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A constitucionalização do Direito Administrativo e o controle de mérito do ato administrativo discricionário pelo Poder Judiciário

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22/05/2005 às 00:00
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Há uma concepção nova de que o ato administrativo discricionário é um privilégio da função em vez do poder, com o pleno alargamento do controle jurisdicional para todas as decisões internas, independentemente de ser discricionária ou não.

I - INTRODUÇÃO

             O instituto da discricionariedade administrativa é uma técnica antiga e sempre foi entendido como uma faculdade legal do poder público, imune ao controle judicial.

            Nasceu no Conselho de Estado da França e se desenvolveu por toda Europa Continental, fazendo-se presente no direito público europeu do século XVIII.

            Não resta dúvida que a construção do poder discricionário da Administração Pública surgiu após a Revolução Francesa de 1789, onde os poderes constituídos foram criados e separados para que fossem independentes e harmônicos entre si, humanizando mais a sociedade.

            Esta separação dos Poderes foi vital para a democracia, pois como a força central emanava do Rei, a criação do Poder Legislativo vinculou os súditos à lei, bem como o Poder Judiciário retirava do monarca o poder de julgar.

            Esse equilíbrio de forças foi suficiente para acabar com o Estado Absolutista, onde o poder centralizado no monarca sufragava o direito alheio.

            Com o fim do arbítrio que constituía a base do governo despótico, surgiram os princípios da legalidade, da soberania do povo e da separação de poderes como fundamento de outras formas de governo, vinculados ao espírito e à força da lei.

            Nesse sentido, Montesquieu (1) parte do pressuposto de que a liberdade consiste no "direito de fazer tudo aquilo que as leis permitem."

            Essa liberdade normativa passou a ser a base de manutenção dos atos públicos, que passaram a ser vinculados através da lei.

            Por este fundamental princípio, o poder público começou a conviver com limites. Ou seja, o poder sendo limitado pelo próprio poder, para evitar abusos.

            Sucede que, naquela época, o Poder Executivo da França participava na elaboração das leis, quando exercia uma faculté d’empêcher através do direito de veto suspensivo. Era o Executivo escolhendo a legalidade a qual ele pretendia vincular-se através do monarca hereditário.

            Pois bem, a partir das idéias de Locke, Rousseau e Kant, dentre outros ilustres filósofos, dá-se a fixação da supremacia do Poder Legislativo, invertendo-se os conceitos anteriores, foi estabelecido que a lei era a voz do povo, pronunciada pelos seus representantes no parlamento.

            Nessa vertente, Locke (2) defendia um governo regrado pela lei, subordinando-se ao Poder Legislativo, pelo fato dele ser o responsável pelo texto legal que disciplinaria o próprio Poder Executivo.

            Locke afirmou também, que mesmo estando em um plano de superioridade, o Poder Legislativo estava sujeito a certas condições ou limites de exercícios.

            Jean-Jacques Rousseau, (3) contribuindo também para a configuração do princípio da legalidade administrativa, partiu da idéia de inalienabilidade e indivisibilidade da soberania, identificada com o exercício da vontade geral, tendo em vista o comum ou a utilidade pública, através da lei que o soberano atua e encontra os seus poderes, sendo o Poder Legislativo o coração do Estado.

            Por isto Rousseau, (4) deixou averbado que o Poder Executivo não é mais do que "a força aplicada à lei."

            Dessa forma, contribuiu o jusfilósofo citado com a idéia de que os membros do poder executivo não possuem a faculdade de formar vontade autônoma, pois eles "não são senhores do povo, mas os seus oficiais", (5)devendo o Poder Executivo exercer a lei.

            O terceiro precursor de uma concepção liberal do princípio da legalidade administrativa, Immanuel Kant, fundador de uma filosofia crítica que investigava as condições de objetividade do saber (a primeira versão de "Crítica da Razão Pura" é de 1781), defendia que a verdadeira expressão da soberania correspondia "a vontade coletiva do povo". (6)

            Para Kant a racionalidade (vernunftrecht) moderna tem a missão de descobrir como a inteligência e a vontade humana podem alcançar suas finalidades supremas.

            Dentro de uma sociedade, Kant entendia que a moralidade se atém ao critério do respeito e o direito (justiça) ao âmbito da coexistência pela lei, fruto da vontade popular.

            Dessa maneira, Kant (7) entendia:

            "El ‘sujeto transcendental’ es el ‘legislador de la naturaleza’: el ‘sujeto de la filosofía práctica’ es el ‘hombre noúmeno’. La ley práctica suprema y universal de la razón es la seguinte: que la razón sea quien determine las acciones libres. (...) El mundo de la ética es el de la ‘legislación interna’ que apunta al deber como móvil de la acción; yel del Derecho, que permite otros móviles, es el mundo de la ‘legislación externa’. Derecho es ‘el conjunto de las condiciones bajo las cuales el arbitrio de cada uno puede conciliarse con el arbitrio de los demás según una ley universal de libertad."

            Diferenciando os três poderes, Kant (8) deixou assente que eles não podem usurpar o espaço funcional alheio, devendo o Estado se manter dentro das leis da liberdade. Sendo que a lei ostenta a verdadeira autoridade natural, ficando proibido alguém opor-se à vontade do legislador.

            Essa tendência fortificada da lei como vontade suprema do povo se corporificou também nos séculos XIX e início do XX, onde os Poderes Executivo e Judiciário não podiam invadir a seara do texto legal, estabelecido pelo Poder Legislativo.

            Como se viu, em uma primeira fase da história do direito público, o rei, representante do povo e senhor das razões, passou a ser chefe do então novo Poder Executivo, limitado pela lei, criada por um também Poder (Legislativo) novo, livre e autônomo.

            A vinculação da Administração Pública à lei foi um grande passo para o direito público e para toda a humanidade, que passou a se submeter à regras legais e não à tirania do soberano.

            Dito isto, constata-se que a Administração Pública, bem como os demais Poderes legalmente constituídos para se movimentar são obrigados a elaborar atos discricionários, estabelecidos por uma outorga da lei como condição de validade do juízo de valor, dentro de uma escolha livre de conveniência e de oportunidade.

            O chamado poder discricionário, portanto é excepcional e está vinculado à lei, que por não ter condição de prever todas as situações, com alguma objetividade e em tese, delega ao administrador público a competência de promover um juízo particular de escolha sobre determinado assunto, como será demonstrado no tópico posterior.

            Sucede, que a atual fase do direito público é voltada para a constitucionalização de suas normas, vinculadas à determinação suprema da Magna Carta.

            Aliás, no campo filosófico, Hegel, (9) já considerava a Constituição como o "espírito de um povo", sendo "algo de incriado, embora produzido no tempo", tendo cada povo "a constitucionalização, que lhe convém e se lhe adequa".

            Pela constitucionalização do direito é possível penetrar na essência de atos públicos até então inexplorados por outros Poderes. O que era vedado, em homenagem aos princípios e normas da Constituição Federal, passou a ser permitido. Pois o Poder Judiciário no atual século e no final do século passado, alçou a condição, dentre outras, de fiscal de todos os atos públicos.

            Esta necessária fiscalização do Poder Judiciário sobre toda a sociedade, inclusive quanto aos atos públicos, possui o escopo de manter eficaz os princípios e as normas da Constituição, sem que se caracterize uma indevida ingerência de um poder sobre o outro.

            Assim, o que era proibido – controle do ato administrativo discricionário – controle externo (Poder Judiciário) – passou a ser permitido pela Constituição Federal.

            Apesar dessa alteração constitucional, a doutrina e a jurisprudência se encontram divididas, entendendo, sem unanimidade, que ainda é defeso a verificação do motivo, da oportunidade e conveniência do ato tido como discricionário pelo Poder Judiciário.

            Entendemos que é necessário um amplo debate sobre o assunto, pois todo e qualquer ato público não está imune ao controle de mérito pelo Poder Judiciário, guardião maior da Constituição.

            É preciso que haja a evolução total da doutrina, e que ela se desapegue da fase arcaica do direito administrativo, onde prevalecia a concepção de que um Poder não poderia invadir a competência do outro, sob pena de quebra do princípio da independência constitucional, para se dar conta que o Poder Judiciário quando invalida o ato público, discricionário ou não, não está cometendo uma intromissão indevida, pois ele resguarda a eficácia da normatividade da Constituição, restituindo a sua força e o dever de que todos devem construir seus atos em conformidade com os preceitos Maiores.

            Assim, o rótulo do ato público pouco importa, em razão do efetivo controle judicial exercido pelo Poder Judiciário, como o responsável pela manutenção positiva da densidade da Carta Maior.

            Na atualidade, há o fim do mito da perfeição da lei ("império da lei"), por ela estar subordinada diretamente à Constituição.

            Houve uma profunda evolução do significado e do valor da Constituição, que acompanhou a radical mudança do modelo de Estado. (10) Assim a reserva da lei deu lugar à reserva de Constituição, alcançada pelo Estado-segurança (Sicherheitsstaat), que defende os interesses da sociedade através da segurança jurídica.

            Em muitos casos, a lei é "um recipiente vazio", (11) onde o mito da sua perfeição já não vigora no direito público atual.

            Ao diminuir o efeito da lei, sendo ela a responsável pelo poder discricionário da Administração Pública, tendo em vista que a legalidade administrativa deixou de se vincular somente ao texto legal, não resta dúvida que também é deferido o controle judicial de tais atos de forma ampla.

            Isto porque os princípios e as normas da Constituição é que dão vigor à Lei e, conseqüentemente, a todo ato público, que deve guardar correlação direta com os mandamentos constitucionais, sob pena de invalidação.

            Com o fim do dogma da perfeição da lei, passou a legalidade administrativa a se vincular a um sistema aberto de regras e de princípios constitucionais.

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            Devido a esta consolidação do Estado de Direito, as Constituições atuais possuem uma elaboração voltada aos direitos fundamentais do homem, invertendo-se a supremacia, visto que o Estado passou a ser controlado, para justamente proporcionar a todos o bem-estar.

            Agrega-se a este fato a transformação do Estado, que deixou de ser agressiva para consolidar-se em uma Administração prestadora e constitutiva. (12)

            Este recuo da Administração autoritária, fruto da evolução dos tempos, colocou de lado a agressividade para dar lugar à fase constitutiva de direitos, onde ela é chamada "a desempenhar uma atividade prestadora favorável aos particulares", (13) se adaptando ao atual ambiente do Estado Democrático de Direito.

            Assim, "o acto administrativo deixou de ser visto apenas como uma agressão da esfera individual, para passar a ser igualmente um instrumento de satisfação de interesses individuais." (14)

            O crescimento do Estado, com a expansão do Poder Executivo, trouxe em seu rastro o crescimento do seu controle pelo Poder Judiciário, inclusive quanto à conveniência, oportunidade e ao mérito dos atos administrativos. (15)

            Isto porque, a efetividade da Constituição conquistou o status pleno de normas jurídicas, através das quais se lêem e se interpretam todos os atos públicos, inclusive os legislativos, consoante lição de Luís Roberto Barroso: (16)

            "E a efetividade da Constituição, rito de passagem para o início da maturidade funcional brasileira, tornou-se uma idéia vitoriosa e incontestada.

            As normas constitucionais conquistaram o status pleno de normas jurídicas, dotadas de imperatividade, aptas a tutelar direta e imediatamente todas as situações que contemplam. Mais do que isso, a Constituição passa a ser a lente através da qual se lêem e se interpretam todas as normas infraconstitucionais. A Lei Fundamental e seus princípios deram novo sentido e alcance ao direito civil, ao direito processual, ao direito penal, enfim, a todos os demais ramos jurídicos. A efetividade da Constituição é a base sobre a qual se desenvolveu no Brasil, a nova interpretação constitucional."

            Portanto, essa idéia de nova interpretação constitucional não se limita aos atos legislativos e nem tampouco aos atos administrativos, visto que a efetividade da Constituição projeta-se por todo o sistema jurídico, criando o princípio da juridicidade, com o condicionamento da discricionariedade aos princípios constitucionais. (17)


II – CONCEITUAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO VINCULADO E DISCRICIONÁRIO

            O direito público designa ato administrativo como todo aquele praticado pelo Estado ou por delegação de poderes públicos, no exercício de funções administrativas, dirigidos aos negócios públicos, na forma da atribuição de competência.

            A Administração Pública para se movimentar necessita da tomada de posição formal dos agentes públicos responsáveis para tal fim, em conformidade com a competência legal, erigida justamente para proporcionar o interesse público.

            Lucia Valle Figueiredo, (18) utilizando-se da definição de Agustín Gordillo, estabelece como ato administrativo:

            "Ato Administrativo é a norma concreta, emanada pelo Estado, ou por quem esteja no exercício da função administrativa, que tem por finalidade criar, modificar, extinguir ou declarar relações jurídicas entre este (o Estado) e o administrado, suscetível de ser controlada pelo Poder Judiciário."

            Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, (19) ato administrativo é:

            "Ato administrativo é, assim, a manifestação unilateral de vontade da administração pública, que tem por objeto constituir, declarar, confirmar, alterar ou desconstituir uma relação jurídica, entre ela e os administradores ou entre seus próprios entes, órgãos e agentes."

            Conceituando ato administrativo, Celso Antônio Bandeira de Mello, (20) aduna como:

            "Declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional."

            Fiorini, em sua obra clássica sobre o tema, ensina: (21)

            "El acto administrativo se presenta como el producto concreto de las normas que rigen al Estado en el sector que actúa, el poder administrador y también el extenso ámbito que se denomina actividad administrativa estatal. Estos actos no son creación inmediata de la voluntad natural de un sujeto que invoca la representación del Estado, pues él es un instrumento condicionado de esa parte de la actividad jurídica estatal."

            Outro expoente do direito administrativo argentino, Manuel Maria Diez, (22) em fundamental obra sobre o ato administrativo, deixou consignado:

            "Podemos decidir que el acto administrativo puro es una declaración concreta y unilateral de voluntad de un órgano de la administración activa en ejercicio de la potestad administrativa."

            Por outro lado, pela divisão de funções entre os Três Poderes do Estado, em sentido lato, pode-se dizer que todo o ato praticado no exercício da função é ato da Administração, (23) que possui uma maior amplitude do que a expressão ato administrativo.

            Como visto anteriormente, ato administrativo abrange apenas determinada categoria de atos praticados quando o agente público se encontra no exercício da função, ao passo que atos da administração são todas e quaisquer manifestações do Poder Público.

            Por sua vez, os atos administrativos podem ser vinculados ou discricionários.

            Os atos administrativos vinculados são aqueles em que a lei estabelece os requisitos e condições de sua realização, sem nenhuma margem de liberdade de decisão para o responsável pela feitura do respectivo ato.

            Já os atos administrativos discricionários, que nos interessa no presente estudo, são os que vem despertando discordância de parte da doutrina, que ainda se aferroa à sua impenetrabilidade por parte do Poder Judiciário.

            Esta frente de discussão se dá pelo fato do ato administrativo discricionário ser aquele em que a Administração pratica com liberdade de escolha do seu conteúdo, de seu destinatário, de sua oportunidade e de como ele será realizado. (24)

            A diferença do ato administrativo vinculado para o discricionário é o grau de liberdade de decisão concedida pelo legislador, que este último possui. Sendo certo que esta liberdade é quantitativa, mas não qualitativa, pois o ente público na atual fase do direito administrativo vincula-se às normas e princípios da boa-administração, o que significa dizer que não existe mais ato imune ao controle judicial, pouco importando se ele é discricionário ou vinculado.

            O ato administrativo discricionário (motivação do objeto) também é vinculado à lei, sendo totalmente desnecessária a distinção utilizada anteriormente pela doutrina, que fazia um divisor de águas para definir o ato controlado e o ato que ficava fora do alcance do Poder Judiciário, quando instado a se pronunciar.

            Assim, a competência, a forma e a finalidade do ato administrativo discricionário são vinculados à lei, tendo uma maior dose de liberdade a decisão do administrador quanto à motivação e ao objeto. Daí a grande discussão, pois esta margem de discricionariedade quanto ao mérito (oportunidade e conveniência) ainda encontra resistência por alguns segmentos do Poder Judiciário e também por parte da doutrina.

            Entendemos que o ato administrativo é discricionário incluindo-se a sua conveniência e oportunidade, vinculado não só pela lei mas também pelos princípios constitucionais objetivos destinados à Administração Pública (art. 37, CF), de forma permanente.

            Não se concebe mais, na atual fase do direito administrativo, que um ato discricionário não priorize a eficiência, a impessoalidade, a moralidade, a razoabilidade, a legalidade, dentre outros vitais princípios constitucionais.

            Esse reconhecimento pela dogmática da "dependência constitucional do Direito Administrativo", (25) busca a realização dos direitos fundamentais do indivíduo, que deixou de ser súdito para ser cidadão, ocupando papel central no desenvolvimento do Estado.

            O ambiente jurídico-constitucional dos modernos Estados de Direito teve o condão de abolir o conceito de inferioridade do administrado, para protege-lo como destinatário dos direitos fundamentais expressos pela Magna Carta. Passa o indivíduo a ser titular de um direito subjetivo em relação à Administração, "sempre que de uma norma jurídica que não vise apenas a satisfação do interesse público, mas também a protecção dos interesses dos particulares, resulte uma situação de vantagem objectiva, concedida de forma intencional, ou ainda quando dela resulte a concessão de um mero benefício de facto decorrente de um direito fundamental." (26)

            Esta é a nova fase do direito administrativo constitucional, regrado pelos preceitos maiores em todos os seus segmentos para melhor servir a sociedade.

            A justificação do poder discricionário na visão de Luiz Roberto Barroso (27) é excepcional:

            "A justificação do poder discricionário – sempre excepcional já que a regra geral é a estrita vinculação da Administração à Lei – decorre da incapacidade de se prever, com alguma objetividade e em tese, a solução mais adequada, mais justa, mais correta para determinadas situações. A discricionariedade é, portanto, serva do interesse público e um instrumento para melhor atender à finalidade pública estabelecida na lei que confere à Administração a competência discricionária."

            Não constitui privilégio da Administração o ato discricionário, pois ele terá que bem servir à coletividade, sendo patrimônio da cultura humana, consoante magistério de Francisco Campos: (28)

            "Ora, os juízos do tipo denominado discricionário, ao invés de constituírem privilégio da Administração, fazem parte do patrimônio comum da cultura humana, e o seu domínio, ao contrário de respeito à esfera do Poder Público, compreende todo o imenso campo da estima moral, artística, política e da vida prática em geral. O critério que preside à formação de tais juízos é a de natureza puramente regulativa ou se limita tão somente a designar a direção geral a ser seguida, sem, contudo fixar, de maneira concreta ou inequívoca, um ponto preciso de referência. A liberdade que caracteriza o prejuízo discricionário não resulta, portanto, da qualidade da pessoa que o formula, mas da estrutura lógica desse juízo, da natural ambigüidade que caracteriza o seu conteúdo significativo. Nisto e tão somente nisto é que consiste a justificação do poder discricionário da Administração."

            É, em outras palavras, o que escreve Kelsen, (29) quando demonstra que o juízo discricionário não é um privilégio da Administração, mas há que ocorrer na aplicação de normas gerais ou abstratas:

            "Demonstra-se facilmente que toda aplicação do direito, isto é, toda concretização de normas gerais, toda passagem de um grau superior a um grau inferior da criação jurídica não é mais do que o preenchimento de um espaço vazio, o exercício de uma atividade dentro das lindes fixadas pelas normas de grau superior. A determinação dos graus inferiores pelos superiores nunca pode ser completa. Haverá sempre oportunidade para as normas inferiores de imputar às superiores um conteúdo de que lhes falta. De outro modo, seria impossível o desenvolvimento do processo de criação jurídica, e a criação de normas individuais seria supérflua. Existe, igualmente, entre o conceito abstrato e a representação concreta uma diferença material, ou de conteúdo. Esta necessária diferença entre os graus superiores e inferiores da concretização jurídica é o que se chama ‘juízo discricionário’."

            A insuficiência da lei em relação ao caso concreto é que cria a necessidade do ato administrativo discricionário.

            Não se questiona a validade e nem a necessidade do ato administrativo discricionário, pois é cediço, não despertando controvérsia que a Administração Pública se movimenta em algumas situações, através de atos discricionários. Dentro dos limites das regras constitucionais, a autoridade pública tem a liberdade de determinar a significação e o conteúdo de um conceito enunciado na lei.

            Isto não é possível em relação a todos os conceitos, e segundo Jellinek (30) apenas quando ele é indeterminado é que se admite o juízo discricionário:

            "O conceito indeterminado é que abre oportunidade à discricionariedade do Juízo. É necessário que isto seja bem compreendido. Nem sempre que a lei emprega um conceito indeterminado resulta que, só por esse fato, ela autorize uma atividade discricionária, toda atividade fundada em juízo discricionário pressupõe uma ordem legal, traduzida em conceito indeterminado (...) Juízo discricionário é também a faculdade de delimitar ou circunscrever um conceito legal indeterminado, com a ressalva de que não incorra em erro."

            Assim, o ordenamento jurídico-administrativo na atualidade apesar de, em determinados casos, permitir um juízo discricionário do administrador, fica limitado aos critérios de orientação contidos na Constituição Federal, como será demonstrado mais a frente.

            Mesmo com esse grau de liberdade, o ato discricionário vincula-se à lei e aos comandos constitucionais, não podendo ser construídos de forma arbitrária.

            Essa é também a orientação de Maria Sylvia Zanella Di Pietro: (31)

            "Mas esses poderes, no Estado de Direito, entre cujos postulados básicos se encontra o princípio da legalidade, são limitados pela lei, de forma a impedir os abusos e as arbitrariedades a que as autoridades poderiam ser levadas.

            Isto significa que os poderes que exerce o administrador público são regrados pelo sistema jurídico vigente. Não pode a autoridade ultrapassar os limites que a lei traça à sua atividade, sob pena de ilegalidade."

            A discricionariedade será levada a efeito pela Administração Pública quando a lei expressamente permitir tal posicionamento. Exemplo concreto do afirmado é o caso da remoção ex officio do servidor público, quando ela se dá a critério do ente público, para atender a necessidade e a respectiva conveniência.

            Todavia, se houver abuso na remoção ex officio, determinada não para permitir que o interesse público seja privilegiado e sim como uma forma de punir o servidor removido, fica claro que o Poder Judiciário poderá anular o ato discricionário sem ferir a independência dos Poderes, tendo em vista que o ato é viciado, desviando o poder em detrimento da legalidade e da eficiência, princípios assentes no caput do art. 37, da CF.

            Outra situação de discricionariedade é quando a lei for omissa, pois ela não é capaz de prever todas as situações supervenientes ao momento de sua promulgação. Neste caso, o administrador público usará a liberdade conferida pela lei para praticar um ato de sua competência, sem contudo, abdicar de cumprir os mandamentos constitucionais, estabelecidos para disciplinar a Administração Pública e garantir também direitos fundamentais para os administrados.

            Qualquer excesso no ato discricionário também resultará em um efetivo controle do Poder Judiciário.

            Por fim, outra possibilidade de ato discricionário por parte do poder público é quando a lei estabelece determinada competência, sem estabelecer a conduta a ser adotada. Nessa hipótese, mais freqüente quando é envolvido o poder de polícia do ente público, deverão também serem observados, os princípios e as normas da Constituição Federal.

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Sobre o autor
Mauro Roberto Gomes de Mattos

Advogado no Rio de Janeiro. Vice- Presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público – IADP. Membro da Sociedade Latino- Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Membro do IFA – Internacional Fiscal Association. Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Autor dos livros "O contrato administrativo" (2ª ed., Ed. América Jurídica), "O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92" (5ª ed., Ed. América Jurídica) e "Tratado de Direito Administrativo Disciplinar" (2ª ed.), dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTOS, Mauro Roberto Gomes. A constitucionalização do Direito Administrativo e o controle de mérito do ato administrativo discricionário pelo Poder Judiciário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 686, 22 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6756. Acesso em: 29 mar. 2024.

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Título original: "A constitucionalização do Direito Administrativo e o controle de mérito (oportunidade e conveniência) do ato administrativo discricionário pelo Poder Judiciário".

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