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A crise do Estado frente ao poder econômico:

as perplexidades da pós-modernidade

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É evidente que as questões econômicas ganharam uma atenção especial nos dias atuais. Os problemas da área econômica se transformaram no tema central das discussões em geral [01]. Praticamente não há discurso que não guarde relação com a economia; os partidos políticos elegem temas econômicos como pontos fundamentais de seus programas de governo; a maior parte dos problemas relacionados às mais diversas áreas têm alguma relação com a área econômica, ao mesmo tempo em que a solução dos contratempos econômicos implica ou resulta na possibilidade de outras soluções, como se um efeito cascata de benefícios viesse após o "milagre econômico". [02]

No entanto, tal linha de pensamento tem muito de condução ideológica e pouco de realidade.

A expansão tecnológica e científica que teve início na década de 80 trouxe um campo fértil para a proliferação dos princípios da economia liberal/neoliberal dos países centrais capitalistas [03]. Assim, temos a disseminação dos ideais de livre mercado, livre iniciativa, concorrência, entre outros. Traduzido em escala mundial, tal evento proporcionou o fortalecimento de corporações, que se antes eram grandes, agora passam a ser gigantes.

Uma vez eleita como fator de maior importância dentro da sociedade, a economia começa a receber os frutos do trabalho bem feito: as prioridades passam a ser o desenvolvimento econômico, a abertura e fortalecimento do mercado, a suavização de barreiras comerciais, a desregulamentação do setor (sob o fundamento da extrema dinamicidade da economia em contra-ponto à estagnação do ordenamento jurídico) e a minimização da intervenção estatal.

No plano normativo, o Estado passa a tomar as medidas necessárias para a concretização da ideologia de mercado, uma vez que as prioridades já passam a se tornar uma espécie de "consenso". Os anseios da população são, então, depositados nas mãos e sob a responsabilidade dos agentes econômicos.

Mas, após engendrar por este caminho, o que se vê na realidade é que as promessas do projeto político-econômico não se concretizaram. Ao revés do esperado, tem-se o desemprego em massa, o aumento das desigualdades sociais, a marginalização e penalização dos excluídos, a destruição do meio-ambiente, o clima de conflito iminente, a piora das condições de trabalho, a superexploração da força de trabalho não-qualificada, o enfraquecimento da produção das micro, pequenas e médias empresas e, por fim, a perda dos laços comunitários e a disseminação de uma competitividade extrema na sociedade. [04]

As novas perplexidades não chegam a gerar uma reviravolta no sistema, pelo contrário, geram para os poderes do Estado uma maior dependência das regras da economia, que agora passa a ser o único caminho para a inversão do quadro social alarmante. Tamanho é o impacto das transformações do mercado sobre o Estado que este perde "em parte a capacidade e em parte a vontade política para continuar a regular as esferas da produção (privatizações, desregulação da economia) e da reprodução social (retração das políticas sociais, crise do Estado-Providência)" [05].

Embora formalmente o Estado continue a exercer o Poder Legislativo, o seu enfraquecimento diante da práticas contemporâneas de mercado acaba por submeter a autonomia da esfera de poder de regulação à economia e seus teóricos. Assim se percebe pelos inúmeros projetos e planos governamentais que surgem por "pressões" externas, embora, muitas vezes, a força normativa do poder econômico signifique uma ação política do Estado para substituir a tutela governamental pela livre negociação e para processos de descentralização, desformalização, desregulamentação, deslegalização e desconstitucionalização, pois, dentro da lógica essencialmente econômica, a regulação é considerada um custo de peso morto, já que um sistema de regras e normas tende a minar a eficiência dos mercados. [06]

Mas, como característica da ideologia de mercado, a economia trata os indivíduos como consumidores e não como cidadãos e pessoas humanas portadoras de dignidade. "Num cenário em que até as obrigações públicas também são reduzidas ao conceito geral de mercadoria e convertidas em negócios privados, e os titulares de um direito civil se transformaram em meros consumidores de serviços empresariais, se os homens são iguais, isto só ocorre no mercado – e, assim mesmo, como proprietários de bens ou da própria força de trabalho; portanto, jamais como cidadãos" [07].

Urge observar o fracasso deste paradigma. A insuficiência do Estado para a promover a emancipação e a regulação das práticas sociais atualmente não pode abrir espaço para a soberania do mercado, algo que somente vem para agravar a crise e não para solucionar problemas. Tampouco o caminho para a transformação passa pelo ressurgimento das práticas autoritárias do Estado. Diante dessas perplexidades, todo o caminho de transição ainda resta indefinido, contudo, podemos afirmar que seu ponto de partida já existe e ele reside nas utopias formuladas pelos teóricos sociais. A verdadeira crise consiste em continuar tudo como está [08].

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

FARIA, José Eduardo. O artigo 26 da declaração universal dos direitos do homem: algumas notas sobre suas condições de efetividade in Justiça & história. Revista do centro de memória do judiciário. V. 1. nºs. 1 e 2. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2001.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1997.

SILVA, Tadeu Antonio Dix. Globalização de direito penal brasileiro: acomodação ou indiferença? In Revista brasileira de ciências criminais, nº. 23. São Paulo: IBCCRIM, 1999.

SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras linhas de direito econômico. 5. ed. São Paulo: LTr, 2003.


NOTAS

01 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras linhas de direito econômico. 5. ed. São Paulo: LTr, 2003, p. 284.

02 Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1997, p. 19-22.

03Idem, p. 87-88.

04 Cf. FARIA, José Eduardo. O artigo 26 da declaração universal dos direitos do homem: algumas notas sobre suas condições de efetividade in Justiça & história. Revista do centro de memória do judiciário. V. 1. nºs. 1 e 2. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2001, p. 313-328.

05 SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. cit., p. 88-89.

06 SILVA, Tadeu Antonio Dix. Globalização de direito penal brasileiro: acomodação ou indiferença? In Revista brasileira de ciências criminais, nº. 23. São Paulo: IBCCRIM, 1999, p. 84-85.

07 FARIA, José Eduardo. Op. cit., p. 321.

08 BENJAMIM, Walter apud SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. cit., p. 45.

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Sobre os autores
Juliano Vieira Zappia

bacharelando em Direito pela PUC Minas, campus Poços de Caldas (MG)

Daniela de Cássia Roque Tozini

bacharelanda em Direito pela PUC Minas, campus Poços de Caldas (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZAPPIA, Juliano Vieira ; TOZINI, Daniela Cássia Roque. A crise do Estado frente ao poder econômico:: as perplexidades da pós-modernidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 905, 25 dez. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7736. Acesso em: 24 abr. 2024.

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