Artigo Destaque dos editores

Improbidade administrativa:

reflexões sobre laudos periciais ilegais e desvio de poder em face da Lei federal nº 8.429/92

Exibindo página 1 de 3
30/11/2005 às 00:00
Leia nesta página:

A produção de laudos periciais em sua dimensão distorcida vem causando imensos prejuízos ao erário ou às partes de um modo geral, gerando fraudes ou erros grosseiros em detrimento dos jurisdicionados.

1. Considerações introdutórias

[01]

O laudo pericial é a documentação escrita da atividade desenvolvida por perito, "geralmente no âmbito de um processo, e como órgão auxiliar da administração da justiça, de que se deve socorrer o juiz, na instrução da causa, em prol da formação de seu convencimento, ‘quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou científico (art.145 do Código Processual Civil)’. O perito apresentará o resultado dos exames, pesquisas, investigações e diligências que realizar, em instrumento que tem o nomen iuris de laudo. O laudo é a exposição da perícia realizada e seu resultado. Nele devem vir as conclusões do perito sobre a perícia levada a efeito, precedidas, como é óbvio, da respectiva fundamentação" [02].

A produção de laudos periciais, no sistema judicial pátrio, em sua dimensão distorcida, vem causando imensos prejuízos ao erário ou às partes de um modo geral, gerando fraudes ou erros grosseiros em detrimento dos jurisdicionados, manchando, em qualquer caso, a própria Administração da Justiça [03]. Verifica-se uma pluriofensividade dessa espécie de conduta transgressora, seja por omissão, seja por ação, porque, a um só tempo, ela agride direitos individuais das partes e direitos difusos da sociedade, todos relacionados ao ideário de bom funcionamento do sistema judicial.

O presente trabalho propõe-se, pois, a refletir sobre a responsabilidade de peritos e juízes nesses ilícitos funcionais, à luz da Lei Federal número 8.429/92, Lei Geral de Improbidade Administrativa, como a designo, em face à sua abrangência. Essa Lei constitui-se em apenas um dos instrumentos de controle repressivo, mas perpassa a própria ilicitude do ato e seus possíveis desdobramentos, sendo um instrumento potencialmente eficaz para coibir o mau exercício das funções públicas e o chamado desvio de poder alçado à categoria da improbidade, diante das penalidades que comina aos agentes públicos. Não me ocuparei nem da responsabilidade penal, nem da civil, nem da chamada responsabilidade disciplinar, embora tais categorias devam, não raro, convergir com a tipologia do ato de improbidade administrativa, o qual se situa num plano intermediário. Nem toda improbidade será um crime, mas toda improbidade haverá de ser, no caso em exame, também uma infração disciplinar e um ilícito gerador de responsabilidade civil, eis a premissa adotada.


2. Ato ímprobo e o desvio de poder valorado

Tratar de improbidade administrativa, no Direito brasileiro, significa refletir sobre atos de corrupção lato sensu [04] e, também, sobre atos de grave ineficiência funcional, ambos interconectando-se no plano da imoralidade administrativa, dentro do círculo restrito de ética institucional que domina o setor público [05]. A improbidade é uma espécie de má gestão pública lato sensu, uma imoralidade administrativa qualificada [06]. O ato ímprobo configura-se através de um processo de adequação típica, que carece da integração da Lei Geral de Improbidade com normativas setoriais aplicáveis à espécie, dentro de um esquema de valoração mais profunda da conduta proibida. A improbidade é uma patologia de gravidade ímpar no contexto do Direito Administrativo Sancionador, eis que suscita reações estatais bastante severas; por isso mesmo, sua punição, no devido processo legal que lhe cabe, exige obediência a regras e princípios de Direito Punitivo, marcadamente de Direito Administrativo Sancionador [07].

O desvio de poder é uma das figuras centrais de improbidade, alcançando todo e qualquer bloco normativo previsto no bojo da Lei 8.429/92, tanto nas cláusulas gerais, quanto na casuística. A formatação do desvio de poder, na modalidade ímproba, pode ocorrer no seio de tipos que sancionam enriquecimento ilícito, lesão ao erário ou pura agressão às normas, tal como se percebe nos arts.9º, 10 e 11 da Lei Geral de Improbidade. A constatação da improbidade depende da valoração que recai sobre o desvio de poder e a nota de gravidade perceptível [08].

O que denota, normalmente, o desvio de poder, na improbidade revestida de maior sofisticação, é a aparência de institucionalidade conferida ao ato abusivo, logo desmoralizada pela verificação do substrato normativo incidente; não obstante, o contraste apenas aumente a lesividade do comportamento transgressor. A institucionalidade resulta, nesse caso, da costumeira presunção de legalidade, inerente ao ato pericial, no que concerne à forma e aos deveres públicos subjacentes, em face à sua importância no sistema, circunstância essa aplicável ao ato jurisdicional. Há níveis distintos de institucionalidade de um desvio de poder, mas a nota da transgressão, mascarada por algum nível de institucionalidade ou fachada de legalidade, está invariavelmente presente nessa patologia, que se singulariza pelo status camaleônico de não pretender parecer o que realmente é [09].

Há muitos tipos de desvio de poder, eis que se trata de uma categoria historicamente relevante na própria formação do Direito Administrativo contemporâneo, na medida em que interfere no reconhecimento da chamada ilegalidade substancial, além de emprestar conteúdo à imoralidade e pessoalidade administrativas. A valoração do desvio de poder, pois, diante de seus virtuais conteúdos, integra-se num processo interpretativo complexo, que há de levar em conta os valores, as normas e os atores envolvidos. Nem todo desvio de poder é considerado improbidade administrativa, mas essa configura, normalmente, uma modalidade de desvio de poder acentuadamente grave, nas suas formas mais agressivas.

Define-se a improbidade administrativa como uma patologia associada ao mau exercício das funções públicas, decorrente de ações ou omissões do agente competente. Trata-se do desempenho de condutas por parte de agentes públicos, em desacordo com a normativa, constitucional, infraconstitucional e, eventualmente, também administrativa stricto sensu, que preside seus atos. Improbidade é, no bojo da Lei 8.429/92, em sintonia com o art.37, par.4º, da Carta de 1988, má gestão pública lato sensu, seja por desonestidade, seja por intolerável ineficiência. A densidade das proibições e sanções, dirigidas aos ímprobos, é alcançada pela obediência ao devido processo legal, que articula a funcionalidade dos princípios da legalidade, tipicidade, culpabilidade, segurança jurídica, proporcionalidade e simetria entre Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador. Nesse cenário, a conduta proibida é previsível diante dos tipos sancionadores desenhados na Lei Geral de Improbidade, considerando-se as interfaces entre normativas inerentes às normas punitivas em branco que compõem esse verdadeiro Código Geral de Conduta dos agentes públicos brasileiros.

A peculiaridade do ato ímprobo é o patamar especial de gravidade que ele assume em termos de valoração sobre a normativa violada, considerando-se os preceitos previstos na Lei 8.429/92, o que justificaria, assim, determinadas sanções, com severidade mais acentuada, para coibi-lo. Essa gravidade exige interpretação em franca harmonia com o devido processo legal e a última ratio do Direito Punitivo. O ato tipificado na Lei Geral de Improbidade é um ato ilícito grave, que faz fronteira, embora dele se distinga, com o ilícito penal. Trata-se de ilícito administrativo lato sensu, e não tão-somente um ilícito extrapenal. As penas cominadas aos ímprobos são conhecidas, adentrando esfera de direitos fundamentais dos acusados, e alcançando mesmo a suspensão de seus direitos políticos, interdições de direitos e até exigindo o ressarcimento ao erário [10], quando couber.

A improbidade compreende, pois, três tipos básicos de atos detalhados em tipos sancionadores abertos, em branco, na própria Lei 8.429/92: (a) aqueles que comportam enriquecimento ilícito no exercício ou em razão das funções públicas; (b) aqueles que produzem lesão ao erário; (c) aqueles que atentam contra os princípios que presidem a Administração Pública. Qualquer dessas categorias típicas produz lesão aos princípios constitucionais que dominam a Administração Pública e às regras diretamente incidentes à matéria. Os elementos especializantes resultam do enriquecimento ilícito ou da lesão ao erário. O bloco mais geral é o da lesão às normas.

A Lei Geral de Improbidade está repleta, como referi, de normas sancionadoras em branco, que se complementam por outras regras ou princípios, a partir da integração de legislações setoriais. Daí por que a violação ao dever de probidade nunca consiste na mera agressão a princípios, mas a regras e princípios. Tampouco pode haver improbidade tão-somente a partir de agressão às regras contempladas na respectiva Lei, eis que essa se socorre de outras regras e princípios, que incidem na tutela do comportamento do agente público [11].

Sustento que essas três categorias de atos ímprobos possuem estruturas típicas diferenciadas, que podem ser configuradas como: (a) bloco do enriquecimento ilícito, que supõe condutas dolosas, costumeiramente, pela redação dos tipos e porque ninguém enriquece indevidamente de forma culposa; (b) o bloco das lesões ao erário, que, até por força de deliberação legal expressa, seja nos incisos, seja no caput, podem ser tanto dolosos quanto culposos, sendo constitucional essa previsão, alicerçada em princípio democrático [12]; (c) bloco dos comportamentos atentatórios aos princípios que governam a Administração Pública, cuja aplicação subsidiária e excepcional demanda, para a maioria da doutrina, condutas exclusivamente dolosas (já estive filiado a esse entendimento), embora haja quem entenda que subsiste a possibilidade de sancionar condutas culposas [13]. A culpa, em qualquer caso, sempre há de ser, no mínimo, grave. O dolo é o administrativo, não o penal [14].

Não é, evidentemente, toda e qualquer ilegalidade comportamental que pode configurar improbidade [15]. Ao contrário, em geral, a mera ilegalidade não adentra esse terreno mais estreito. Nem mesmo toda imoralidade administrativa traduz improbidade, o que significa dizer que a patologia aqui tratada requer uma gradação dos deveres públicos, da normativa incidente à espécie e das respostas sancionatórias cabíveis. Assim, repito, somente o processo interpretativo poderá definir, concretamente, um ato ímprobo, o que não impede o reconhecimento de pautas abstratas e objetivas para os operadores jurídicos [16].

A Lei 8.429/92 não pode ser banalizada, como tantas vezes se percebe, porque a hermenêutica que se exige para sua aplicação requer uma série de ponderações e cautelas, em obediência ao devido processo legal punitivo. Porém, tampouco resulta viável aceitar o outro extremo, vale dizer, o esvaziamento dessa legislação em relação às altas autoridades da Nação, entre as quais estão os agentes políticos. Sobre essa tendência, cabe envidar esforços para recuperar o princípio republicano, envolvendo todos os agentes públicos no ambiente probo e saudável que se pretende construir neste país. Cabe, pois, uma digressão sobre o alcance do princípio da responsabilidade em nosso sistema constitucional.


3. Princípio da responsabilidade no funcionamento do sistema judicial

O princípio da responsabilidade dos agentes públicos tem raízes constitucionais, republicanas e democráticas. Cuida-se de fixar limites ao poder daqueles que detêm competências sobre liberdades, direitos e patrimônio dos cidadãos. Agentes irresponsáveis, com imunidades absolutas, não combinam com o ideário do regime democrático ou com os valores que embasam a cultura republicana. Essa tem sido a tônica no pensamento político contemporâneo, com reflexos nas teorias constitucionais e nas teorias democráticas. A legitimidade do poder político advém, em grande medida, dos níveis de responsabilidade a que se encontra submetida a autoridade pública competente [17].

As responsabilidades, no entanto, podem ser tratadas de modo diferenciado, como têm sido historicamente, em face de prerrogativas ou garantias conferidas a certas autoridades públicas, em razão de suas importantes funções. Essas diferenciações afetam os mais variados instrumentais de responsabilização dos agentes públicos, alcançando, inclusive, a própria eficácia do sistema normativo, no qual se insere a Lei Geral de Improbidade. É necessário contextualizar a tipologia das responsabilidades dos agentes públicos, até mesmo porque as percepções jurídica e sociológica nem sempre coincidem quando do diagnóstico acerca da densidade normativa do princípio da responsabilidade [18].

Há imunidades, como as dos parlamentares [19], que se constituem freqüentemente em instrumentos de blindagem de responsabilidades, embora sejam essenciais aos regimes democráticos, na medida em que devem resguardar o exercício livre das funções, traduzindo prerrogativas da cidadania. Advogados também contam com imunidade [20] para atuar em juízo ou fora dele, no desempenho das elevadas atribuições públicas que ostentam, mas não estão imunes aos processos, tanto que não é raro se ver um advogado submetido a processo, até mesmo injusto, ao abrigo de interpretação demasiado elástica da imunidade. Altas autoridades gozam de prerrogativa de foro [21] e tal circunstância não paralisa, teoricamente, suas responsabilidades, ainda que, na prática, ela inviabilize a cobrança concreta de certos preceitos jurídicos ou éticos. Juízes e membros do Ministério Público gozam de imunidades para o desempenho de suas tarefas, o que significa dizer que contam com margens de erro juridicamente toleráveis, circunstância que vem reforçar o arcabouço da independência funcional, mas, nem por isso, são irresponsáveis perante a sociedade. É verdade que, na prática, apenas recentemente começam a surgir cobranças mais fortes no sentido de ampliar as responsabilidades das altas autoridades, incluídas aquelas das carreiras do Ministério Público e Judiciário, mas, no plano teórico-normativo, a responsabilidade existe e sempre existiu, sobretudo a partir da Carta de 1988 [22].

A responsabilidade dos agentes públicos projeta-se de variadas maneiras. Não se ignora a existência de diferenças de tratamento em relação a distintas espécies de agentes públicos. Há uma tipologia de agentes públicos, dentro da qual se sobressaem os agentes políticos, dotados de autonomia e liberdade decisórias, além de estatutos jurídicos específicos [23].

O próprio controle jurisdicional dos atos estatais integra a idéia de responsabilidade do Estado perante a cidadania, incluindo sua responsabilidade patrimonial objetiva, mas não é este o objeto do presente trabalho. A responsabilidade civil lato sensu também vem à tona quando se cuida do princípio da responsabilidade. Intentam-se apurar prejuízos e deveres de ressarcimento, a partir de atos ilícitos praticados por agentes públicos, seja no bojo de ações de regresso, seja no que concerne às ações diretas. Hipóteses de dolo ou culpa autorizam essa responsabilidade do funcionário, por previsão expressa na Carta Magna, mas não cuido dessas situações no presente momento [24].

De que tipo de responsabilidade se pretende tratar aqui? A responsabilidade objeto da presente análise situa-se no campo do Direito Punitivo, mas é uma especialização funcional do sistema. No plano sancionatório stricto sensu, existe a esfera penal, na qual se desenrolam processos com vistas à imposição de sanções criminais, sendo raro, não obstante, que altos funcionários públicos venham a cumprir penas privativas de liberdade. Dessa responsabilidade também não cuidarei agora, embora tenha uma afinidade teórica com o Direito Penal, no exame de suas conexões e complexas interfaces com outros ramos jurídicos. Há a esfera administrativa stricto sensu, em que o Direito Disciplinar encontra seu locus, mas, nesse caso, também existem notáveis lacunas em relação aos funcionários dos mais elevados escalões, porque são eles que constituem as últimas instâncias dessas esferas. Além disso, o poder disciplinar do Estado, despido de tradição de juridicidade plena, tem-se prestado a distorções, abusos e omissões emblemáticas, donde a fragilidade dessa importantíssima instância de controle. Penso que haverá lugar adequado para o exame dessas esferas de responsabilização dos agentes públicos, embora o disciplinar seja espécie do gênero Direito Administrativo Sancionador e venha a ser afetado, seguramente, por uma condenação judicial lançada contra ato ímprobo [25].

Do ponto de vista abstrato, a Lei 8.429/92 atinge todos os agentes públicos brasileiros, com suas diversificadas modalidades. A possibilidade de imputação de ato de improbidade aos agentes públicos decorre do próprio Estado Democrático de Direito. Cuido, aqui, do campo da improbidade, no qual há uma pretensão punitiva judicializada, com perspectivas de severas sanções, exposto ao Direito Administrativo Sancionador que regula esse poder estatal. Sobre essa Lei, à míngua de estatísticas nacionais, não se tem um balanço correto, mas é possível sinalizar uma promissora vontade política do Ministério Público brasileiro no enfrentamento do problema da má gestão pública, com ajuizamento de ações de repercussão, multiplicação de investigações e investidas legítimas contra altas autoridades da Nação, apesar da dispersão de foco e de energias e do déficit de unidade institucional, características que têm fragilizado, de algum modo, essa importante instância. É dessa Lei que pretendo cuidar, com as definições já expostas, na esteira de uma larga dedicação ao estudo da matéria, por vislumbrá-la, ainda, com numerosas potencialidades inexploradas, especialmente em segmentos infensos à densidade jurídica do princípio da responsabilidade [26].


4. Laudo judicial e mau exercício da função pública

Não houvesse amplo espaço à impunidade em determinados segmentos, talvez fosse irrelevante aduzir que a confecção de laudos periciais traduz exercício de função pública, a qual resulta submetida aos princípios constitucionais que presidem a Administração Pública. Esta Administração, mencionada no art.37, caput, da Magna Carta, é não apenas aquela referente ao Poder Executivo, mas também a de qualquer dos Poderes da República. Sempre que houver função pública em jogo, os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, entram em cena.

Além de traduzir exercício de função pública, o laudo traduz ato essencial à função jurisdicional, quando reputado necessário. Uma premissa importante diz respeito à essencialidade do laudo pericial à liberdade intelectual e cognitiva do juiz e, em última instância, à sua independência funcional e ao predicado de imparcialidade. Um juiz auxiliado por perito inidôneo, seja em razão de crônica ineficiência, seja por força de parcialidade, não tem independência para decidir. A responsabilidade do perito é tão alta quanto a do juiz, em razão dessa proximidade das respectivas funções. Os princípios e regras que dominam a atividade pericial partem de um substrato axiológico alimentado pela essencialidade do perito à Administração do sistema judicial [27].

Os peritos judiciais assumem voluntariamente elevados deveres públicos, assimilando os rigores de uma relação de sujeição especial mantida com o Estado. A propósito, recorda DINAMARCO, dizem-se auxiliares eventuais do Poder Judiciário os sujeitos que, "sem pertencerem aos quadros da Justiça, são chamados a colaborar com esta, caso a caso (peritos, avaliadores, intérpretes, etc.). Não têm vínculo permanente com o Poder Judiciário e não são sequer obrigados a aceitar os encargos que o juiz lhes comete; mas, uma vez aceito o encargo, fica o auxiliar eventual subordinado ao juiz no processo e adstrito às exigências deste e da lei quanto à lisura e tempestividade do serviço de que é incumbido. Alguns deles são profissionais liberais, servindo como peritos ou arbitradores no processo civil em geral, ou como juizes leigos, árbitros ou conciliadores perante os juizados especiais cíveis; há também os auxiliares eventuais que não necessitam de formação acadêmica, como os depositários particulares, avaliadores ou intérpretes. Tais são os auxiliares de encargo judicial, que sempre são pessoas físicas". Daí por que o fato de um perito ser um profissional que não integra os quadros do Judiciário não o exime das elevadas obrigações públicas, inclusive da obediência ao dever de probidade administrativa que emerge tanto da Carta Magna (art.37, par.4º), quanto da legislação infraconstitucional (Lei 8.429/92). Ao contrário, o perito, diz o mesmo autor antes citado, "é um sujeito processual inserido no processo por escolha e nomeação do juiz em cada caso (CPC, art. 421). Daí ser um auxiliar eventual da Justiça. É indispensável para o exame de pessoas ou coisas, sempre que o fato a investigar dependa de conhecimentos técnicos especializados, dos quais o juiz não é portador (arts. 145 e 335). Daí a exigência legal de que a escolha recaia em profissionais de nível universitário (art. 145 § 1º) e a dispensa do perito em caso de insuficiência de conhecimentos técnicos ou científicos (art. 424, I). Nomeiam-se peritos, conforme o caso, portadores de conhecimentos de engenharia, economia, medicina, odontologia, contabilidade etc, - ou até mesmo de direito. Como todo sujeito processual (ainda que secundário), o perito tem deveres no processo: deveres quanto ao prazo para apresentar o laudo (arts. 146 e 421), quanto ao desempenho tecnicamente correto de seu encargo (art. 422) e, naturalmente, quanto à probidade e imparcialidade nesse desempenho (art. 422). Em caso de informações inverídicas, assim prestadas por dolo ou culpa, o perito responde civilmente perante o prejudicado, fica inabilitado por dois anos a realizar perícias em outros processos e incorre em crime de falsa perícia" [28], sem prejuízo, vale acrescer, de outras sanções cabíveis. A escolha discricionária do juiz, vale igualmente lembrar, aumenta a responsabilidade da autoridade judiciária em termos de controle da probidade, visto que o perito é pessoa da sua confiança técnica.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Na esteira do dever de probidade administrativa, adentrando a própria moralidade inscrita no art.37, caput, da Magna Carta, o legislador infraconstitucional estatuiu, no art. 146 do Código Processual Civil, que "o perito tem o dever de cumprir o ofício, no prazo que Ihe assina a lei, empregando toda a sua diligência; pode, todavia, escusar-se do encargo alegando motivo legítimo". No art. 147, o mesmo diploma processual fixa: "O perito que, por dolo ou culpa, prestar informações inverídicas, responderá pelos prejuízos que causar à parte, ficará inabilitado, por 2 (dois) anos, a funcionar em outras perícias e incorrerá na sanção que a lei penal estabelecer". Nesta última referência, o legislador não apenas abre a porta da via penal, como, implicitamente, de todo o sistema punitivo.

A sanção judicial de inabilitação, imponível diretamente pelo juiz do processo ao perito, traduz controle do mau exercício da função pública por este último e não afasta a incidência das sanções disciplinares cabíveis, no campo da tutela interna corporis do profissional, por seu órgão de classe. De outro lado, a menção à responsabilidade civil lato sensu é corolário lógico do modelo de repartição de competências, até porque envolve a perspectiva do direito individual da parte lesada, a qual pode ajuizar as ações que julgar cabíveis. Fica, pois, evidentemente, salvaguardada qualquer outra esfera punitiva legalmente habilitada a interferir e tutelar o fato ilícito, dentro de sua ótica peculiar. O ordenamento jurídico consagra mecanismos diversificados e simultâneos de tutela do bem jurídico em exame. A tutela da probidade encontra respaldo constitucional direto no art.37, par.4º, da Magna Carta, alcançando, inegavelmente, os peritos. Há uma ênfase, de qualquer sorte, na obrigatoriedade de os peritos atuarem de modo ético e imparcial. No art. 422 do CPC, se diz que o perito cumprirá escrupulosamente o encargo que lhe foi cometido, independentemente de termo de compromisso. Os assistentes técnicos são de confiança da parte, não sujeitos a impedimento ou suspeição" (alterado pela L-008.455-1992).

O laudo pericial pressupõe a honestidade, imparcialidade e certos níveis básicos de preparo funcional do perito, o que envolve a obediência a regras jurídicas elementares ligadas à interdição à arbitrariedade dos funcionários públicos, motivação e transparência. Tais normas repercutem nos deveres positivos e negativos dos peritos. Trata-se de exigir desses profissionais certos deveres públicos, marcadamente aqueles relacionados à probidade administrativa, requisito geral de toda e qualquer função pública. Tanto a atuação escrupulosa quanto a diligente, em correspondência com o dever de prestar informações verídicas, podem integrar, desde que devidamente valoradas, os círculos concêntricos da moralidade e probidade administrativas [29].

Embora também gozem de prerrogativas inerentes às funções, ostentando liberdades, autonomias e consideráveis margens de erro profissional, os peritos, enquanto auxiliares do Judiciário, possuem responsabilidades por seus erros, equívocos ou transgressões, intencionais ou não. Cuida-se de agentes públicos para fins de responsabilidade, podendo incorrer, inclusive, no cometimento de crimes privativos de funcionários públicos [30].

Os atos que os peritos praticam, na realização das tarefas inerentes às funções, configuram produto do exercício de função pública e estão jungidos ao dever de probidade. Os peritos têm independência, autonomia e imparcialidade na concretização de suas funções, eis que emitem laudos técnicos, mas por isso mesmo ficam vinculados a deveres públicos imanentes à natureza das funções desempenhadas. As conclusões dos laudos não vinculam os Juízes [31], mas resultam necessariamente balizadas pelo princípio da responsabilidade de seus autores, eis que espelham valorações de conteúdo técnico, com alta relevância para o correto deslinde das matérias controvertidas. Os peritos interferem, portanto, fortemente na Administração da Justiça, ostentando imensas responsabilidades. Deles dependem, em grande medida, a liberdade intelectual e a autonomia decisória dos juízes, nas causas que reclamam perícias [32].

Não se há de imaginar que os peritos estejam imunes aos equívocos, nem se pretendem fomentar ferramentas desumanas de cobrança. Ao contrário, laudos são impugnados diariamente, assim como são desconsiderados. Nem por isso, obviamente, haverá responsabilidade pessoal dos peritos, em sendo constatado equívoco. Se é certo que ninguém pode ser automaticamente responsabilizado por ilegalidades ou equívocos funcionais, sem uma gradação correta da ilicitude do ato, também é inegável que transgressões escancaradamente graves, teratológicas, absurdas, irrazoáveis, até mesmo com aparência de má fé, podem ensejar suporte para respostas punitivas ou ressarcitórias. A autonomia dos peritos repousa nos estreitos limites da Ciência a que estão submetidos, ao abrigo do dever de fundamentação de seus atos, circunstância aplicável, mutatis mutandis, aos juízes e outras autoridades semelhantes.

Se não houver controle sobre os laudos abusivos, cabe então cogitar a responsabilidade dos juízes. Em última instância, sempre caberia cogitar a responsabilidade do próprio Estado. Não há dúvida de que juízes respondem, em tese, por atos de improbidade, em face de comportamentos funcionais ilícitos. Esta assertiva está de acordo com o pensamento exposto por segmentos representativos de importantes instituições democráticas, que se posicionam contrariamente à restrição do alcance da Lei 8.429/92 aos agentes públicos comuns, dela excluindo os agentes políticos. Nesse caso, tanto a Associação Nacional dos Procuradores da República, quanto a Associação Nacional do Ministério Público ou a Associação dos Magistrados Brasileiros sustentam a inviabilidade da tese de se restringir o alcance da Lei Geral de Improbidade, porquanto isonomia e a razoabilidade seriam feridas ao se retirarem os agentes políticos do alcance dessa normativa republicana. Ademais, a responsabilidade dos juízes é um dos pilares mais antigos da civilização [33].

E por qual razão os juízes, tanto quanto os membros do Ministério Público e outros agentes políticos, estão submissos à normativa da Lei 8.429/92? Ora, como sustento desde 1997 [34], essa legislação cuida de atos de todo e qualquer Poder da República. Não há imunidades. Atos administrativos, jurisdicionais ou legislativos demandam critérios técnicos de correto exercício das funções públicas típicas. O mau exercício das funções acarreta abertura às responsabilidades e às sanções correspondentes. Uma decisão judicial teratológica, absurda, francamente arbitrária, desprovida de fundamentos elementares, cerceando, restringindo ou simplesmente afetando direitos, remete ao problema de má administração da justiça [35]. O dever de probidade diz respeito ao exercício da função administrativa, legislativa e jurisdicional, dentro de padrões corretos e minimamente ajustados às regras institucionais vigentes. Qualquer dessas funções há de ser exercida com probidade administrativa.

4.1. Lealdade institucional no cumprimento dos deveres de ofício

Observada a submissão de todos os agentes públicos ao princípio constitucional da responsabilidade, num ambiente republicano, bem assim, especificamente, aos cânones da Lei 8.429/92, cabe examinar quais os deveres públicos fundamentais que hão de ser violados para configuração de um ato ímprobo. Nesse caso, forçoso reconhecer que um amplo espectro de deveres pode ser cobrado dos operadores jurídicos e dos funcionários públicos lato sensu. Para fins de enquadramento na categoria da improbidade administrativa, não obstante, o enfoque há de ser concentrado, situando-se os deveres dos peritos e dos juízes no plano da lealdade institucional e, na seqüência, em suas dimensões fundamentais: (a) dever de honestidade e (b) dever de eficiência. Tais deveres estão interligados e, no contexto adequado, podem, inclusive, ser cobrados simultaneamente de funcionários públicos cuja ineficiência apareça como suporte ou fachada da desonestidade. A valoração desses deveres, no bojo da Lei Geral de Improbidade, é que acarreta o suporte fático e normativo para desencadeamento de investigações e processo sancionador pela prática de atos ímprobos, os quais estão conectados ao dever de probidade administrativa, o núcleo desta reflexão.

Lealdade, segundo corretamente anotam os comentaristas do vernáculo jurídico, vem do latim legalitas, é dizer, o mesmo que fidelitas, esboçando as noções de confiança, sinceridade e conformidade com as leis. No plano ético, a lealdade expressa o ideário de coerência do indivíduo consigo mesmo; no plano jurídico, cuida-se da adequação à ordem estabelecida, externa, social ou política. Opõe-se a lealdade à falsidade. Porém, no terreno jurídico, o dever de lealdade está imanente ao princípio da boa fé. No campo do Direito Administrativo, é dever básico dos funcionários públicos obedecer à lealdade. Equivale à fidelidade. Define-se a fidelidade como a vontade de agir constantemente no interesse da administração e de lhe evitar, tanto quanto dependa do sujeito, todo dano, perigo ou diminuição do prestígio. É a obrigação de operar no interesse exclusivo da administração. Todo empregado deve lealdade ao patrão que lhe contratou. O funcionário que desempenha as funções superficialmente, passageiramente e sem energia, age contra o dever, mesmo quando executa o que lhe é ordenado [36].

O dever de lealdade não guarda nenhuma conexão necessária com atitudes transgressoras intencionais, visto que depende, estruturalmente, dos deveres exigíveis dos funcionários públicos. O atendimento aos interesses públicos ou gerais pressupõe, aliás, uma série de comportamentos que transcendem os estreitos limites das infrações dolosas. A lealdade expressa um ideário que perpassa tanto os mais variados níveis de honestidade quanto, em medida pouco explorada, níveis significativos de eficiência funcional. Observe-se que a honestidade e a eficiência relacionam-se intimamente com o dever de lealdade institucional, o qual encontra previsão expressa somente no art.11, caput, da Lei Geral de Improbidade. Entretanto, é no Direito Administrativo francês, na palavra de Maurice HAURIOU, ao tratar da moralidade administrativa, que a deslealdade institucional tem lugar, a começos do século XX, como desvio funcional passível de censura jurisdicional [37].

Nenhuma dúvida pode haver no sentido de que a lealdade expressa e sempre expressou a honra na função pública e seu oposto significa precisamente uma espécie de desonra, a traição, numa medida específica. Pode-se dizer que a lealdade é um dever imanente ao princípio de moralidade administrativa (art.37, caput, CF), traduzindo uma série de limites aos agentes públicos. Embora só esteja implícito na CF, e explícito na Lei 8.429/92, esse é o dever fundamental dos agentes públicos, no universo da moral administrativa e, mais concretamente, da Lei Geral de Improbidade.

O dever de lealdade institucional traduz a idéia de confiança, inserida no regime democrático, que baliza as relações entre eleitores e escolhidos, administradores públicos e administrados, funcionários públicos em geral e os destinatários de suas decisões, jurisdicionados e juízes, governantes e governados. Quebrada a confiança, pelo rompimento do dever de lealdade institucional, existe um grau mais elevado de violação da moral administrativa, tendo em conta a ponderação dos deveres em jogo [38].

Quando se faz presente a inobservância do dever de lealdade institucional, a partir da vulneração do conjunto de normas que o compõem, é certo que se pode constatar um rompimento de regras sensivelmente valorizadas. O dever de lealdade institucional traduz a observância obrigatória de uma série de normas essenciais ao vínculo que o agente mantém com o setor público. A essencialidade das normas ao vínculo institucional traduz sua importância superior no universo axiológico. Essas normas se inserem no círculo da moralidade administrativa, obrigatoriamente, numa dimensão específica e concentrada. A agressão perpetrada contra essas normas nucleares dá ensejo ao enquadramento do sujeito na categoria de desleal, o que pode ocorrer tanto pela via dolosa, quanto pela culposa.

As atividades periciais, nesse contexto, tal como ocorre em alguns Estados da federação, ao menos no plano normativo, estão regradas administrativamente por uma série de deveres que compõem o substrato da lealdade institucional, deveres que podem ser agredidos e desrespeitados tanto culposa quanto dolosamente. Cuida-se de deveres imanentes ao princípio da moralidade administrativa [39].

A deslealdade institucional resta aberta, então, tanto às transgressões intencionais quanto involuntárias. Com efeito, nesta valoração peculiar de um campo mais restrito da moral administrativa, os elementos que integram o esquema conceitual do dever de lealdade institucional são o dolo e a culpa, além da objetiva percepção da importância maior dos deveres públicos ínsitos à lealdade do agente para com o setor público. Note-se que os Códigos Éticos, no campo profissional, costumam englobar, com paridade de tratamento, deveres de diligência e de integridade, porque ambas categorias integram o ideário ético de uma atividade comprometida com superiores valores da coletividade [40].

Nas atitudes dolosas, o agente trai o dever de lealdade institucional, incorrendo em uma vulneração de normas de moral administrativa. Nas atitudes culposas, o agente trai, de igual modo, a lealdade institucional, que lhe exige prudência e cuidado no trato de interesses que não lhe pertencem, porque o setor público, dentro de certos limites, não tolera a incompetência administrativa e esta é uma modalidade de deslealdade e de imoralidade administrativa [41].

É necessário analisar os deveres de honestidade e eficiência, aplicáveis tanto aos peritos quanto aos juízes, no contexto da lealdade institucional, para culminar no reconhecimento do suporte à improbidade. A ilegalidade, com efeito, configurada como deslealdade institucional, pode conduzir o agente público à responsabilidade por ato ímprobo, diante de um iter que pressupõe pautas objetivas de violência à normatividade da Lei 8.429/92 e regras subjacentes. O desvio de poder não se perfaz apenas por comportamentos dolosos, mas também por condutas tipicamente culposas ou situadas nas fronteiras de um dolo penal e administrativo [42]. O mais comum é que tais categorias ganhem enorme flexibilidade e assumam uma dinâmica veloz na distribuição do ônus probatório e na previsão normativa correspondente. Daí por que, no caso em exame, as condutas dos peritos podem oscilar, sutilmente, entre categorias como a culpa, a culpa grave, o erro grosseiro, a teratologia ou o dolo administrativo, nas suas variadas modalidades; por isso, vê-se claramente a complexidade dos conteúdos potenciais do conceito de perito inidôneo, que perpassa regras, princípios e valores diversos na legislação especializada do Código Processual Civil [43].

O dolo, que pode marcar o desvio de poder, não é, necessariamente, marcado por uma intencionalidade voltada ao enriquecimento ilícito, à persecução de interesses privados; pode também se constituir em uma intenção que recaia sobre os elementos da figura típica. Essa possui amplitude variável, comportando desvios calcados na inobservância deliberada de deveres de ofício, inclusive com a persecução de interesse público diverso daquele previsto na regra de competência ou com o completo desprezo pelas finalidades públicas que norteiam as funções. A deslealdade institucional é o eixo central dessas categorias cinzentas, que alcançam desde as intenções mais nefastas e reprováveis, até outros tipos de parcialidade e de inclinações pessoais menos evidentes; não obstante, todas as condutas aqui delineadas, a partir de um certo estágio, têm em comum o vício da quebra de confiança do agente público para com o Estado, alicerçado na violação de deveres constitucionais, legais e administrativos. A divisão aqui desenhada, repartindo duas grandes categorias, como a honestidade e a eficiência, tem caráter puramente didático, porque, em realidade, tais deveres se tornam compreensíveis no contexto de um somatório de deveres públicos. Descabe, neste espaço, traçar as bases de uma teoria dos deveres públicos, mas é possível registrar que a honestidade e a eficiência constituem pilares fundamentais da probidade administrativa [44].

4.1.1. Dever de honestidade

O histórico enciclopédico sobre o conceito de honesto é elucidativo: "Do latim honestus, análogo de honoratus – honrado, cujo conceito originário é honor – honra. Honesto é quem age com honra, equilíbrio moral. Trata-se assim de conceito ético-moral, que se projeta na interação social, assumindo a forma de valor jurídico, o qual foi ilustrado historicamente por intermédio dos dois preceitos do jurista romano Ulpiano: (a) viver honestamente (honeste vivere); (b) não prejudicar a ninguém (alterum non loedere). Esses dois preceitos são de ordem moral, enquanto o terceiro é de ordem jurídica: (c) dar a cada um o que lhe pertence (cuique suum tribuere), este baseado na alteridade, socialidade, politicidade: qualidades da objetividade social que representa a justiça – conteúdo da forma jurídica. Como antítese do honesto, temos o desonesto cujas raias mais alongadas são tingidas de ilicitude penal" [45].

Desta singela referência histórica emergem algumas importantes premissas vigentes nos dias de hoje: (a) a honestidade é, ao mesmo tempo, um dever moral e jurídico, de conteúdo indeterminado, carente de valorações, oscilante conforme se trate de uma ou outra tipologia ético-normativa; (b) a honestidade pressupõe compromisso com o ideário de não causar prejuízos injustificáveis a terceiros; (c) a honestidade guarda conexões profundas com o substrato e o ideário da justiça, tanto que ser honesto é, também, o ser justo; (d) desonestidade comporta muitos matizes e variações, tanto que suas raias mais alongadas é que adentram a esfera penal, o que supõe muitos tipos de desonestidades e de respostas punitivas [46].

Dos juízes se exige honestidade em patamares elevados, ao ponto de configurar dever imanente à dignidade das funções. O conjunto de impedimentos e causas de suspeições já revela, por si só, o tratamento dispensado ao dever de honestidade dos juízes. Some-se a esse contexto a robusta teia de incompatibilidades e de exigências ético-normativas para as elevadas funções e encontramos, com facilidade, o lugar axiológico privilegiado da honestidade na carreira judicial. Diz-se que dos juízes seria exigível bem mais do que a honestidade, porque o parecer honesto também constituiria atributo obrigatório. Então, pode-se imaginar dispensável um exame mais acurado desse dever público, em se tratando de magistrados. No entanto, é perceptível a dificuldade em agregar conteúdos mais densos a esse dever, numa considerável quantidade de casos nebulosos. Daí a importância de uma análise focada e percuciente.

É sabido que os peritos, por seu turno, na condição de agentes públicos e de auxiliares do Judiciário, possuem o basilar dever funcional de integridade. Trata-se do dever de obediência a preceitos jurídicos e ético-normativos de honestidade funcional. Cuida-se de um dos deveres mais óbvios e, no entanto, inexplorados, em termos de conteúdos virtuais variáveis.

No tocante ao dever de honestidade funcional, a Lei Geral de Improbidade dele se ocupa explicitamente no art.11, mas sua gênese é constitucional, enraizando-se no dever de obediência à moralidade e probidade administrativas, consoante dicção do art.37, caput e parágrafo 4º, da Magna Carta. A análise tradicional resulta demasiado centrada nas hipóteses de clássica corrupção, na modalidade do enriquecimento ilícito. Sem embargo, é necessário agregar uma coloração um pouco mais complexa a esse dever, tornando-o mais substancioso e denso, dinâmico e extenso. Não se trata apenas de coibir transgressões que adentram a delicada seara do enriquecimento sem causa aparente, ou das solicitações de vantagens econômicas indevidas, embora estas constituam modalidade repugnante e merecedora de incansável sancionamento. Cuida-se, em verdade, de examinar comportamentos menos escancarados e mais sutis, freqüentemente travestidos de roupagem legal, embora desonestos e altamente transgressores da normativa vigente. A via hermenêutica, aqui eleita, revela potencial multiplicidade de graus inerentes à desonestidade profissional, sutilezas e nuanças relevantes, mas conduz, por igual, ao diagnóstico de uma patologia passível de severas sanções administrativas, a saber, a improbidade desenhada na Lei 8.429/92, sem prejuízo aos demais ilícitos típicos ou atípicos que se configurem nas zonas intermediárias ou extremas.

A honestidade ventilada como dever jurídico não se confunde com a correção moral do agir humano. Atos imorais poderão não ser considerados desonestos, na perspectiva jurídica. Trata-se, pois, aqui, de um dever público associado aos princípios da legalidade e moralidade administrativas, nos termos da Carta Magna de 1988. A honestidade profissional é aquela vinculada a preceitos jurídicos, os quais resultam valorados no universo axiológico do sistema constitucional. Tratar de honestidade profissional equivale a mergulhar no exame da ética institucional ou da chamada moral fechada das instituições, espaço propício para a criação e consolidação legal ou jurisprudencial de deveres normativos aos sujeitos [47].

Para dizer uma obviedade, nesse cenário, repita-se: o perito não pode emitir um laudo em troca de vantagem indevida, qualquer que seja sua natureza, econômica ou não, oferecida por uma das partes ou por terceiros, para favorecê-la no processo. Sobre essa hipótese, não pairam dúvidas: a vedação decorre cristalina do ordenamento jurídico. Por isso, nem mesmo se pretende focar uma tal situação, com prioridade, neste trabalho. Indiscutivelmente, pratica crime o perito que se pauta por esse tipo de comportamento, assim como o juiz que vende suas decisões, donde logicamente incorrerão, ambos, na improbidade administrativa. Se um juiz é inexplicavelmente condescendente com um perito firmatário de laudos francamente abusivos e dissonantes da normativa que rege tais atos, acolhendo-os, deve-se especular em torno às razões dessa postura jurisdicional, nos canais competentes. De qualquer modo, a parcialidade do perito, no favorecer uma das partes, pode encontrar raízes ideológicas, sentimentais ou corporativas, qualquer delas a indicar configuração de indícios de improbidade [48].

A desonestidade pode fazer fronteira com outros terrenos, é verdade, e nem sempre haverá de ensejar configuração de ato ímprobo. Forçoso, no entanto, é reconhecer a impossibilidade de o perito atuar de forma parcial, como se fora parte no processo, denotando interesse na causa. Também é vedada ao perito a conduta de imiscuir-se nas áreas reservadas aos juízes, adentrando espaços de valorações subjetivas, investigações, inquirições, porque a perícia não é substitutiva ou sucedânea da função jurisdicional, sendo esta última indelegável. De acordo com jurisprudência encampada pelo extinto Tribunal de Alçada gaúcho, por sua 2ª Câmara Cível, caracteriza desvio de função o comportamento do perito que se aproxima da parcialidade inerente aos movimentos das partes ou busca invadir seara privativa dos juízes, em qualquer caso avançando limites e extrapolando de sua finalidade em prejuízo evidente de sua função auxiliar. Em suma, tanto configura o desvio de função a conduta de o perito assumir ares de juiz, quanto a de assumir ares de parte, qualquer delas a tornar imprestável a perícia. Cuida-se de uma maneira parcial de atuar [49].

A parcialidade traduz, geralmente, desonestidade funcional, ainda que não contenha intencionalidade de enriquecimento ilícito. É possível imaginar que um perito idealista queira promover redistribuição de renda e erradicar a pobreza do país através de laudos contrários às partes dotadas de poderio econômico. Um perito não pode, todavia, emitir laudo em conformidade apenas com seus personalíssimos critérios, para satisfazer seus anseios ideológicos, em detrimento de outros critérios objetivamente exigíveis, ignorados ou desprezados no caso concretamente submetido ao seu crivo. Isso, porque os critérios objetivos omitidos pelo perito deveriam ser tomados em consideração até mesmo ex officio, na resolução justa do problema que lhe fora endereçado pelo juiz e, ipso facto, pela sociedade como um todo. A ideologia pode servir de base para um impulso parcial, ilícito e ímprobo, visto como a conduta do perito revela-se não apenas viciada e prejudicial à parte lesada no processo, mas fundamentalmente perniciosa à boa administração da justiça e ao correto funcionamento do sistema judicial.

4.1.2. Dever de eficiência

Semanticamente, a palavra eficiência designa a capacidade, força e aptidão para obter um determinado efeito, confundindo-se, freqüentemente, com eficácia. É um dos requisitos apuráveis no período de estágio probatório dos funcionários públicos, desde o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, conforme Lei número 1.711, de 28 de outubro de 1952, art.15, parágrafo 1º, IV [50].

Hodiernamente, sabe-se que a eficiência, erigida à categoria de princípio constitucional que preside a Administração Pública (art.37, caput, CF), traduz uma série de deveres explícitos e implícitos aos agentes públicos, dentre os quais destacam-se o comprometimento com a busca de resultados concretos, a satisfação de requisitos idôneos na realização de condutas, bem assim a adoção de medidas potencialmente eficazes próprias do padrão de bom gestor ou funcionário. A eficiência é um requisito de aferição do merecimento funcional e da qualidade dos serviços prestados pelos agentes públicos, sejam aqueles reputados como permanentes no setor público, sejam os que estiverem investidos apenas transitoriamente das funções públicas.

Observa-se que a eficiência é um parâmetro de responsabilidade dos agentes públicos em geral. Não se pode abdicar do exame em torno ao atendimento ao dever de eficiência funcional, visto que seu rompimento traduz suporte aos mais variados tipos de responsabilidade, desde a disciplinar até a penal. Tal como ocorre com a desonestidade, que comporta graus variáveis de intensidade e conteúdos, também a ineficiência perpassa numerosos estágios axiológicos, de tal sorte que sua configuração há de ser aquilatada de modo fundamentado e criterioso, com o escalonamento necessário de suas faixas de incidência [51].

Se resulta ser ímprobo um perito que vende seus laudos, e sobre isso não há dúvida, diante da previsão expressa da própria Lei Geral de Improbidade [52], também o é o intoleravelmente incompetente, que incorre em erros crassos, grosseiros, teratológicos. Cuida-se, não obstante, de situações freqüentemente vizinhas: o erro crasso pode servir de fachada para a desonestidade mais abjeta. Ambientes dominados por ineficiência endêmica são, não raramente, infectados com espantosa naturalidade pelo vírus da corrupção [53].

Não raro, a desculpa do profissional corrupto ou desonesto é a incursão no erro grosseiro, como se houvesse liberdade para tanto; por isso, resulta freqüentemente patética a assertiva de que o sujeito não sabia, simplesmente errou e não poderia ser punido pela transgressão, quando todos os indícios e provas apontam uma indesculpável e absurda desídia funcional, merecedora de todas as censuras. Não é por outro motivo, vale insistir, que se percebe a íntima relação entre ambientes descontrolados, dominados por ineficiência crônica, e ambientes desonestos; portanto, observa-se que a desonestidade potencializa-se em meio ao descalabro e à ineficiência disseminada e tem múltiplas vertentes, desde a parcialidade, até a virtual convergência de interesses, profissionais ou de outra índole, entre o perito e o tipo de problema que lhe é apresentado para resolver.

Assim, erros indesculpáveis podem vir acobertados pelo manto da suposta ignorância ou amparados pela alegação de obediência a critério inexistente na legislação de regência da perícia, mas também podem constituir fachadas confortáveis para outras transgressões ocultas. Por isso mesmo, a Lei 8.429/92 cuida não apenas de atos desonestos, como já tive oportunidade de aduzir, mas também de atos intoleravelmente incompetentes, produto da desídia de funcionários indignos de permanecerem no setor público ou de nele atuarem mesmo provisoriamente [54].

Tanto é indigno o corrupto, o desonesto, quanto o inepto, aquele que é absolutamente incapaz de reunir condições mínimas para satisfazer os elevados encargos de suas atribuições públicas. O funcionário gravemente negligente e incapaz de exercer suas funções representa, não raro, como tive ocasião de referir em várias oportunidades, no contexto das transgressões praticadas no setor público, uma erva daninha tão potencializada quanto o próprio corrupto. Esse, sendo tecnicamente preparado, trará gigantescos prejuízos ao Estado naqueles casos em que estiver comprado. Porém, o outro, que resulta ser absolutamente inepto e despreparado, traz diariamente prejuízos, em todos seus atos e omissões, à sociedade e ao Estado, além de facilitar e incentivar a multiplicação de corruptos. Parece-me chocante a espantosa indiferença que domina significativa parcela de agentes públicos, diante dos resultados necessários à satisfação dos interesses gerais da sociedade. Esse sentimento de desprezo e de indiferença para com o outro – aqui simbolizado no jurisdicionado e nos valores imanentes à gestão do sistema judicial – pode ser tão nefasto quanto a intenção transgressora, em termos de prejuízos concretos.

A proibição de erros grosseiros, inaceitáveis, irrazoáveis, é, por si só, decorrente da necessidade de se impor castigo ao iter pertinente à desonestidade funcional em patamares mais acentuados. Há uma antecipação punitiva em busca da repressão aos ambientes de descalabro e descontrole no setor público. A Lei Geral de Improbidade pune o mau gestor público lato sensu, coibindo condutas perigosas aos valores relacionados com a honestidade no setor público, mas também resultam reprimidos comportamentos transgressores altamente nocivos ao valor da eficiência funcional mínima.

A gravidade do comportamento que reivindica o erro grosseiro até pode não ser comparável à de uma transgressão francamente desonesta, produto de um atuar doloso, voltada ao enriquecimento ilícito. Porém, o processo tipificatório regulará a incidência da proporcionalidade, ditando a funcionalidade da norma repressiva, em sintonia com a culpabilidade do agente e com o tipo de ilícito cometido. O importante é notar que ambas transgressões podem e devem ser castigadas: (a) as que buscam enriquecimento ilícito; (b) as que evidenciam, na melhor das hipóteses, erros grosseiros indesculpáveis. Essa aproximação entre tipos dolosos e culposos já é uma realidade, também, no Direito Penal, em suas vertentes funcionalistas e mesmo na liberdade de conformação legislativa dos ilícitos [55].

4.2. Sinais exteriores da improbidade e do elemento subjetivo da conduta: um guia para o diagnóstico da enfermidade

O desvio de poder ímprobo, no contexto aqui desenhado, é aquele que traduz a discrepância entre o exercício da função pública e a finalidade ou substrato lógico-normativo que lhe dá sustentação. Esse tipo de desvio tem natureza objetiva e transcende o exame das intenções específicas do funcionário, vindo à tona a importância das obrigações e de suas conexões com a razoabilidade e proporcionalidade. Ao contrário do desvio de finalidade, que é espécie de desvio de poder e pressupõe atuações intencionais, em busca de objetivos específicos, o gênero comporta uma falta de correspondência entre o ato praticado e os deveres que norteiam a competência funcional do agente público. A intenção, no desvio de poder, é a coincidência dos elementos volitivo e cognitivo com o desprezo pelos deveres de ofício, seja esse por ação, ou por omissão. O dolo administrativo pode absorver, nesses domínios tão rígidos, grande parcela dos elementos que ordinariamente integram figuras culposas. A subjetividade do agente, ademais, emerge dos elementos objetivos de sua conduta, porque são esses últimos que revelam e indicam o formato real da intencionalidade do sujeito, invertendo o ônus probatório.

O laudo viciado por desvio de poder discrepa, de forma irracional, de situações semelhantes, tornando-se um falso paradigma, sem bases técnicas ou científicas, não raro adentrando o campo do absurdo ou da teratologia. É possível simplesmente analisar precedentes e efetuar comparações, de modo a desmascarar o laudo e escancarar sua fragilidade no contexto normativo. Resulta viável, também, testar o raciocínio, a lógica e os critérios do perito, para fins de análise das conseqüências daí decorrentes em casos similares, visualizando como se comportaria o sistema judicial em situações análogas, com a incidência dos critérios eleitos pelo perito.

Uma decisão arbitrária não tem vocação universal, nem mesmo geral, caracterizando-se, isto sim, como totalmente particular e casuísta, uma vez que se destina a violar direitos no caso concreto e jamais a estabelecer paradigmas justos e racionais. Daí por que emerge a importância de se analisarem os critérios eleitos pelo perito, em sintonia com as regras técnicas vigentes e predominantes, bem assim, quando houver conexão com apuração de valores por serviços prestados, com as regras de mercado, cujos conteúdos e contornos devem, no mínimo, ser ventilados e discutidos no laudo pericial [56].

Com efeito, é curioso observar que determinados laudos periciais, embora mergulhem na análise de valores por serviços prestados ou contratados, cujo arbitramento compete ao juiz fixar, simplesmente ignoram ou desprezam os parâmetros de mercado. Repare-se que as leis do mercado, que disciplinam a ordem econômica, servem de balizamento obrigatório para laudos que repercutem em dívidas, esteja ou não o Poder Público no pólo passivo. A lei geral que veda o enriquecimento sem justa causa, como se sabe, encontra suas raízes no ambiente de mercado, onde se define o que é "justo" ou "injusto" em termos de valores contratuais ou negociais. Ignorar ou repudiar a obrigatória análise das leis vigentes no mercado, para arbitrar determinados valores, em razão de serviços ou contratos, configura sério indício de grave ilicitude comportamental do perito.

Veja-se que um laudo pericial deve ser, por excelência, um juízo técnico fundamentado, balizado por regramento normalmente científico, racionalmente rastreável, o que supõe uma pretensão à universalidade, dentro de expectativas legítimas por isonomia e justiça, diante da interferência que produz no entendimento do juiz. Quando o laudo se baseia em concepções estritamente subjetivas e obscuras, alicerçadas em percepções privativas do perito acerca de valores totalmente abertos ou indecifráveis, o ato deixa de ser técnico e passa a ostentar outra funcionalidade, extremamente discricionária, acobertando uma de duas alternativas: (a) um despreparo profissional intolerável em um perito; (b) a parcialidade do perito em relação ao objeto de sua peritagem. Em qualquer delas, não obstante, há desvio de poder, sendo que, no segundo caso, ele ganha formas que vão desde a corrupção até os favorecimentos contaminados por convicções ideológicas ou corporativas [57].

Deve-se adotar o raciocínio baseado na analogia, nos precedentes e nas conseqüências de um laudo. Se um dado problema nunca é resolvido à luz de determinados critérios, e só num certo e específico caso concreto ou apenas por um determinado perito vem a sê-lo, resulta óbvia e procedente a preocupação em torno do princípio isonômico e do princípio que veda a arbitrariedade dos Poderes Públicos, ambos ligados ao devido processo legal. O sistema judicial não é casa de apostas, onde possam os atores mover-se pela sorte da distribuição do foro e dos entendimentos completamente aleatórios de peritos, juízes e outros personagens. Um laudo que não resiste às críticas mais elementares, não subsiste diante de balizamentos técnicos aplicáveis ao caso e, nesse contexto, destoa por completo de um conjunto significativo de precedentes análogos, é um laudo vazio e precário, revelador de uma transgressão importante. Um ato desprovido de compromisso com as conseqüências que dele legitimamente se espera, é um ato que agride a ordem normativa, porque afeta os pilares da segurança jurídica. A inconsistência técnica do laudo, quando beira ou adentra o arbítrio ou a incontrolável subjetividade de seu subscritor traduzem sintoma de enorme relevância, justamente por indicarem uma agressão emblemática ao que há de mais peculiar a esse ato institucional: sua natureza essencialmente técnica e, portanto, racional, compromissada com legítimas expectativas inerentes à segurança das relações.

Atente-se para a existência de notáveis sinais exteriores de desvio de poder quando da presença de interesses importantes em jogo. A falta de atributos técnicos, a penetração no campo da subjetividade desenfreada, a ausência de precedentes e de parâmetros de razoabilidade, a produção de conseqüências absurdas, todos esses traços são indicativos de uma ilicitude digna de atenção por parte das autoridades fiscalizadoras. Tais traços apontam para a presença de sinais inequívocos de desvio de poder. Por isso, quando um laudo vem à tona despido de lastro técnico e com tais características negativas, é de se perguntar: o que o perito ganharia ou poderia ganhar, em tese, com isso? Essa é uma especulação interessante para avaliação da improbidade administrativa, embora seja dispensável para outros fins, v.g, controle de nulidade, desencadeamento de poder disciplinar do juiz em relação ao perito, entre outras.

Não se trata de buscar o reconhecimento da corrupção, sempre que houver indícios de ilicitude num laudo, mas de aprofundar, mais ainda, o exame do desvio de poder, na base das presunções dominadas pela lógica do razoável. Quando alguém erra em desfavor de terceiro, o sinal nem sempre aparece tão claro; porém, quando o erro acaba por beneficiar fortemente quem errou, há que se concluir pela presença de mais um sinal ilustrativo do desvio de poder de natureza ímproba, independentemente de comprovações cabais acerca da intencionalidade final do sujeito, eis que essa, na perspectiva aqui delineada, interessa ao Direito Penal, não ao Direito Administrativo Sancionador.

A evidência de uma possível ilicitude ocorre quando um laudo é francamente dissociado de critérios técnicos aceitáveis e ainda gera uma curiosa associação dos honorários do perito com o montante de recursos envolvidos nos efeitos que produz, uma vez homologado pelo juízo. Consiste em um exercício muito simples de percepção, demandando, em geral, cálculos matemáticos. É necessário salientar que laudos abusivos podem coincidir com pesados montantes de recursos econômicos em jogo. É menos usual constatar laudos teratológicos ou arbitrários em processos despidos de interesses econômicos vultosos. Então, quando há grandes interesses econômicos, a atenção dos juízes e dos agentes do Ministério Público, sem falar nos advogados, há que ser redobrada.

Um sinal interessante, que induz à caracterização de um laudo abusivo, em se tratando de aquilatar os interesses econômicos em jogo, diz respeito à configuração do suporte do enriquecimento sem justa causa, ou desproporcional, de uma parte (beneficiária do laudo) em detrimento de outra. Um laudo ilícito, confeccionado com desvio de poder, sem suporte em regras técnicas e racionais, pode refletir o enriquecimento sem justa causa de alguém. Cuida-se de uma equação aparentemente singela: o laudo gera o enriquecimento vertiginoso, sem justa causa, de uma parte em detrimento da outra. Independentemente de o perito ser beneficiário formal de honorários, o certo é que a desproporção no enriquecimento de uma parte em detrimento de outra é sinal gritante de virtual desvio de poder. Eventual enriquecimento do perito, se houver, pode ocorrer por caminhos ocultos, nem sempre ao alcance do olhar fiscalizatório.

É claro que dificilmente haverá apenas uma simples e ordinária negligência do perito, no sentido clássico da expressão, quando presente essa hipótese do enriquecimento sem justa causa de uma pessoa em detrimento de outra, à custa de um laudo arbitrário e francamente abusivo. Não se pode presumir que as pessoas sejam ingênuas, mormente profissionais que estejam a atuar num processo que envolva interesses econômicos significativos. Ademais, como referi, um perito tem obrigação de conhecer, necessariamente, certos níveis mínimos de regras para o desempenho de suas elevadas e nobres funções.

A investigação das intenções – eis a clássica via penal em teste - não é, no universo que examino, o único caminho para desvendar a natureza ilícita de um laudo e suas respectivas responsabilidades, nem mesmo o melhor deles. Já mencionei as peculiaridades do dolo administrativo, ordinariamente travestido de erro grosseiro, na modalidade do desvio de poder, que dispensa investigações acerca do comportamento doloso em seu conteúdo clássico, tipicamente penal. Em tal cenário, emerge a culpa grave, que faz fronteira muito estreita com o dolo, daí por que as parecenças naturais e os laços íntimos. Porém, repita-se, o dolo administrativo ganha suas nuanças, relativamente ao dolo penal, em face das peculiaridades das figuras típicas contempladas na Lei 8.429/92, no bojo das relações de sujeição especial. O que diferencia uma categoria da outra é, a final, o próprio tipo sancionador e a especialidade da relação de sujeição mantida pelo Estado com o destinatário de suas normas. Daí por que, vale insistir, na improbidade administrativa o dolo é estruturalmente mais aberto do que o congênere da seara penal, quando o sistema penal cuida dos crimes contra a Administração Pública.

O prosseguimento no exame mais profundo da subjetividade do agente pode até ser uma alternativa, mas certamente não exclui a análise mais imediata e eficaz do desvio de poder, inclusive no que concerne ao revestimento da improbidade administrativa. O referido aprofundamento pode ser interessante na via penal, ou mesmo pode emergir com espantosa naturalidade no bojo de uma instrução processual em investigação ou ação de improbidade, mas não transparece como indispensável ao início das investigações ou, inclusive, para o ajuizamento de ação civil.

Cabe um registro mais específico em relação ao setor público, no qual os laudos abusivos, proferidos com prejuízo ao erário, ainda indicam, como sinal exterior freqüente, o comportamento negligente de profissionais da advocacia pública, a concorrer à causação do ato, por ação ou omissão. Em tais casos, o Poder Público fica, não raro, desprovido de defesa adequada e o laudo costuma transitar em julgado já na primeira instância ou no próprio tribunal local, quando houver impugnação ou discussão eficaz em torno ao seu conteúdo.

Se o montante dos interesses econômicos for muito significativo, será inevitável a tramitação do feito envolvendo o Poder Público junto às instâncias superiores, o que pode produzir desdobramentos peculiares. Em tal caso, é possível que algum dos atores no processo plante vícios ou irregularidades, desde a origem, com deslealdade institucional, em prejuízo ao Poder Público, para que as instâncias superiores não consigam exercer os controles adequados. O plantio desses vícios é um sinal representativo, que há de ser levado em consideração. Com os vícios devidamente instalados, o processo judicial pode percorrer todas as instâncias imagináveis, mas possivelmente haverá óbice de natureza formal ou processual para a correta discussão dos critérios adotados no laudo pericial. Nesse contexto, o Direito Processual se vê como ferramenta de blindagem ao exame de aspectos substanciais, impedindo a análise dos vícios intrínsecos a esses laudos ilícitos. Assim sendo, esse laudo acaba sendo consumado, chancelado formalmente pelo Judiciário, em vista de critérios jurídico-processuais, mesmo que sua confecção seja produto de ações criminosas ou ímprobas.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Fábio Medina Osório

Advogado Geral da União. Advogado. Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e nos cursos de pós-graduação da Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (RS). Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madrid, pela Capes. Mestre em Direito Público pela UFRGS. Ex-membro do Ministério Público do Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDINA OSÓRIO, Fábio. Improbidade administrativa:: reflexões sobre laudos periciais ilegais e desvio de poder em face da Lei federal nº 8.429/92. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 880, 30 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7642. Acesso em: 28 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos