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O poder emana do povo!

01/09/1998 às 00:00
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Recentemente, ao ler um artigo num jornal, deparei-me com a seguinte frase: Tomara que os legisladores não comecem a editar leis neste sentido (...). A partir de então, auscultando diversos textos redigidos por indivíduos do povo, observei como soem estar presentes pensamentos da mesma natureza, e percebi o quanto o povo teme o legislador brasileiro.

Não é para menos, haja vista o inaudito desrespeito deste para com aquele, que o elegeu como seu representante, desde o momento em que apresentam projetos de lei que visam, direta ou indiretamente, suprimir ou deduzir direitos constitucionalmente outorgados ao indivíduo. Não se trata, entrementes, unicamente de desrespeito ao povo, mas sim de despojar-se, tal legislador, de qualquer resquício de dignidade humana, abeberando-se, a posteriori, na amaldiçoada fonte da mesquinhez, tornando-se nada mais nada menos que um tirano, déspota, abusando do seu poder para submeter o povo a um domínio arbitrário, tendo em vista apenas a "aisance" própria.

Ante tal ato dos nossos representantes, já tão corriqueiros hodiernamente, temos nos limitado a aceitar e silenciar, ou, através de um diminuto setor social, falar. Não obstante falar, continuam os desrespeitos às leis e ao povo, e faz-se necessário, neste final de século, agir com veemência por todos os meios para que possamos pôr termo a esta usurpação por parte dos legisladores.

Objeto de escárnio por parte de muitos, a nossa Constituição, Lei maior do nosso país, que neste ano de 1998 completará, aos 05 dias do mês de outubro, 10 anos de existência, é, no Direito Constitucional Comparado, uma das maiores expressões de um texto constitucional democrático, de cunho progressista, voltado ao bem-estar social e respeitador da cidadania (chamada, inclusive, de Constituição Cidadã, por Ulysses Guimarães). Infelizmente, aqueles mesmos políticos que outrora, quando da Assembléia Nacional Constituinte que a produziu, disseram que através da Constituição o leite e o mel iriam jorrar pelas bicas, hoje lutam para modificá-la, extirpando-lhe, quiçá, este modelo de Constituição Progressista, que visa, ainda, o Estado de bem-estar social.

Não podemos permitir que tal mudança seja feita, já que nesses dez anos de existência da Carta Magna ainda não chegamos a aplicá-la em sua plenitude, muita vez devido à falta de instrução dos próprios indivíduos membros da sociedade, ignorantes dos direitos que possuem, ou até mesmo devido a obstáculos impostos pelos próprios governantes, desejosos de manter o "status quo".

Ex vi do parágrafo único, do art. 1º, da CF/88, "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". O povo é soberano e a ele pertence o poder. Não vivemos numa monarquia absolutista, onde tudo pertence ao soberano e, por isso mesmo, sobre ele não poderá incidir qualquer responsabilidade. A forma institucional do nosso Estado é a República, palavra derivada do latim "res publicae", no seu sentido originário de coisa pública, ou seja: coisa do povo e para o povo, como bem proferiu Cícero.

Com a fantástica complexidade das relações intersubjetivas, atualmente, seria impossível a tomada de decisões concernentes a uma grande parcela social, como um Município, Estado ou União, ser realizada diretamente pelos indivíduos membros, a todo o instante, como acontecia em antanho. Destarte, com a finalidade de representar o poder de decisão e edição de leis desses indivíduos membros da sociedade é que são eleitos os Vereadores, Prefeitos, Deputados Estaduais, Governadores, Deputados Federais, Senadores e Presidente da República.

Todos esses representantes supracitados deverão ter e manter em mente que são representantes do povo, e não estão naquele cargo para satisfazer os seus respectivos egos ou de seus familiares. São representantes da sociedade e devem respeitá-la acima de tudo, buscando, ao máximo, concretizar suas promessas eleiçoeiras.

O que vem acontecendo é membro do Poder Legislativo aprovando lei que vai de encontro à vontade popular e membro do Poder Executivo aquiescendo e promulgando normatividade no mesmo sentido, com o objetivo exclusivo de satisfazer às suas necessidades ou de pequenos grupos a eles ligados. Em meio a tudo isto, jaz o povo timorato, como em afasia, sendo tratado com desdém. Estas leis, entrementes, poderão ser legais, mas nunca legítimas.

Como bem ilustra o Prof. José Afonso da Silva, o princípio da legalidade só pode ser formal na exigência de que a lei seja concebida como formal no sentido de ser feita pelos órgãos de representação popular, não em abstração ao seu conteúdo e à finalidade da ordem jurídica. Lembra bem D´Entrève: "Legalidade e legitimidade cessam de identificar-se no momento em que se admite que uma ordem pode ser legal, mas injusta".

O povo, portanto, ao se deparar com normatividade não condizente com a sua vontade, deverá lutar no sentido de desarraigá-la do nosso sistema jurídico positivo, lembrando-se, sempre, que é ele o titular do poder constituinte. Não deverá lamentar-se, somente, como se apenas fosse um mero lacaio.

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É a vontade do povo que confere legitimidade à norma, à lei; entretanto, a legalidade formal é tão somente o preenchimento dos requisitos formais e organizacionais na sua feitura em todas as suas fases. Deve-se, por conseguinte, haver um liame, uma relação, entre legalidade e legitimidade. No momento em que coincidirem, identificando-se, haverá a norma justa, derivada da vontade popular e promulgada conforme o sistema jurídico positivo.

Para que o povo tenha consciência disto, todavia, torna-se necessária a sua presença, cada vez maior, no círculo de intérpretes das normas positivadas, principalmente da Constituição, para que tenha conhecimento e saiba exigir os seus direitos. Há diversos princípios que norteiam o intérprete do texto constitucional, sendo um deles o Princípio Interpretativo da Coloquialidade, segundo o qual o intérprete, ao analisar o texto constitucional, deverá fazê-lo levando em conta que aquela é uma linguagem coloquial, procurando, ao máximo, afastar-se de uma linguagem técnica, o que dificultaria a apreensão da sua essência pelos indivíduos da sociedade que não estivessem, de algum modo, envolvidos com a linguagem técnico-jurídica. Dependeria de maior nível intelectual e cultural o alargamento do círculo de intérpretes da Constituição se não fosse a linguagem constitucional coloquial.

Outro princípio de suma importância é o princípio da máxima efetividade (Canotilho) ou da força normativa da constituição (Hesse), que, como bem pontifica o Ilustre Mestre Mestre Manoel Jorge e Silva Neto, representa a escolha de uma solução conferidora do máximo de operatividade quando em dúvida o intérprete a respeito de adotar o caminho da plena aplicabilidade ou da limitada eficácia da norma constitucional.

Destarte, há um caminho à luz, há a esperança de termos nossos direitos garantidos de fato, e não somente de direito. No exato momento em que todos do povo, através de um mínimo de educação e maior informação, titulares do poder constituinte do Estado, tiverem a consciência de que aqueles legisladores e governadores são representantes seus, e tiverem o conhecimento de que as normas e leis deverão ser, além de legais, legítimas, traduzindo a vontade popular como um todo, teremos um país melhor, onde o respeito à democracia, à cidadania e ao bem-estar social sobressairá. E a partir de então, não permitiremos mais a usurpação do poder por aqueles detentores do mesmo e asseguraremos uma maior efetividade do texto constitucional, garantindo que todos os direitos por ele previstos não sejam simples letra morta.

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Sobre o autor
Alysson Oliveira de Almeida

acadêmico de Direito na Universidade Católica de Salvador

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Alysson Oliveira. O poder emana do povo!. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 26, 1 set. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65. Acesso em: 25 abr. 2024.

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