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Pressupostos neokantianos no juízo de tipicidade negativa de Mezger

13/04/2006 às 00:00
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Este artigo tem como fim a demonstração do emprego dos postulados neokantianos, inspiradores do neocriticismo, na formulação da teoria dos elementos negativos do tipo penal por Edmund Mezger.

"Já é tempo de se perder o costume de sobre-estimar a filosofia e, com isso, sobrecarregá-la. Na atual indigência do mundo o que se faz necessário é menos filosofia e mais cuidado em pensar; menos literatura e mais cultivo das letras".

(Martin Heidegger) [01]


Resumo

Este artigo tem como fim a demonstração do emprego dos postulados neokantianos, inspiradores do Neocriticismo, na formulação da teoria dos elementos negativos do tipo penal por Edmund Mezger, bem como defender o acerto desta proposição doutrinária.

A dogmática penal parece, de longa data, estar derivando da Teoria Geral do Direito para intentar construções teóricas próprias, ilhadas e alheias à evolução da Filosofia e, mais grave ainda, divorciadas do suporte axiológico que deve presidir toda elaboração legislativa e judicial.

Perde-se, nesse espaço de ampla liberdade especulativa e diminuto rigor científico, a visão da ontologia do fenômeno criminal que, por essa via, passa a ser apenas espectro da proibição querida pelos destinatários.

Infrutífera a incursão em teorias e idéias de doutrinadores passados e contemporâneos que, comprometidos com primeiras raízes pseudo-científicas, pouco podem ou ousam produzir no âmbito desse estreito diapasão ideológico em que se enclausuraram.

Assistimos, estarrecidos, ao pensamento criminal mundial migrar, com extrema desenvoltura, do causalismo ao finalismo e, deste, para multifárias concepções teóricas incompletas ou simplesmente defectivas, as quais, sobremais, não logram solver as inquietudes trazidas .

A redenção dos penalistas, no entanto, é possível e independe da criação de nova nomenclatura ou da construção de outros níveis analíticos na estrutura do crime. Basta que tornemos a Kant e, com humildes escusas, retomemos o ponto de ruptura entre seus postulados e a Ciência Penal, divórcio infesto que ensejou duradoura refração gnosiológica em torno do complexo objeto de nosso estudo: a manifestação humana denominada "crime".

O neokantismo fez o pensamento jurídico-penal ingressar em nova fase, em especial porque o método deixa de ser puramente formalista, introduzindo-se considerações axiológicas como decorrência da inclusão do Direito entre as ciências do espírito (cuja metodologia se caracterizava por compreender e valorar). Como assevera Manuel Jaén Vallejo (1995, p. 59)

Os representantes dessa corrente entendem que enquanto as ciências naturais captam a realidade empírica de forma objetiva e neutral, as ciências do espírito procedem valorando. Logo, o método de conhecimento destas últimas é um método valorativo.

Para uma demonstração do efetivo acerto na adoção do neokantismo como ponto de partida à reflexão penal, imprescindível invocar os postulados de Edmund Mezger, doutrinador germânico responsável pela concepção mais refinada da teoria dos elementos negativos do tipo penal, ou do tipo total de injusto ou, como alcunhada modernamente, tipicidade conglobante ( [02]). Por esta teoria o crime, em seu conceito analítico, possui dois estratos: 1º) fato típico (contendo a antijuridicidade) e 2º) culpabilidade.

Sabemos que, no Brasil, entre os partidários da teoria causal da ação predominou, sempre, uma concepção tripartida ( [03]) do conceito de crime: fato típico, antijuridicidade e culpabilidade. O finalismo, tal qual originalmente preconizado por Hans Welzel, igualmente reconhecia esses três níveis analíticos, apenas retirando o dolo e a culpa de sua sede primitiva (a culpabilidade) para inseri-los no fato típico como elementos subjetivos da conduta (já que a ação passa a ser entendida como exteriorização de uma vontade final). De se registrar, ainda, moderna pretensão de finalistas pátrios – a nosso pensar sem a reflexão necessária – de extrair a culpabilidade como elemento integrante da estrutura do delito para enxergá-la como mero pressuposto de aplicação da pena ( [04]).

Abstendo-nos de ingressar na discussão do acerto ou desacerto dessas partições conceituais, preferimos, aqui, a análise do conteúdo e função dos dois primeiros elementos componentes da estrutura analítica do delito: tipicidade e antijuridicidade. Há quase um consenso entre os penalistas brasileiros quanto a constituir a tipicidade mera adequação, ao tipo penal, de uma conduta humana consciente, prestando-se, por isso, unicamente como indício da ilicitude. Um fato típico é antijurídico, salvo se porventura presente uma causa de exclusão da antijuridicidade.

Essa concepção está conectada com o ideário positivista do final do século XIX e início do século XX, época em que se entendia correta a observação dos processos causais em geral analogamente a dos eventos da natureza, sendo, assim, coerente a divisão do delito em uma parte objetiva-externa (objeto da antijuridicidade) e outra subjetiva-interna (objeto da culpabilidade), constituindo, como anota SANTIAGO MIR PUIG (2002, p.154), exemplo típico de classificação com base numa descrição meramente formal e externa, atenta somente às "partes" do delito e não à sua essência material. Conseqüentemente, o fato antijurídico é descrito ao modo como as ciências naturais descrevem qualquer evento verificado no mundo da Natureza, isto é, como um processo puramente causal: parte-se de um resultado lesivo e se exige unicamente que tenha sido causado por uma ação humana voluntária (sem se perquirir, neste instante, o elemento volitivo desse movimento corporal).

Apropriada, nesse particular, a insurgência de Michel Villey (2003, p. 207)

Em vez de tender a dizer o justo (que partes cabem a cada um segundo a justiça), a linguagem positivista se limita a relatar fatos: os penalistas tratam dos ‘desvios’ , ou de ‘fenômenos criminais’, imitando a neutralidade dos estudiosos das ciências positivas; corariam se falassem em crimes, o que implicaria um juízo de valor, ou daquelas faltas que mereceriam uma pena.

O perfil objetivo da construção teórica de Beling não foi, em instante algum, por ele negado e, mesmo reconhecendo posteriormente a incompletude de seus postulados, ainda assim os reputava corretos, concebendo como algo "horrible" a mescla do subjetivo da alma do autor com os dados objetivos do delito-tipo, motivo por que manteve o tipo penal, que idealizara, como sendo

um puro conceito funcional. Somente expressa o elemento orientador para uma figura dada de delito. Disto se deduz que não há nenhum delito-tipo ‘em si’. Todos eles são relativos enquanto a seu conteúdo e representam um delito-tipo somente em cada caso para a figura regulada por ele [...] O delito-tipo penal, sendo uma espécie de categoria é sem conteúdo, não determina por si mesmo seus conteúdos. (2002, p. 278)

Claro, portanto, que Beling, ao conceber o moderno conceito de tipo, idealizou este com absoluta independência em relação à antijuridicidade, descabendo elaborar, tão só em presença da tipicidade, qualquer juízo de desvalor jurídico-penal sobre o fato, prestando-se, destarte, o tipo unicamente a indicar uma subsunção, no plano estrito da linguagem, da produção humana concreta ocorrente à hipótese legal descrita em lei. É o neokantismo que, introduzindo a idéia de valor na teoria do crime, motiva Mezger a suplantar uma concepção valorativamente neutra, herdada de Ernst Beling, pela sua figuração como juízo de desvalor antijurídico.

Por esse prisma, um fato seria típico se, e somente se, também antijurídico fosse. A tipicidade, sob a óptica mezgeriana, é continente obrigatória da ilicitude, sem a qual não se aperfeiçoa o juízo de tipicidade. Um fato típico desprovido de antijuridicidade é um nada sem expressão ou efeitos jurídicos: tipicidade é, pois, "ratio essendi" da ilicitude. A antijuridicidade surge, assim, como juízo de desvalor sobre o fato. A tipicidade será achada sempre em relação implicacional com a antijuridicidade. Por outro lado, a presença de causas de justificação importa em exclusão da tipicidade. O tipo passa contar, pois, com duas partes: a) uma positiva, correspondendo aos elementos que delineiam o injusto e b) outra negativa, que impõe a verificação prévia da inocorrência de qualquer causa de justificação.

Como resume Juarez Tavares (2000, p.139)

O delito não é agora definido como a ação típica, antijurídica e culpável, mas como ação tipicamente antijurídica e culpável. O tipo não é mais o elemento identificador da antijuridicidade (ratio cognoscendi), mas seu fundamento (ratio essendi). Isto quer dizer que o injusto possui elementos próprios e, ao contrário dos demais ramos do direito, tem uma forma especial de aparecimento, ou seja, através da realização de uma conduta prevista na lei como crime.

Exemplificando. Hoje ensina-se nas Academias de Direito que um médico habilitado, ao fazer uma incisão cirúrgica, comete uma conduta típica (correspondente à uma lesão na integridade corporal de seu paciente), mas nunca uma ação antijurídica (porque, quando menos, obra no exercício regular de seu direito de exercer a profissão médica). Examinando esse evento sob as luzes da doutrina de Mezger, dir-se-á que esse médico não cometeu sequer fato típico, eis que uma conduta autorizada pelo Direito não pode ingressar no plano axiológico de um tipo penal sancionador. Imperiosa, pois, ao juízo de tipicidade penal, a antecedente disquisição sobre a existência de uma causa de justificação.

Como faz nota Alfonso Arroyo de las Heras (1985, p. 41)

a descrição de uma conduta delitiva por parte do legislador supõe, em todo caso, um juízo de valoração dos fatos descritos considerando-os antijurídicos, a não ser que estejam compreendidos em uma causa de justificação. Em conseqüência, são, precisamente, a tipicidade e a exclusão das causas de justificação as que constituem a antijuridicidade.

Claus Roxin oferece percuciente visão sobre a arquitetura do crime pensada por Beling, dizendo que

O tipo de Beling se caracterizava preferentemente por duas notas: é ‘objetivo’ e ‘livre de valor (não valorativo)’. A objetividade significa a exclusão do tipo de todos os processos subjetivos, intra-anímicos, que são conferidos em sua totalidade à culpabilidade [...] E por ‘caráter não valorativo’ deve entender-se que o tipo não contém nenhuma valoração legal que aluda à antijuridicidade da atuação típica. (1997, p. 279)

Um vez que o monumental e complexo pensamento filosófico de Immanuel Kant (1724-1784) é que agrega as "ciências do espírito" ou "culturais", obrigatoriamente ligada a valores, ao mundo do pensamento jurídico, não se contesta a presença da base filosófica neokantiana na elaboração da tese mezgeriana. É que, em conformidade com os postulados básicos dessa teoria, o tipo penal, como ente jurídico-positivo, ao assimilar os valores subjacentes às normas, e sofrendo a partir destes uma necessária limitação configuradora, explicitam inegavelmente o diálogo possível entre ontologia e axiologia, como pregava Kant na sua Crítica da Faculdade do Juízo (1790), a qual fôra antecedida pela Crítica da Razão Pura (1781) e pela Crítica da Razão Prática (1788).

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A obra de Kant, que lastreou ideologicamente o movimento denominado acertadamente como "Criticismo Transcendental" ( [05]), foi considerada um marco na Filosofia ao colocar tematicamente, isto é, em termos só racionais e conceituais, o problema do conhecer, deixando em segundo plano o problema ontológico (do "ser"). Situou-se, por isso, num ponto de confluência entre três grandes correntes ideológicas do século XVIII: o racionalismo de Leibniz (o conhecimento como produto da faculdade da razão); o empirismo de Hume (o conhecimento deriva também da sensibilidade) e a ciência físico-matemática de Newton.

A análise, autorizada, de Bertrand Russell merece transcrição:

"Kant sustentou que todo conhecimento, de fato, surge da experiência mas, diferente deles [dos empiristas] acrescentou a esta idéia uma importante observação: devemos distinguir entre o que realmente produz o conhecimento e a forma que tal conhecimento adquire. Assim, embora o conhecimento surja da experiência, não deriva exclusivamente dela. Poderíamos expressar isto de maneira diferente, dizendo que a experiência sensorial é necessária, porém não suficiente para o conhecimento." (2002, p. 342)

O criticismo permite chegar à conclusão de que o conhecimento é produto de uma faculdade complexa, o resultado de uma síntese da sensibilidade e do entendimento. Para isto, explica Flamarion Tavares Leite (1996, p.30)

[o criticismo] começa por dizer que todo conhecimento implica uma relação – melhor dito, uma correlação – entre um sujeito e um objeto. Nessa relação, os dados objetivos não são captados por nossa mente tais quais são (a coisa em si), mas configurados pelo modo com que a sensibilidade e o entendimento os apreendem. Assim, a coisa em si, o ‘númeno’, o absoluto, é incognoscível. Só conhecemos o ser das coisas na medida em que se nos aparecem, isto é, enquanto fenômeno.

Daí apresentar Johannes Hessen (2003, p. 88) o fenomenalismo kantiano através de um núcleo com três proposições: i) a coisa-em-si é incognoscível; ii) nosso conhecimento está limitado ao mundo fenomênico; iii) esse mundo surge em minha consciência porque ordenamos e processamos o material sensível segundo as formas a priori da intuição e do entendimento.

O dualismo metodológico – a relação entre ser e dever-ser, entre realidade (juízos de existência , mundo do ser) e valor (juízos de valor, mundo do dever-ser) – não logra modificar o objeto do conhecimento (aspecto objetivo), tão somente acrescentando-se o sujeito (aspecto subjetivo) ao conceito de realidade cognoscível pela ciência jurídica. Buscam-se conceitos que possuam, ao mesmo tempo, um significado científico-natural e científico-cultural, isto é, uma congruência entre o conteúdo conceitual formado de modo generalizador e o formado historicamente, mediante referência a valores.

Como nota Jeanette Antonios Maman "a partir da existência humana (o homem existente) é possível pôr o problema de uma concepção ontológico-existencial do mundo com conseqüências para o Direito". (2003, p. 52).

A filiação ao neokantismo implica numa dúplice ruptura: primeiro das ciências naturais com as ciências culturais; segundo, e como resultado da primeira, divórcio nunca mais reconciliado entre dogmática penal e Criminologia (com inevitável refutação aos postulados basilares da Escola Positiva do Direito Penal). Não se olvida, aqui, naturalmente, do importante papel do pensamento kantiano na dissociação, também, entre Direito e Moral.

No Neokantismo, ou Neocriticismo, ou movimento de retorno a Kant, há negação da metafísica, reduzindo-se a Filosofia à reflexão sobre a ciência, isto é, a teoria do conhecimento. Resta clara, ainda, a distinção entre o aspecto psicológico e o aspecto lógico-objetivo do conhecimento, em virtude da qual a validade de um conhecimento é completamente independente do modo como ele é psicologicamente adquirido ou conservado. Por fim, busca-se, a partir das estruturas da ciência, tanto da natureza quanto do espírito, chegar às estruturas do sujeito que a possibilitariam.

Foi exatamente a distinção entre as ciências da natureza (cujo objeto é alheio a valores e a sentido) e as ciências culturais (nas quais o conhecimento e a definição da realidade requerem bases em referências valorativas), que permitiu superar o formalismo do conceito de tipo e a construção dogmática que dantes Beling propusera. Junto ao aspecto lógico-formal da teoria do delito, os autores neokantianos reconhecem o significado material das diversas categorias do sistema e dos conceitos jurídicos, assim como sua relação com a função da pena e os fins do Estado. O reconhecimento do significado valorativo dos tipos penais e a comprovação da tipicidade de uma conduta permitem realçar sua relação valorativa com o conceito e a comprovação da antijuridicidade. Ao mesmo tempo há lugar para o reconhecimento do significado específico da comprovação da antijuridicidade das condutas delitivas.

À luz dessa teoria, o tipo é a descrição legal de uma conduta que lesiona ou põe em perigo um bem jurídico, especificando, assim, este dos fatos antijurídicos, fundamentando seu caráter antijurídico e expressando sua relevância penal. A concepção do tipo caracteriza-se, em definitivo, por destacar a relação entre sua delimitação e a comprovação de sua concorrência, e a fundamentação da antijuridicidade da conduta criminosa. Todavia, ao mesmo tempo, caracteriza-se, também, por destacar a singularidade que, desde a perspectiva da teoria geral do injusto, possuem as condutas descritas na lei penal.

Assim, a síncope entre o racional e o sensível perfaz-se com justeza no âmbito da teoria dos elementos negativos do tipo penal, qualquer que seja a teoria da ação que se comungue (causal, final, social etc). O que importa é a fixação de que o tipo penal – como elemento que define o conceito geral do delito e translada à teoria geral deste as exigências do princípio da legalidade – representa a concretização e especificação dos valores vinculados aos conceitos de antijuridicidade e culpabilidade, sobre os quais se apóia a teoria geral do delito.

Aqui cabível o magistério de Simone Goyard-Fabre (2002, p. 367)

O equívoco dos positivismos é pensar o direito de acordo com o modelo das ciências da natureza, analíticas e redutoras. O esquema causalista revela sua falta de pertinência quando se tenta aplicá-lo ao campo da ação, em que a qualificação e a apreciação jurídica escapam à determinação. As regras de direito não podem ser neutras. Como a razão prática não difere da razão teórica, elas veiculam em suas prescrições a idéia de um fim que só o homem, diferentemente dos animais, é capaz de propor a si mesmo. As regras que normatizam a ação são a figura jurídica de um princípio regulador que, expressamente teleológico, indica um horizonte de sentido e de valor.

Lecionava, igualmente, Franco Montoro que existem três problemas básicos a serem desafiados pela Filosofia do Direito (1981, p. 46): 1º) o problema ontológico, ou qual a realidade fundamental do ‘ser’ do Direito? ; 2º) o problema axiológico ou deontológico, ou qual "deve ser" a orientação do Direito? 3º) o problema epistemológico, ou quais os processos de conhecimento e a natureza da ciência do Direito?"

A esses problemas, emenda o mesmo jusfilósofo, com naturais diferenças de terminologia, correspondem as grandes divisões da Filosofia do Direito, propostas por Bobbio: a) Teoria do Direito; b) Teoria da Justiça e c) Teoria da Ciência Jurídica. Kant escreveu as três "Críticas", buscando os pressupostos da "razão", da "vontade" e do "sentimento", assim objetivando, na lição de Miguel Reale (1957, p. 54), responder às seguintes indagações: i) que é que posso conhecer? Como é dado ao homem certificar-se da verdade das Ciências e dos poderes e limites do entendimento e da razão? (Crítica da Razão Pura); ii) que devo eu fazer? Como devo comportar-me como homem? (Crítica da Razão Prática) e iii) qual a finalidade da natureza? qual o destino das coisas e qual o destino do homem? Qual o sentido último do universo e da existência humana? (Crítica da Faculdade do Juízo).

A Razão, como referencial de orientação, é uma faculdade que distingue o homem dos animais, possibilitando-lhe a indagação e a investigação dos fenômenos naturais ou culturais. Kant enxerga três usos fundamentais da razão humana: o teórico, o prático e o estético ( [06]).

Como pondera Ernst Cassirer (1956, p. 539), em Kant

a crítica da razão forma um todo acabado e harmônico que descansa sobre si mesmo e que quer encontrar em si mesmo sua explicação. Enfrenta-se como algo novo, próprio e peculiar com todo o passado filosófico e rompe também com toda a trajetória anterior do pensamento contida nos estudos precríticos do próprio Kant.

Na Crítica da Razão Pura demonstra-se que os juízos sintéticos a priori são possíveis. Ao estabelecer os limites da cognição, omite-se a volição (que Kant chama de "juízo"). A primeira cai no domínio da ética e é discutida na Crítica da Razão Prática. Quanto ao juízo, é considerado no sentido de avaliar propósitos ou fins e é o tema de Crítica da Faculdade do Juízo. Num enunciado descomplicado poderíamos afirmar que a razão pura corresponde aos princípios que possibilitam o conhecimento sem o ingrediente da experiência ou do sensível (estético, perceptível), possuindo, por isso mesmo, caráter absolutamente "a priori". A pureza dos conceitos é, assim, alheia aos dados vindos da experiência porque assentada, unicamente, nas estruturas racionais da mente humana.

Kant, no item VII da introdução à sua Crítica da Razão Pura (2001, p. 52-3) escreveu que

A razão é a faculdade que nos fornece os princípios do conhecimento ‘a priori’. Logo a razão pura é a que contém os princípios para conhecer algo absolutamente ‘a priori’. Um ‘organon’ da razão pura seria o conjunto desses princípios, pelos quais são adquiridos todos os conhecimentos puros ‘a priori’ e realmente constituídos. A aplicação pormenorizada de semelhante organon proporcionaria um sistema da razão pura. Como este sistema, porém, é coisa muito desejada e como resta ainda saber se também aqui em geral é possível uma extensão do nosso conhecimento e em que casos pode ser, podemos considerar como uma propedêutica do sistema da razão pura, uma ciência que se limite simplesmente a examinar a razão pura, suas fontes e limites. A esta ciência não se deverá dar o nome de ‘doutrina’ , antes o de crítica da razão pura e a sua utilidade (do ponto de vista da especulação) será apenas negativa, não servirá para alargar a nossa razão, mas tão somente para a clarificar, mantendo-a isenta de erros, o que já é uma grande conquista.

Destarte, uma "razão pura" seria o conhecimento no qual, em geral, não se misturasse nenhuma experiência ou sensação, sendo por isso possível completamente "a priori", daí afirmar-se que "o problema fundamental da Crítica da Razão Pura poderia expressar-se pelo conceito da objetividade. Sua missão central consiste em demonstrar a validez objetiva de nossos conhecimentos apriorísticos." (CASSIRER, 1956, p. 708).

Já na Crítica da Razão Prática enfoca-se o funcionamento da razão da vida prática, quando aceitamos a realidade como um valor e como algo inquestionável. Kant, na verdade, jamais, nas demais "Críticas", e noutros escritos, refutou a importância da experiência para o conhecimento, como se pode dessumir de sua introdução à obra correspondente a essa Crítica, onde se lê que

[no uso prático] a razão ocupa-se com fundamentos determinantes da vontade, a qual é uma faculdade ou de produzir objetos correspondentes às representações, ou de então determinar a si própria para a efetuação dos mesmos (quer a faculdade física seja suficiente ou não), isto é, de determinar a sua causalidade (2002, p. 25).

Portanto, nessa Crítica, o conceito da coisa em si, à medida que vai perdendo seu conteúdo concreto, vai cobrando, por isso mesmo, com nitidez cada vez maior, a forma e os contornos da experiência. Cassirer explica que esse conceito "não é outra coisa que o esquema daquele princípio regulativo por meio do qual a razão, no que dela depende, estende sua unidade sistemática sobre toda a experiência" (1956, p. 708).

A Crítica do Juízo completa o monumento filosófico de Kant e assegura a transição entre o entendimento e a razão, estabelecendo um intermediário entre o mundo sensível e o mundo inteligível. Afirmou Kant que, na família das faculdades de conhecimento superiores, existia ainda um termo médio entre o entendimento e a razão, a qual chamou de "faculdade do juízo"

...da qual se tem razões para supor, segundo a analogia, que também poderia precisamente conter em si ‘a priori’, se bem que não uma legislação própria, todavia um princípio próprio parra procurar leis; em todo caso um princípio simplesmente subjetivo, o qual, mesmo que não lhe convenha um campo de objetos como seu domínio, pode todavia possuir um território próprio e ma certa característica deste, para o que precisamente só este princípio pode ser válido (1995, p. 21)

Segundo a análise de Georges Pascal (2003, p. 177)

A Crítica da Razão Pura concluíra que o conhecimento humano é incapaz de transcender o mundo sensível. A Crítica da Razão Prática concluíra a conduta humana não teria sentido sem a suposição de um mundo inteligível. A terceira Crítica [da Faculdade do Juízo] nos mostra que entre o entendimento, fonte de nossas ações, existe uma faculdade mediadora, a do juízo, cuja função é pensar o mundo sensível em referência ao mundo inteligível.

Ernst Cassirer obtempera que "as formas de juízo não significam outra coisa que motivos unitários e vivos do pensamento que se percebem através de toda a multiplicidade de suas configurações particulares e se traduzem constantemente na criação e formulação de novas e novas categorias". (1956, p. 28)

É ainda na Crítica da Razão Pura (2001, p.103) que Kant nos aclara que

todos os juízos são funções da unidade entre as nossas representações, já que, em vez de uma representação imediata, se carece, para conhecimento do objeto, de uma mais elevada, que inclua em si a primeira e outras mais, e deste modo se reúnem num só muitos conhecimentos possíveis. Podemos, contudo, reduzir a juízos todas as ações do entendimento, de tal modo que o entendimento em geral pode ser representado como um faculdade de julgar. Porque, consoante o que ficou dito, é uma capacidade de pensar.

Jürgen Habermas ecoa que uma vez que "as normas morais não contêm de antemão as regras de sua aplicação é que o agir a partir de um discernimento moral exige adicionalmente a faculdade da inteligência hermenêutica, ou nas palavras de Kant, o poder do juízo reflexionante" (2003, p. 214).

Não se resume uma filosofia, como não se resume um poema e o pensamento de Kant é algo mui diferente de um somatório de seus pensamentos. Como salienta Georges Pascal (2003, p.190) "suprindo a falta de uma intuição fundamental, no kantismo, poderíamos apontar, facilmente, através das sucessivas investigações do filósofo, três empenhos permanentes que dão unidade à sua obra e constituem a marca distintiva do seu gênio: um empenho crítico, um empenho positivo e um empenho moral".

As indagações do Professor de Königsberg ainda ressoam para a inquietude dos cultores do conhecimento humano: que posso saber? que devo fazer? que me é dado esperar?


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Notas

01Sobre o Humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995, p. 99.

02 Cf . emprego por Eugénio Raúl Zaffaroni, in Manual de Direito Penal Brasileiro, São Paulo, RT, 1999, p. 453 ss.

03 Sempre merecedora de referência a posição quadripartida adotada por Basileu Garcia que, a esses três elementos, adicionava um quarto: a punibilidade.

04 Invoca René Ariel Dotti o domínio dessa idéia que, tendo em Damásio E. de Jesus seu mais notório defensor, foi prontamente seguida por outros doutrinadores responsáveis pelo refrão de que, hoje, é o crime fato típico e antijurídico.

05 Ensina Miguel Reale (1957; 54) que a palavra Criticismo aplica-se a todo e qualquer sistema que busque preliminarmente discriminar, com todo rigor, os pressupostos ou condições em geral do conhecer e do agir. Criticar significa indagar das raízes de um problema, daquilo que condiciona, lógica, axiológica ou historicamente esse mesmo problema.

06 Advirta-se que Kant toma a palavra "estético" noutro sentido daquele hoje amplamente conhecido, gerando não raro compreensões equivocadas no estudo desse filósofo. Como esclarece Manuel Garcia Morente (1980, p. 237), Kant toma esse vocábulo em seu sentido etimológico: a palavra "estética" deriva-se de uma palavra grega (aisthesis) que é sensação ou percepção, significando assim a teoria da faculdade de ter percepções sensíveis ou, ainda, teoria da sensibilidade.

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Sobre o autor
Edson Luis Baldan

delegado de Polícia do Estado de São Paulo, professor e coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Penal do Centro Universitário Nove de Julho (Uninove), mestre e doutorando em Direito Penal pela PUC/SP, especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, pós-graduado em Direito Penal pela Universidad de Salamanca (Espanha), especialista em Direito Penal pela Universidad Castilla La Mancha, Toledo (Espanha)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BALDAN, Edson Luis. Pressupostos neokantianos no juízo de tipicidade negativa de Mezger. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1016, 13 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8225. Acesso em: 20 abr. 2024.

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