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Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro

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17/01/2005 às 00:00
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Todas as considerações expendidas sobre o dano moral se referiam à pessoa física, ao homem, ao indivíduo. Mas, se o indivíduo pode ser vítima de dano moral, por que a coletividade não poderia sê-lo?

"...no puede hablarse de responsabilidad contractual ni extracontractual si no se ha causado un daño a alguien."

(JAIME SANTOS BRIZ, La Responsabilidad - Derecho Sustantivo y Derecho Procesal, Madrid, Montecorvo, 1977, p.123)

ÍNDICE: PROLEGÔMENOS;PARTE I - DANO: CONCEITUAÇÃO JURÍDICA, CARACTERIZAÇÃO E IMPORTÂNCIA NA TEORIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL; PARTE II - CONCEITUAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DO DANO MORAL: DO INDIVIDUAL AO COLETIVO; PARTE III - PARTICIPAÇÃO DO DIREITO PROCESSUAL NO CONTEXTO DO DANO MORAL COLETIVO; CONSIDERAÇÕES FINAIS; NOTAS; BIBLIOGRAFIA


PROLEGÔMENOS

Software, hardware, leasing, telemática, engineering, franchising, joint-venture... É o orbe jurídico sendo invadido por um sem-número de palavras e expressões novas, todas frutos de uma árvore possante, vigorosa, imbatível, que se chama modernidade. É a praia do Direito sendo conquistada por uma maré absolutamente irresistível, que avança inexorável e continuamente, cobrindo para sempre vetustas práticas, exauridos institutos e obsoletas teorias. Mas engana-se quem acredita imporem-se tais transformações pacificamente na consciência jurídica - a velha ordem de idéias opõe-lhe encarniçada resistência, tentando desesperadamente paralisar-lhe a marcha e dando origem, dessa maneira, à "crise do Direito", que o saudoso ORLANDO GOMES soube tão bem retratar:

"Os acontecimentos que desencadearam a crise espiritual dos nossos dias, destruindo parcialmente o sistema de valores a que se condicionava a cultura jurídica, determinaram, não apenas a substituição das matrizes filosóficas do Direito Privado, dos seus fundamentos e finalidades, senão, também, de sua dogmática. Mas, enquanto está a maioria dos juristas convencida de que não subsistem esses pressupostos, não se aperceberam ainda alguns de que, corroídos e solapados, desabaram muitos conceitos básicos do sistema abalado, alterando-se o significado da ordenação jurídica, tanto doutrinária como legislativamente, e, em conseqüência, a função político-judicial, que, a permanecer como a entendia o positivismo científico, permitiria, talvez, na atualidade, a substituição dos juízes por cérebros eletrônicos" (1)

Malgrado toda a oposição que tem encontrado, o movimento renovador, com a força da água que rompe o dique, segue o seu curso - e deve mesmo segui-lo -, sendo sempre guiado pelo coletivo. Trata-se da coletivização ou socialização do Direito, movimento que, característico dos novos tempos, se coloca em posição diametralmente oposta à dos pandectistas do século passado, que tanto se deixaram envolver pelo raciocínio puramente lógico e abstrato, tornando absolutamente exangue o mundo jurídico. (2)

É exatamente nesse panorama de renovação generalizada que se encarta a questão do dano moral coletivo, assunto pouco explorado pela doutrina e absolutamente novel na seara da jurisprudência, mas cuja importância exsurge, de forma insofismável, da própria realidade por ele representada.

Pretende este trabalho examinar, de maneira sistemática e profunda, tão basilar tema, procurando lançar sobre ele a luz do esclarecimento - partindo da conceituação jurídica, da caracterização e da importância do dano na teoria da responsabilidade civil, explorará a conceituação e a caracterização do dano moral, com ênfase para o sofrido pela coletividade, para, ao depois, mostrar a participação do direito processual nesse contexto, dentro da tão desejada relativização do binômio substance-procedure.


PARTE I - DANO: CONCEITUAÇÃO JURÍDICA, CARACTERIZAÇÃO E IMPORTÂNCIA NA TEORIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Sem dano, não há que se falar em responsabilidade civil, id est, esta inexiste sem ele. Por outras palavras, pode-se dizer que o dano é um dos pressupostos da responsabilidade civil (ou do direito à reparação, se se adotar o ponto de vista do lesado), juntamente com a ação lesiva e o nexo causal (ou vínculo). (3)

Mas o que vem a ser o dano? A melhor doutrina o define como sendo "lesão, ou redução patrimonial, sofrida pelo ofendido, em seu conjunto de valores protegidos no Direito, seja quanto à sua própria pessoa - moral ou fisicamente - seja quanto a seus bens ou a seus direitos", ou ainda como "a perda, ou a diminuição, total ou parcial, de elemento, ou de expressão componente de sua estrutura de bens psíquicos, físicos, morais ou materiais". (4)

Como se percebe, o dano é uma lesão a bens juridicamente protegidos, como, v.g., a vida, a liberdade, a saúde, a honra, o nome, a imagem, o crédito comercial e a propriedade. (5) Na sua caracterização jurídica, é absolutamente fundamental que entrem dois elementos: a) o prejuízo (elemento de fato); b) a lesão jurídica (elemento de direito). (6) Ou, como diria o inolvidável EUGENIO BONVICINI: "Nel concetto di danno, inteso in senso giuridico, vi è quindi un elemento materiale, rappresentato dal fenomeno d’ordine fisico, ed un elemento formale, rappresentato dalla reazione suscitata dall’Ordinamento giuridico a conseguenza della turbativa arrecata all’equilibrio sociale dall’alterazione pregiudizievole di un interesse giuridicamente tutelato". (7)

Mas nem todo dano é passível de trazer ao proscênio a teoria da responsabilidade civil. Efetivamente, o dano deve, em primeiro lugar, ser injusto, ou seja, contrário ao ordenamento jurídico.(8) Não é diferente o pensamento de JAIME SANTOS BRIZ: "Además, para que el daño sea indemnizable ha de infringir una norma jurídica, pues si se produce conforme a derecho no sería indemnizable. Por tanto, el concepto del daño debe incluir también la nota de su antijuridicidad. Puede, pues, decirse que daño es ‘todo menoscabo material o moral causadocontraviniendo una noema jurídica, que sufre una persona y del cual haya de responder otra’". (9-10) Ademais, para ser indenizável, deve o dano igualmente ser certo, atual, pessoal e direto, admitindo-se, no entanto: a) o dano futuro e a perda de oportunidade; b) o damnum infectum e a perda de prêmio por acidente; c) o dano a pessoas da família; d) o dano por meio de reflexo (ou, em língua francesa, dommage par ricochet). (11)

A medida da importância do dano é dada não só pelo fato de ser ele um dos pressupostos do direito à reparação, mas também pelo alargamento que tem produzido na seara da responsabilidade civil - esta não tem mais como centro, na concepção da moderna doutrina, a noção de ato ilícito, mas sim a de dano injusto, o que lhe ampliou os horizontes e a esfera de aplicação. É o que nos ensina, com maestria, ORLANDO GOMES:

"O aumento do número de danos ressarcíveis em virtude desse giro conceitual do ato ilícito para o dano injusto, segundo o qual, como visto, a ressarcibilidade estende-se à lesão de todo bem jurídico protegido, dilata a esfera da responsabilidade civil e espicha o manto da sua incidência. Ressarcíveis passam a ser, por exemplo, na área dos direitos de personalidade, os danos provenientes de lesão ao direito à intimidade, na esfera dos direitos de família, o dano moral puro, no setor dos direitos de crédito nos quais há ‘perda de uma utilidade econômica que já fazia parte da própria esfera jurídica patrimonial do credor’, e, no campo dos interesses legítimos, os danos ocasionados aos particulares pelo Estado na sua política interventiva, ou por empresas privadas que poluem o ambiente ou produzem defeituosamente seus artigos". (12)

Estabelecida, assim, a conceituação jurídica de dano, juntamente com a sua caracterização e com a medida de sua importância na teoria da responsabilidade civil, passemos ao estudo do dano moral, cuja construção doutrinária é o cerne do presente ensaio.


PARTE II - CONCEITUAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DO DANO MORAL: DO INDIVIDUAL AO COLETIVO

Conforme a argumentação expendida na Parte I, o dano consiste na lesão sofrida não só em componentes puramente patrimoniais, mas também em elementos da esfera moral do titular. Em outros termos, o dano pode ser dividido em patrimonial e moral, de acordo com o critério dos reflexos na esfera jurídica atingida, que é o mais indicado para delimitar-se e caracterizar-se, com precisão, o dano moral (fulcro do presente ensaio), como nos mostra CARLOS ALBERTO BITTAR:

"Permite essa classificação alcançar-se o âmago da composição da teoria do dano, dividindo-se este em material ou moral, consoante se manifeste no aspecto patrimonial (ou pecuniário) da esfera jurídica lesada. Com isso, têm-se em conta as duas facetas básicas da esfera jurídica dos entes personalizados, a material e a moral, compreendida na primeira o acervo dotado de economicidade, na segunda, o conjunto de valores reconhecidos como integrantes das veias afetiva (ou sentimental), intelectual (de percepção e de entendimento) e valorativa (individual e social) da personalidade.

A separação pela patrimonialidade, ou não, do reflexo produzido na esfera atingida põe em evidência, de imediato, a bipartição do contexto valorativo que interessa ao Direito: o da pecuniaridade e o da moralidade. Inserem-se, no primeiro, os valores dotados de expressão pecuniária, ou aferição econômica e, no segundo, os que se exaurem na esfera mais íntima da personalidade, ou seja, na linha dos componentes sentimentais, valorativos, no âmbito da intelectualidade e no da vontade (aptidão de entender e atitude de querer), com as diversas manifestações possíveis. Por outras palavras, em um contexto, figuram bens ou direitos revestidos de caráter econômico; em outro, atributos de cunho moral ou espiritual, que individualizam o ser na sociedade, vale dizer, que definem o ser como entidade dotada de essencialidade e de individualidade próprias". (13)

O dano moral, portanto, é o resultado de golpe desfechado contra a esfera psíquica ou a moral, em se tratando de pessoa física. A agressão fere a pessoa no mundo interior do psiquismo, traduzindo-se por reações desagradáveis, desconfortáveis ou constrangedoras, bem como trazendo à tona o fato de que o homem é dividido em corpo e espíritom consoantes as brilhantes lições do eminente LUIZ DA CUNHA GONÇALVES:

" É que o homem - digam o que quiserem os materialistas, - não é só matéria viva; é corpo e espírito. A personalidade física é, apenas, o instrumento da personalidade moral. O corpo é, por assim dizer, a máquina, o aparelho transmissor da actividade do ser, dotado de inteligência, vontade, sensibilidade, energia, aspirações, sentimentos. Não pode, por isso, duvidar-se de que o homem possui bens espirituais ou morais, que lhe são preciosos e queridos, tanto ou mais do que os bens materiais. Estes bens são, sem dúvida, complemento daqueles; pois fornecem meios, não somente para se obter duração, saúde e bem-estar físicos ou do corpo, mas também para se alcançar a saúde e o bem-estar morais ou do espírito, mediante alegrias, prazeres, doçuras afetivas, distrações, confortos, leituras, espetáculos naturais e artificiais, viagens, encantos da vida". (14)

Hodiernamente aceito com tranqülidade pela doutrina, pela legislação e pela jurisprudência dos povos cultos (entre nós, inclusive pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, V e X), o dano moral encontrou grandes resistências para impor-se, chegando a ser mesmo negado por célebres autores, (15) que partiam de basicamente dois argumentos falaciosos: a) a dor não admite compensação pecuniária; b) não é possível avaliar o dano moral (pretium doloris). (16)

Superados definitivamente os mencionados argumentos, passou-se à construção da teoria dos danos morais, cujos contornos recentes são bem resumidos por CARLOS ALBERTO BITTAR:

"Em consonância com essas noções, observa-se que a responsabilização do agente se realiza pelo simples fato da violação de direitos da personalidade do lesado (damnum in re ipsa). Os danos em tela são perceptíveis pelo senso comum, porque interferem com a natureza humana, cumprindo a respectiva identificação, em concreto, ao juiz, a quem compete fixar a reparação cabível, que pode ser pecuniária, de regra, e não pecuniária, ou de ambas as naturezas. Confere-se ao prudente arbítrio do juiz essa missão, influenciando-se seu trabalho por certos fatores admitidos, principalmente na doutrina e na jurisprudência, relacionados ao caso concreto, como a gravidade da lesão, a posição das partes e sua situação econômica, alguns previstos por expresso em leis. A par disso, certas leis traçam critérios identificadores da indenização cabível, auxiliando a tarefa do magistrado, acompanhados, ademais, pela ação da doutrina e da jurisprudência, formando-se ora acervo considerável, que vem sendo utilizado nos casos submetidos aos tribunais. Admitem-se novas formas de reparação, não pecuniárias, ganhando relevo, atualmente, o sancionamento através de prestação de serviços à coletividade, que, nascido na área penal, vem estendendo-se a questões de cunho civil. Na reparação pecuniária, prospera, ademais, a tese da exacerbação da indenização devida, em razão do vulto do direito atingido, assumindo aquela a força inibidora de que necessita (punitive damages), para permitir que se alcance efetivo sancionamento do lesante e desestímulo à sociedade para novas investidas do gênero. Vem-se admitindo, por fim, a cumulação entre as reparações por danos morais e por danos patrimoniais, possibilitando-se, assim, ao lesado a satisfação, em um só processo, dos interesses lesados pelo mesmo fato gerador". (17)

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Podem, pois, ser traçados os lindes da teoria do dano moral, em sua configuração mais recente, com supedâneo nos seguintes elementos: a) responsabilização pelo simples fato da violação; b) outorga ao juiz de poderes para a definição da reparação cabível; c) acolhimento de certos fatores como de relevo na determinação da reparação; d) admissão de novas formas de reparação; e) fixação de valor de desestímulo como reparação pecuniária; f) submissão do agente à prestação de serviços na reparação não-pecuniária; g) cumulatividade das reparações por danos morais e patrimoniais.

Todas as considerações expendidas sobre o dano moral, até agora, se referem à pessoa física, ao homem, ao indivíduo. Mas o Direito vem passando por profundas transformações, que podem ser sintetizadas pela palavra "socialização". Efetivamente, o Direito como um todo - e o Direito Civil não tem sido uma exceção - está sofrendo, ao longo do presente século, profundas e paulatinas mudanças, sob o impacto da evolução da tecnologia em geral e das alterações constantes havidas no tecido social (18-19). Todas essas mutações têm direção e sentido certos: conduzem o Direito ao primado claro e insofismável do coletivo sobre o individual. Como não poderia deixar de ser, os reflexos desse panorama de mudança estão fazendo-se sentir na teoria do dano moral, dando origem à novel figura do dano moral coletivo, objeto específico do presente estudo. Ora, se o indivíduo pode ser vítima de dano moral, por que a coletividade não poderia sê-lo? Mas a demonstração plena do ponto nodal deste trabalho não pode ser realizada sem algumas considerações prévias, respeitantes, inclusive, aos domínios da Sociologia, da Filosofia e da Ciência Política.

A coletividade - ou comunidade - (20) é "um conglomerado de pessoas que vivem num determinado território, unidas por fatores comuns" (21), ou, ainda, "uma sociedade localizada no espaço, cujos membros cooperam entre si (com divisão de trabalho), seja utilitaristicamente (para obter melhores, mais eficientes resultados práticos, reais), seja eticamente (tendo em vista valores humanos - familiais, sociais, jurídicos, religiosos etc.)" (22). Dessas definições - máxime da segunda - exsurgem os fios mais importantes na composição do tecido da coletividade: os valores. Resultam eles, em última instância, da amplificação, por assim dizer, dos valores dos indivíduos componentes da coletividade. Assim como cada indivíduo tem sua carga de valores, também a comunidade, por ser um conjunto de indivíduos, tem uma dimensão ética. (23) Mas é essencial que se assevere que a citada amplificação desatrela os valores coletivos das pessoas integrantes da comunidade quando individualmente consideradas. Os valores coletivos, pois, dizem respeito à comunidade como um todo, independentemente de suas partes. Trata-se, destarte, de valores do corpo, valores esses que não se confundem com os de cada pessoa, de cada célula, de cada elemento da coletividade. Tais valores, como se vê, têm um caráter nitidamente indivisível, cuja intelecção fica cristalina com a leitura das preleções de JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA a respeito dos "interesses essencialmente coletivos":

"Em muitos casos, o interesse em jogo, comum a uma pluralidade indeterminada (e praticamente indeterminável) de pessoas, não comporta decomposição num feixe de interesses individuais que se justapusessem como entidades singulares, embora análogas. Há, por assim dizer, uma comunhão indivisível de que participam todos os possíveis interessados, sem que se possa discernir, sequer idealmente, onde acaba a "quota" de um e onde começa a de outro. Por isso mesmo, instaura-se entre os destinos dos interessados tão firme união, que a satisfação de um só implica de modo necessário a satisfação de todas; e, reciprocamente, a lesão de um só constitui, ipso facto, lesão da inteira coletividade. Por exemplo: teme-se que a realização de obra pública venha a causar danos graves à flora e à fauna da região, ou acarrete a destruição de monumento histórico ou artístico. A possibilidade de tutela do "interesse coletivo" na preservação dos bens em perigo, caso exista, necessariamente se fará sentir de modo uniforme com relação à totalidade dos interessados. Com efeito, não se concebe que o resultado seja favorável a alguns e desfavorável a outros. Ou se preserva o bem, e todos os interessados são vitoriosos; ou não se preserva, e todos saem vencidos". (24)

Assim caracterizados os valores coletivos, faz-se mister que se afirme serem eles enquadrados em categoria maior, vale dizer, no fenômeno cultural. Ora, como já assinalamos na primeira página de ensaio premiado pela Associação "Alumni" em 1988 (cuja reprodução integral fazemos no Apêndice do presente trabalho), "culture is the result of the social capacity of creating material and immaterial elements - like language, typical food and customs - and transmitting them generation after generation" (25), o que é reforçado pelo inolvidável jurista e sociólogo FRANCISCO JOSÉ DE OLIVEIRA VIANNA, in verbis:

"Um complexo cultural não contém apenas um sistema de normas sociais, possíveis de serem cristalizadas num regulamento, num ritual, num prontuário, num código ou numa Constituição. Na sua composição encontramos, ao mesmo tempo, como estamos vendo, dois grupos de elementos externos ou objetivos (fatos, coisas, signos, tradições); os elementos internos ou subjetivos (sentimentos, idéias, emoções, julgamentos de valor, etc.): - e é desta complexidade de elementos constitutivos que ele tira o seu nome.

Os primeiros - os objetivos - formam os elementos transcendentes da cultura. Os segundos - os subjetivos - os seus elementos imanentes.

Estes elementos conjugados ou associados formam um sistema articulado, onde vemos objetos ou fatos de ordem material, associados a reflexos condicionados, com os correspondentes sentimentos e idéias. Estes elementos penetram o homem, instalam-se mesmo dentro de sua fisiologia: e fazem-se enervação, sensibilidade, emoção, memória, volição, motricidade. (...)

Em conseqüência, pensa-se de acordo com estes complexos e na forma deles; e sente-se; e age-se; e comporta-se: - e vive-se. Embora sem anular-lhe a personalidade e a sua equação pessoal, um complexo qualquer, represente o que representar, envolve sempre o homem por dentro e por fora: - e o arrasta a atitudes ou a comportamentos na sociedade. Psicologicamente, portanto, um complexo cultural é um sistema ideio-afetivo, em que se associam, sincronizados, sensibilidades, emoções, sentimentos, preconceitos, preferências, repulsões, julgamentos de valor, deliberações e, afinal, atos omissivos ou comissivos de conduta". (26-27)

Em última análise, o significado do próprio homem, célula-mãe da coletividade, é o alicerce do estudo dos valores coletivos, dos quais é ele a fonte. Ora, o homem é o único ser capaz de valores; não é uma simples entidade biológica, redutível a um conjunto de fatos explicáveis pela Psicologia, pela Física, pela Anatomia e pela Biologia, mas sim um acréscimo à natureza, como nos lembra MIGUEL REALE (28), que, aliás, prova cabalmente a intrínseca relação existente entre a cultura e os valores:

"(...) Sôbre uma ordem de coisas naturalmente dadas, o homem constitui um segundo mundo, que é o mundo da cultura. Pensando no mundo do homem primitivo ou no de nossos dias, imediatamente se verifica que o homem, valendo-se dos conhecimentos obtidos no mundo do ser, nos nexos causais qie ligam os fenômenos, pôde subordinar conhecimentos neutros a fins que não estavam nos fenômenos explicados, mas que o homem soube compreender e integrar em sua existência, como inovador da natureza. Só o homem é um ser que inova, e é por isso que só o homem é capaz de valor. No fundo, chegaremos à conclusão de que o problema do valor reduz-se à própria espiritualidade humana. Há possibilidade de valores porque existe liberdade espiritual, possibilidade de escolha constitutiva de bens". (29)

Após todas essas considerações, urge agora se proceda à especificação dos valores coletivos.

Em primeiro lugar, aparecem os valores constantes do artigo 1º, I a III, da Lei Federal 7.347, de 24.7.85: os relativos ao meio ambiente, ao consumidor e ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (30), sobre os quais há vastíssima literatura especializada (31). Não nos estenderemos sobre o assunto, exaustivamente analisado pela moderna doutrina. Mas cumpre-nos trazer à colação algumas importantes manifestações de nossa jurisprudência a respeito da matéria: a) "...cabe ao Judiciário identificar o valor histórico e estético do bem, independentemente do critério administrativo" (32); b) em tese, é cabível a ação civil pública com a finalidade de transferência das instalações de empresa apontada como poluidora (33); c) o reconhecimento de que determinada coisa tem valor estético, histórico, turístico ou paisagístico pode ser feito pelo Poder Judiciário, não sendo privativo do Legislativo ou do Executivo (34); d) a denominação de uma rua tem valor histórico, suscetível de ser amparado pela ação civil pública (35); e) "Ação civil pública. Restauração de área livre, de lazer do povo, prejudicada por iniciativa administrativa tendente à construção de monumento lesivo à unidade e simplicidade da paisagem. Demanda procedente. Sentença mantida em reexame" (36).

O rol de valores citados longe está de ser exaustivo, devendo-se-lhe acrescentar outros de igual importância, sem que se olvide que "coletividade" é um termo que se refere a grupos humanos de maior ou menor extensão, conforme o caso. (37)

Um valor que fica caracterizado precisamente como coletivo é a honra, conforme a demonstração feita a seguir.

Do ponto de vista individual, a honra foi estudada por vários doutrinadores, dentre os quais avulta o imenso ADRIANO DE CUPIS:

"A ‘honra’ significa tanto o valor moral íntimo do homem, como a estima dos outros, ou a consideração social, o bom nome ou a boa fama, como, enfim, o sentimento, ou consciência, da própria dignidade pessoal. Quando entendida ùnicamente no primeiro sentido, a honra está subtraída às ofensas de outrem e é alheia, por consequência, à tutela jurídica; entendida no segundo e no terceiro significados, está, pelo contrário, exposta às referidas ofensas. A opinião pública é bastante sujeita à recepção das insinuações e aos ataques de toda a espécie produzidos contra a honra pessoal; assim também o sentimento da própria dignidade é diminuído, ferido, pelos actos referidos. Por consequência, o ordenamento jurídico prepara a reacção adequada. Podemos, pois, dar, no campo jurídico, a seguinte definição de honra: a dignidade pessoal reflectida na consideração dos outros e no sentimento da própria pessoa.

A honra, entendida como valor íntimo moral do homem, constitui um bem imensamente precioso, exaltado por poetas e pensadores, proclamado como o mais importante da vida. Mas mesmo sob o aspecto dos mencionados reflexos - aqueles pelos quais interessa ao direito - apresenta uma importância enorme. De facto, a boa fama da pessoa constitui o pressuposto indispensável para que ela possa progredir no meio social e conquistar um lugar adequado; e, por sua vez, o sentimento, ou consciência, da própria dignidade pessoal representa uma fonte de elevada satisfação espiritual". (38)

É possível bipartir a honra (individual) em: a) objetiva (a reputação e o respeito de que se desfruta no meio social em que se vive); b) subjetiva (estima que cada qual tem de si próprio; sentimento pessoal da própria dignidade, ou de seu valor social). (39)

Sob o prisma coletivo, também se vislumbra claramente a honra - aliás, em ambas as modalidades (objetiva e subjetiva). Ora, assim como cada um goza de reputação e respeito no meio em que vive, também a comunidade - agrupamento de pessoas e, portanto, de núcleos de valores - deve ser respeitada nas suas relações com coletividades outras, ou com indivíduos, ou com pessoas jurídicas (honra objetiva); assim como cada homem tem estima de si próprio, também a coletividade apresenta sua auto-estima.

Outro valor coletivo é a dignidade nacional, representada pelos símbolos nacionais, a respeito dos quais se manifestou, de maneira bastante feliz, OBEMOR PINTO DAMASCENO:

"Símbolos nacionais são emblemas, cantos, distintivos de uma nação. São a figuração viva e perene da alma de um povo, a imagem vibrante e colorida da pátria. São flâmulas, brasões, hinos, insígnias que marcam, representam e distinguem um país e despertam em seu povo generoso, forte e acendrado sentimento de patriotismo. São estandartes, divisas e canções que lembram feitos gloriosos, expressam, nas suas cores, formas e melodias, o sentimento nacional e alimentam, pelo muito que significam, a chama do mais elevado fervor cívico e da mais terna devoção.

Os símbolos nacionais têm uma significação histórica porque atuam nos nossos sentidos como a representação viva de um passado inesquecível de glórias e alentadoras conquistas; têm uma significação sociológica porque ligam o homem à sua grei, à sua nação; têm uma significação política porque integram o cidadão, que é a forma atuante do Estado, a esta comunidade". (40-41)

O Estado, na definição de DALMO DE ABREU DALLARI, é a "ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território". (42) Exsurgem dessa definição dois elementos de importância indiscutível: o bem comum e o povo. O bem comum é a finalidade básica do Estado; este, por outras palavras, é o instrumento através do qual se permite o desenvolvimento integral da personalidade humana. (43) O povo, por sua vez, é o conjunto dos indivíduos que se unem para constituir o Estado, estabelecendo com este um vínculo jurídico de caráter permanente. (44) É por meio do Estado, portanto, que o povo pode alcançar o bem comum. Ora, como se percebe, é no bem comum e no povo que vai haurir forças a dignidade nacional; por outras palavras, assenta-se ela na finalidade a que se propõe o Estado e nas pessoas que, com suas tradições, seus costumes, seus valores, suas crenças e sua história, a ele dão existência e sentido. E é precisamente nos símbolos nacionais que tal valor coletivo vai ser materializado.

Com supedâneo, assim, em todos os argumentos levantados, chega-se à conclusão de que o dano moral coletivo é a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico; quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto imaterial. Tal como se dá na seara do dano moral individual, aqui também não há que se cogitar de prova da culpa, devendo-se responsabilizar o agente pelo simples fato da violação (damnum in re ipsa). (45-46)

Ocorrido o dano moral coletivo, que tem um caráter extrapatrimonial por definição, surge automaticamente uma relação jurídica obrigacional que pode ser assim destrinchada: a) sujeito ativo: a coletividade lesada (detentora do direito à reparação); b) sujeito passivo: o causador do dano (pessoa física, ou jurídica, ou então coletividade outra, que tem o dever de reparação); c) objeto: a reparação - que pode ser tanto pecuniária quanto não-pecuniária. Sobre essa relação incide a teoria da responsabilidade civil.

Para a perfeita compreensão da matéria, é indispensável que se ofereçam, a partir de agora, algumas situações em que se pode vislumbrar a ocorrência do dano moral coletivo.

Como primeiro grande exemplo, pode-se lembrar o dano ambiental, consoante as precisas lições de CARLO CASTRONOVO, in verbis:

"È chiaro che se si fa riferimento al singolo albero illecitamente abbattuto o alla fauna distrutta, si può ben parlare di danno patrimoniale. Ma non è questo il danno ambientale...Gli è che ‘ambientale’, come ‘bellezze naturali’, è categoria di relazione, che esprime il reciproco porsi di una serie di elementi i quali solo nel loro insieme sono in grado di costituire un valore altro da quello che coincide con la somma dei singoli componenti; valore che, proprio in quanto espressivo della relazione di cui si è detto, risulta intraducibile mediante parametri economici.

(...) Orbene, se il danno all’ambiente à costituito dall’incrinatura della relazione in cui quest’ultimo consiste, onde non può essere confuso con il danno arrecato ai singoli elementi della relazione, una volta chiarito che patrimoniale deve ancora continuare a considerarsi la lesione di quanto è suscettibile di valutazione economica, si deve concludere per la natura non patrimoniale di tale danno". (47)

O dano ambiental não consiste apenas e tão-somente na lesão ao equilíbrio ecológico, afetando igualmente outros valores precípuos da coletividade a ele ligados, a saber: a qualidade de vida e a saúde. É que esses valores estão intimamente inter-relacionados, de modo que a agressão ao ambiente afeta diretamente a saúde e a qualidade de vida da comunidade. Tal entendimento é reforçado por LUÍS FELIPE COLAÇO ANTUNES, segundo o qual "a necessidade de uma noção unitária de ambiente resulta não só da multiplicidade de aspectos que caracterizam as atividades danosas para o equilíbrio ambiental, por conseguinte de uma planificação global, mas também da necessidade de relacionar o problema da tutela do ambiente com os direitos fundamentais da pessoa, nomeadamente o da saúde" (48), e pelo legislador constituinte brasileiro de 1988, ao estatuir, no artigo 225 da vigente Carta Magna, que todos "têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". (49)

O dano ambiental é particularmente perverso porque rompe o equilíbrio do ecossistema, pondo em risco todos os elementos deste. Ora, o meio ambiente é caracterizado pela interdependência e pela interação dos vários seres que o formam (50), de sorte que os resultados de cada ação contra a Natureza são agregados a todos os danos ecológicos já causados (efeito cumulativo). (51)

Outro bom exemplo de dano moral coletivo é a violação da honra de determinada comunidade (a negra, a judaica, etc.) através de publicidade abusiva, a qual é proibida pela legislação pátria, sendo assim definida:

"É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeite valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança". (52)

Para finalizar a exemplificação, poder-se-ia mencionar o desrespeito à bandeira brasileira - a qual corporifica, como já se ressaltou, a dignidade nacional -, através, e.g., de ultrajes, insultos e ofensas públicas. (53-54)

Definidos, assim, os contornos do dano moral coletivo, pode-se passar ao estudo da participação do direito processual nesse contexto.

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Sobre o autor
Carlos Alberto Bittar Filho

procurador do Estado de São Paulo, doutor em Direito pela USP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 559, 17 jan. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6183. Acesso em: 23 abr. 2024.

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