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Evolução histórica da Previdência Social e os direitos fundamentais

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12/06/2005 às 00:00
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Todo o processo evolutivo da Previdência Social é fruto de muita luta das classes sociais menos favorecidas, que sempre estiveram à mercê dos riscos sociais, e também do desenvolvimento da solidariedade.

SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Os primórdios da proteção social 2.1 A preocupação inerente ao homem com o seu bem-estar. 2.2 O embrião dos mecanismos de proteção social. 2.3 A influência religiosa como um dos fatores determinantes para a intromissão estatal na criação dos mecanismos de proteção social. 2.4 A estabilidade do estado como propulsor da Previdência Social – outro fator determinante. 3. Os principais marcos evolutivos da proteção social. 3.1 Plano de proteção do Chanceler Otto Von Bismarck na Alemanha (1883) até o final da I Grande Guerra Mundial. 3.2 Do Tratado de Versalhes até o término da II Guerra Mundial. 3.3 Do fim da II Guerra Mundial até os dias atuais – A influência do Plano Beveridge. 4. A proteção social e a evolução dos direitos e garantias individuais e seus limites. 4.1 A evolução/classificação histórica dos direitos fundamentais (os direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira gerações) 4.2 A importância do constitucionalismo social e o seu núcleo essencial de proteção 4.3 Os limites da concreção das prestações positivas pelo Estado. 5. A proteção social no Brasil. 5.1 A Constituição Imperial de 1824 5.2 A Constituição Republicana de 1891 5.2.1 As caixas e os institutos de aposentadorias e pensões. 5.3 As Constituições de 1934 e 1937 5.4 A Constituição de 1946. 5.5 A Constituição de 1967, com a Emenda n° 1, de 1969. A Constituição Federal de 1988 e o fim delineado à Previdência Social. 7. Conclusão


1.INTRODUÇÃO

Na história da humanidade, é relativamente recente o estabelecimento em nível normativo da proteção aos direitos sociais. A preocupação estatal com a proteção social [01] de seus cidadãos faz parte integrante, em sua acepção mais intensa, da grande evolução ocorrida no século passado.

Buscar-se-á ressaltar, nas limitadas linhas deste trabalho, os mais relevantes marcos evolutivos do crescimento e ampliação das proteções sociais em face das necessidades advindas das vicissitudes da vida em sociedade, dando especial destaque para a evolução da proteção social no Brasil.

É de se ressaltar que a importância do tema não decorre apenas de seu aspecto histórico, embora seja de bom alvitre salientar que o método histórico é por vezes utilizado como caminho para a interpretação das normas jurídicas, pois ainda que não seja o método mais festejado [02], tende a ser proveitoso para o hermeneuta.

A principal virtude de se examinar o curso da evolução histórica da previdência social está na possibilidade de se conhecer melhor os institutos vigentes no presente, a partir de elementos históricos e, igualmente, melhor arquitetar as bases para o futuro, razão pela qual impõe-se perscrutar o passado, a fim de acompanhar o desenrolar dos acontecimentos, aproveitar os acertos dos projetos que culminaram em boas conquistas e, ao mesmo tempo, evitar os equívocos de experiências desastradas.

Nesse mesmo sentido caminha o entendimento de Sérgio Pinto Martins, ao citar a lição de Waldemar Ferreira, asseverando que "nenhum jurista pode dispensar o contingente do passado a fim de bem compreender as instituições jurídicas dos dias atuais". [03]

Não se tem dúvida que o exame do passado pode fornecer valiosos mecanismos para uma melhor interpretação, ainda que se tenha por exame uma nova ordem jurídica constituída, como, aliás, ensina Wagner Balera [04], in verbis:

O estudo da seguridade social, assentado num tempo determinado – o presente – não inibe o nosso interesse acerca da história constitucional que, embora seja disciplina não-jurídica (no entender de Santi Romano), nos fornece válidos critérios de interpretação da nova ordem constitucional.

Evidencia-se, assim, a grande importância e o imprescindível dever de se descrever e analisar a marcha evolutiva da proteção social. Mas é mister destacar também o papel que tem ocupado os mecanismos de proteção social nas sociedades ditas modernas, proteção essa que ganha status de direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, consagrados como verdadeiros direitos subjetivos.

Ademais, não se pode olvidar que tais direitos e garantias fundamentais, por conta do constitucionalismo moderno, têm adquirido força normativa suprema de mais alto grau. É o caso de nosso ordenamento jurídico constitucional que qualifica os direitos e garantias fundamentais como cláusulas imutáveis, dentre os quais, sem dúvida, incluem-se os direitos sociais, consoante previsto no art. 60, §4º, IV, da Constituição Federal.

Apesar desse cume normativo atingido pelos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, onde, repita-se, os direitos sociais têm assento assegurado, por necessitarem, em regra, de prestações positivas dos entes públicos, exigem cada vez mais recursos disponíveis para seu atendimento.

Desta feita, vale conferir até que ponto podem os entes públicos deixar de efetivar a concreção das normas constitucionais que disciplinam os direitos sociais, sem que exista ofensa aos direitos subjetivos dos indivíduos protegidos, sob o manto da inexistência de recursos públicos suficientes.

Assim, o enfoque principal do presente trabalho prende-se a descrever a evolução histórica da proteção social cotejando com o desenvolver do âmbito de proteção dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, tomando-se como parâmetro as diversas constituições brasileiras, a fim de que se possa aquilatar qual o grau quantitativo e qualitativo de proteção social a que se galgou.


2.OS PRIMÓRDIOS DA PROTEÇÃO SOCIAL

Com o desenvolvimento da Humanidade aflorou e cresceu dia após dia a preocupação em se proteger os indivíduos das contingências sociais [05] geradoras de necessidades sociais. A cada passo dado no percurso da história da Humanidade desenvolveram-se técnicas de proteção social, sempre tendo em conta a realidade sócio-econômica de cada povo, de molde a mitigar as situações de necessidade social.

Nesse desenvolver ocorrido ao longo de nossa história é possível anotar os traços evolutivos significantes de cada sistema protetivo, na medida em que se avalia o grau de abrangência oferecido aos indivíduos em face dos riscos sociais – contingências sociais – mais constantes em cada momento.

2.1 A PREOCUPAÇÃO INERENTE AO HOMEM COM O SEU BEM-ESTAR

A necessidade do homem, desde a pré-história, de se reunir em grupos para compartilhar a caça, a pesca e de se defender dos infortúnios, bem demonstra a importância de se instituir formas de proteção.

A menção à época pré-histórica, ainda que se reconheça a inexistência de verdadeiros mecanismos de proteção social, já que a proteção em si vinculava-se apenas e tão-somente na simples tolerância da convivência em grupo e, quando muito, na estocagem de alimentos para serem consumidos no futuro, faz notar que a preocupação do homem com seu destino e bem-estar é inerente a pessoa humana.

Pode-se afirmar que as organizações precárias da origem dos tempos baseavam-se simplesmente no instinto da sobrevivência, porém, não se pode negar que existia a conjugação de esforços para a melhoria ou facilitação das condições de vida de cada um dos indivíduos formadores do grupo.

De toda sorte, como salienta Mozart Victor Russomano, não se pode afirmar que o início da Previdência Social seja o do momento em que o homem guardou o alimento para o dia seguinte, na medida em que o pano de fundo da Previdência Social "é o sentimento universal de solidariedade entre os homens, ante as pungentes aflições de alguns e generosa sensibilidade de muitos". [06]

Sendo assim, não é necessário investir profundamente nos mecanismos de proteção das sociedades primitivas, mas apenas frisar que mesmo nos idos mais remotos das civilizações a preocupação com o bem-estar do presente e do futuro rondava os círculos sociais.

Assim, desde o nascimento da Humanidade já se pode notar a preocupação dos indivíduos em criar mecanismos de proteção contra os infortúnios. Contudo, de pouca ou nenhuma valia para a compreensão dos institutos previdenciários vigentes no presente o estudo das forças que levaram a organização do homem em sociedade, servindo só para desvelar a preocupação do homem com seu bem-estar.

2.2 O EMBRIÃO DOS MECANISMOS DE PROTEÇÃO SOCIAL

Nesse passo, à medida que se organizavam os grupamentos humanos, conseqüentemente evoluíam e ganhavam maior abrangência os mecanismos de salvaguarda contra os riscos porventura existentes em cada época.

Não obstante a maior amplitude e eficiência dos meios de proteção aos riscos sociais da sociedade moderna, os problemas sociais atuais são maiores que os inicialmente concebidos, porquanto decorrentes de fatores de difícil solução, como a explosão demográfica, a péssima distribuição de renda, o avanço tecnológico da indústria que extingue dia após dia o número de postos de trabalho, sem contar a globalização que torna vulnerável e suscetível a infortúnios inesperados qualquer sociedade mesmo dos rincões mais longínquos.

Verifica-se, pois, por mais paradoxal que possa parecer, que a proteção social atualmente é tão difícil e custosa como outrora.

De início convém fazer menção aos primeiros mecanismos de proteção articulados pelo homem que apresentavam algum nível de organização, de inspiração mutualista [07] já que voltados ao auxílio recíproco dos seus membros.

A doutrina refere-se ao Talmud, ao Código de Hamurabi e ao Código de Manu, como as primeiras ordenações normativas a instituir métodos de proteção contra os infortúnios, sendo que este último "continha disposições, acerca dos empréstimos realizados ao preço dos riscos. Os fenícios, por sua vez, adotaram idênticas normas dos hindus, difundidas mais tarde na Grécia". [08]

Da Grécia para Roma surgiram as associações denominadas de collegia ou sadalitia formadas por pequenos produtores e artesãos livres, igualmente, com caráter mutualista, constituídas de no mínimo três indivíduos que contribuíam periodicamente para um fundo comum, cuja destinação principal estava voltada para os custos dos funerais dos seus associados. [09]

Já na Idade Média desenvolveram-se e espalharam-se as associações de inspiração mutualista, mesmo em ambientes políticos, econômicos e sociais distintos, dentre as quais, vale destacar as guildas de origem germânica.

Tais instituições, embora tenham se proliferado não atingiram um nível de proteção universal, pelo contrário, mesmo quando subvencionados pelo Estado, em regra, limitava-se o seu espectro de cobertura a certos grupos que atuavam em atividades de grande interesse da respectiva sociedade interessada, como marinheiros, mineiros, militares, funcionários dos ministérios etc. Além disso, referidas instituições não tinham acesso e o domínio técnico e jurídico do contrato de seguro, não ofertando, por isso, nenhuma segurança quanto ao atendimento de seus filiados em um momento de intensa necessidade social.

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Assim, muito embora os primeiros contratos de seguros privados precedam ao próprio nascimento da assistência social pública, segundo Augusto Venturi, somente muito tempo depois é que se passou a cobrir riscos sociais, quando na Inglaterra, no século XIX, surgiram as primeiras empresas que se dedicaram à instituição de seguros populares destinados à classe trabalhadora. [10]

Surge, neste ínterim, um dos principais marcos evolutivos em termos de proteção social por intervenção do Estado, já que ao caráter mutualista e privado dos sistemas até então vigentes soma-se o de cunho assistencial e público, decorrente da influência manifesta da doutrina Cristã e "como medida de ordem pública que poderia ser ameaçada pela fome e pela miséria de grandes grupos de excluídos". [11]

A Igreja Católica, nesse período, representava o elo entre Deus e os seres humanos e suas instituições, inclusive os Estados, daí a sua notável influência em todos os meandros da sociedade da época, sendo prudente e relevante perpassar o ponto da influência religiosa no que tange a evolução da proteção social, ainda que seja de forma meteórica.

2.3 A INFLUÊNCIA RELIGIOSA COMO UM DOS FATORES DETERMINANTES PARA A INTERFERÊNCIA ESTATAL NA CRIAÇÃO DOS MECANISMOS DE PROTEÇÃO SOCIAL

Dos tempos mais remotos da evolução da sociedade humana até o final do século XVI pouco se evoluiu em matéria de proteção social. Isso, ao nosso sentir, deve-se ao fato de que a Humanidade passava por grandes avanços, mudanças e acomodações. A própria doutrina Cristã ainda se expandia, firmando seus dogmas e solidificando seus mais altos valores na consciência dos povos do ocidente.

De toda sorte, após a consolidação da Igreja Católica, ganhou relevo a influência religiosa na conduta das pessoas naturais e do próprio Estado, vez que à época a Igreja não só acalentava as almas dos cidadãos como também influenciava de maneira decisiva as manifestações políticas.

No entanto, não se pode desprezar o fato de que ao componente religioso sobrepujava os interesses estatais, voltados a manutenção de bases estruturais de exploração e opressão, até porque a caridade religiosa tinha como base apenas o dever moral.

Aliava-se, assim, por comodidade e conveniência, o dever caridoso do católico para com os incapacitados e indigentes e o interesse dos Estados absolutistas em se manter intactos os fundamentos dos abusos e exploração praticados.

Nesse contexto, nasce a história da Proteção Social no mundo ocidental.

Isso, no entanto, não importa dizer que a doutrina Cristã tenha servido apenas para a manutenção do modelo de Estado Ocidental da época medieval, mas tão-somente que se conjugavam os interesses em prol de finalidades diversas.

Como, a toda evidência, não se estava sob a égide dos Estados laicos, a assistência social pública aos carentes e indigentes, ganhou status jurídico, com a edição de leis, por toda a Europa Ocidental, de cunho nitidamente assistencial no decorrer do século XVII, tendo como precursora a chamada Lei dos Pobres Londrina de 1601 [12], que teve impulso, inclusive, numa das mais graves carestias da história inglesa.

A lei londrina – Poor Relief Act –, instituiu contribuição obrigatória determinando a nomeação, em cada paróquia, de dois ou mais "overseers of the poor" encarregados de recolher fundos de todos os que estivessem em condições de contribuir, destinados: a) viabilizar a obtenção de emprego para as crianças pobres por meio da aprendizagem, que poderia ser obrigatória até os 24 anos para os varões e até 21 anos para as mulheres; b) ao ensinamento do trabalho para os pobres que não tinham nenhuma especialização; c) ao atendimento dos inválidos em geral. [13]

Surgia a primeira disciplina jurídica de proteção social, por força de dogmas religiosos, de molde a ser a precursora da previdência social como concebida na atualidade. Nota-se, no entanto, que a preocupação estatal com a assistência social pública precede a de previdência social, como concebida na atual Carta Magna, na medida em que não se assegurava a cobertura aos riscos inerentes às atividades profissionais ou econômicas.

A importância de tal marco legislativo na história da Previdência Social reside na atribuição do dever do Estado em gerir a condução da organização e efetivação dos serviços do programa de assistência social.

Não é por outra razão que Mozart Victor Russomano [14] afirma que:

Essa "oficialização da caridade" – como foi dito, certa vez – tem importância excepcional: colocou o Estado na posição de órgão prestador de assistência àqueles que – por idade, saúde e deficiência congênita ou adquirida – não tenham meios de garantir sua própria subsistência. A assistência oficial e pública, prestada através de órgãos especiais do Estado, é o marco da institucionalização do sistema de seguros privados e do mutualismo em entidades administrativas. [...] Hoje compreende-se que nesse passo estava implícita a investida de nossa época, no sentido de entender os benefícios e serviços da Previdência Social à totalidade dos integrantes da comunidade nacional, a expensas, exclusivamente, do Estado, e não apenas aos associados inscritos nas entidades de Previdência Social. Dessa forma, podemos concluir dizendo: naquele momento distante, no princípio do século XVII, começou, na verdade, a história da Previdência Social.

Com efeito, não obstante a eficácia prática das leis editadas no século XVII voltadas ao campo da assistência social pública, contestadas por alguns [15], representam um marco expressivo na evolução da previdência social, cuja concreção decorre também da influência religiosa. Influência religiosa, por seu turno, que não se limitou apenas a esse período, tendo lastreado sua doutrina sobre as evoluções mais recentes dos séculos XIX e XX.

2.4 A ESTABILIDADE DO ESTADO COMO PROPULSOR DA PREVIDÊNCIA SOCIAL – OUTRO FATOR DETERMINANTE.

À medida que o movimento humanista passou a exercer influência nas sociedades ocidentais, vieram, concomitantemente, as pressões sobre os Estados absolutistas, calcados em forças divinas, para conduzir suas ordenações jurídicas de forma a proteger os indivíduos contra as intervenções e agressões do próprio Estado e da Igreja.

A sociedade ocidental passou a contar com novos atores, que não a nobreza, o clero e o povo. A burguesia surgia como nova classe social, dotada de grande poder econômico, em face de seu grande sucesso decorrente da atividade comercial empreendida e, posteriormente, da atividade industrial. Essa nova composição social exigiu a superação da ordem medieval, culminando, pois, no surgimento dos modernos Estados Nacionais laicos e soberanos. [16]

Dessa nova conjectura social, surgem os instrumentos normativos mais próximos do pensamento liberal, dentre os quais, podem ser citados o Petition of Right de 1628, Hábeas Corpus, de 1679, e o Bill of Rights, de 1689, concretizando liberdades negativas em favor dos indivíduos.

Após o período de consolidação do poder econômico da burguesia, adveio a revolução industrial, período em que a sociedade experimentou um desenvolvimento econômico sem precedentes, beneficiando e fortalecendo ainda mais a classe burguesa, que impunha todo seu poder econômico sob a classe trabalhadora.

Diante disso, a classe trabalhadora foi submetida a um regime de exploração sem igual, pois ficava inteiramente à mercê do poder econômico da nova classe dominante, porquanto as concepções liberais da época destinavam ao Estado uma posição inerte, de mero espectador das relações firmadas entre os particulares, sem estabelecer quaisquer limites à autonomia dos indivíduos. [17]

Mesmo com os ideais motivadores da Revolução Francesa identificando uma dívida social da sociedade para com os menos favorecidos, prescrevendo a manutenção dos mecanismos de proteção consubstanciados nos socorros públicos, estava-se ainda no estágio da assistência pública.

Os menos favorecidos não detinham instrumentos jurídicos capazes de promover a melhoria das condições de vida, já que os direitos fundamentais restringiam-se as prestações negativas, as chamadas liberdades públicas. Sem mecanismos eficientes para compelir o Estado ao cumprimento das prestações positivas, ainda que meramente assistenciais, ficavam reféns da idiossincrasia de cada governo.

Os trabalhadores tinham que se acobertar por conta própria, por meio de seguros privados, ou valer-se das associações de classe, sem qualquer ingerência estatal.

Dessa liberdade extrema resultou a ineficiência.

Mattia Persiani ressalta enfaticamente essa ineficiência dos mecanismos de proteção social da época frente as novas estruturas econômicas e sociais decorrentes da industrialização, justamente em razão do empobrecimento e dos baixos salários da classe trabalhadora, praticamente aniquilando a viabilidade e eficiência da tradicional solidariedade familiar e da beneficência pública e privada, atingido até a solidariedade profissional em virtude da extinção de ofícios tradicionais. [18]

Na realidade, o Estado compreendia que os problemas sociais decorrentes das novas relações econômicas trazidas pela revolução industrial deveriam ser resolvidos pela própria classe trabalhadora e seus empregadores, tendo o liberalismo do século XIX deixado vesgos os dirigentes no que toca aos problemas sociais ligados ao trabalho.

Os homens eram concebidos como livres e iguais, a ponto de poderem isoladamente proteger-se contra qualquer tipo de infortúnio, inclusive os decorrentes das relações de trabalho.

Aníbal Fernandes e Sérgio Pardal Freudenthal [19] bem reforçam tal concepção liberal ao afirmarem que:

A indústria, a liberdade econômica, o laissez-faire-laissez-passer, o tal liberalismo, enfim, significam a vinda para as cidades da massa camponesa, engajada no trabalho industrial, a utilização da mão-de-obra, sem os freios e contrapesos do que hoje constituem a organizam sindical e a legislação. Os homens são, no plano jurídico-formal, livres e iguais. Na prática, é o inverso.

De toda sorte, apesar de a classe trabalhadora ter tentado aprimorar as associações mutualistas, as condições deploráveis do mercado de trabalho não permitiram o desenvolvimento das referidas instituições sustentadas apenas às custas das contribuições dos trabalhadores.

Acontece que, só os trabalhadores com mais altos salários, em regra a minoria, conseguiam arcar com os pagamentos periódicos das contribuições, ficando, portanto, à mercê de sua própria sorte a grande massa de proletariados. Enquanto isso, os recursos dos fundos mutualistas que ainda se sustentavam mitigavam e os infortúnios sociais cresciam em quantidade geometricamente oposta, aumentando cada vez mais a fila dos miseráveis.

Os fundos privados mutualistas tornaram-se áridos, sem que pudessem atender as expectativas de proteção desejada e requerida naquele tempo.

A força de trabalho, considerada como qualquer bem, estava sujeita "a regra da oferta e da procura", mulheres, crianças, velhos, enfermos submetiam-se a grandes jornadas de trabalho, sem um mínimo sequer de proteção, agravando ainda mais as condições ofertadas e a penúria da classe trabalhadora. Sem contar o fato de que migravam para as cidades as grandes massas camponesas aliciadas pela perspectiva do trabalho industrial, já que as condições no campo também não eram de todo propicias, aumentando, ainda mais, o número de desempregados e os problemas sociais das cidades.

Com efeito, as sociedades de amparo mútuas, expressão utilizada por Mattia Persiani, não se mostraram de eficácia satisfatória para cobrir os riscos daqueles que sobreviviam de sua força de trabalho. Esses fatores desagregadores acabaram por levar à decadência progressiva dos institutos mutualistas na forma em que estavam cunhados.

A reivindicação constante da classe trabalhadora, em uma sociedade que se industrializava rapidamente, e o clamor popular exigiu uma nova postura do Estado.

A simples repressão, por si só, não arrefeceria os anseios do povo, mormente porque crescia a pregação em prol do movimento socialista.

A partir disso, o comportamento do Estado começou a mudar, justamente em razão das incomensuráveis conseqüências políticas causadas pelos problemas sociais originados das draconianas relações e das condições de trabalho vigentes, especialmente em decorrência dos constantes acidentes de trabalho.

O período do liberalismo absoluto cedia tímido espaço ao período intervencionista.

Desta forma, o nascimento do seguro social obrigatório deu-se por força de condições fáticas, especialmente da preocupação dos dirigentes das nações com a condução de suas administrações e não especificamente com os interesses diretos dos proletariados. Isso fica claro quando se verifica o seu surgimento na Alemanha, em 1883, de Bismarck, que lançou o seu plano no intuito de unificar o Estado alemão. [20]

Assim, não se pode negar que a manutenção da estabilidade do Estado foi motivo igualmente determinante para o início da instituição da Previdência Social. É por isso que o plano de Bismarck, embora tenha o mérito da instituição dos seguros sociais, de caráter geral e obrigatório, a ponto de se atribuiu ao Chanceler a responsabilidade pela formação da Previdência Social, não lhe pode atribuir "um profundo sentimento solidarista".

Destarte, a partir daqui é que realmente começa a desenvolver-se a Previdência Social e, por conseqüente, inicia-se o seu efetivo processo de evolução.

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Sobre o autor
Aécio Pereira Júnior

Procurador Federal em Brasília, Mestrando em Direito pela PUC-SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA JÚNIOR, Aécio. Evolução histórica da Previdência Social e os direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 707, 12 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6881. Acesso em: 28 mar. 2024.

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