolve-se a concessão antes de seu termo, desde que o concessionário dê ao imóvel destinação diversa da estabelecida no contrato ou termo, ou descumpra cláusula resolutória do ajuste, perdendo, nesta caso, as benfeitorias de qualquer natureza.

§ 4º A concessão de uso, salvo disposição contratual em contrário, transfere-se por ato inter vivos, ou por sucessão legítima ou testamentária, como os demais direitos reais sobre coisas alheias, registrando-se a transferência."

JUSTINO ADRIANO FARIAS DA SILVA [61] rejeita a sua aplicação aos cemitérios particulares, sob o argumento de que não serviria "para abrigar as concessões feitas em caráter perpétuo", argumento que, como visto, não pode ser aceito, eis que não há vedação expressa e a prática registra a existência de concessão do jus sepulchri em caráter temporário.

Anteriormente, ao tratar do assunto em face dos cemitérios públicos [62], o autor, após reconhecer que a figura da concessão de uso permanece obscura, igualmente descarta a sua aplicação ao direto à sepultura, aduzindo, em síntese, que na concessão de uso ocorreria a alienação do solo e da respectiva coluna de ar, o que seria incompatível com bens públicos de uso especial. Ora, tal argumento, caso fosse correto, não representaria óbice à utilização da concessão de uso em cemitérios particulares, nos quais inexistente restrição à alienação, o que não foi cogitado pelo monografista. O erro do raciocínio, todavia, resulta da premissa de que a concessão de uso implica na alienação do solo, o que não encontra apoio no texto legal, o qual, ao revés, expressamente qualifica-a como direito real sobre coisa alheia (§ 4º) [63], indício de que não há alienação. Caso fosse correta a interpretação acima referida, a posição jurídica do concessionário seria semelhante àquela do superficiário, que não é titular de jus in re aliena, mas de propriedade resolúvel, por força da suspensão do princípio da acessão.

Logo, não há obstáculo à constituição do jus sepulchri pela concessão de uso regulada pelo DL nº 271/67, eis que o direito real em questão possui as características essenciais para a configuração do direito à sepultura (direito de uso de terreno e possibilidade de transmissão mortis causa), sendo irrelevantes as demais (onerosidade/gratuidade, prazo de duração, etc.) para a qualificação do negócio jurídico.

Não se cogitando de direito real, o jus sepulchri poderá resultar de locação ou comodato, negócios jurídicos através dos quais se outorga o direito de uso de bem, no caso de natureza imóvel, e nos quais se admite a transmissão do direito aos herdeiros em caso de falecimento do titular [64], residindo a distinção entre uma e outra figura na natureza no caráter oneroso ou gratuito da avença.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Eduardo Henrique de Oliveira Yoshikawa

advogado em São Paulo (SP), mestrando em Direito Processual Civil pela USP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YOSHIKAWA, Eduardo Henrique Oliveira. Natureza jurídica do direito à sepultura em cemitérios particulares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1122, 28 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8714. Acesso em: 28 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos