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Direito Internacional e soberania nacional

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17/11/2004 às 00:00
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No atual cenário, não se discute mais o conceito interno e externo do exercício do poder, tal qual faziam os clássicos doutrinadores da soberania nacional. O conceito que temos hoje de soberania surgiu no século XV, juntamente com o nascimento do Estado Moderno.

Sumário: Introdução / 1. Soberania Compartilhada e Direito Comunitário / 2. A Soberania na Constituição


Introdução

Este artigo visa a estabelecer um breve ensaio sobre a relação entre a soberania nacional e o direito internacional público. Como se sabe, o Estado moderno tem passado por intensas transformações que se refletem na sua estrutura estatal. A soberania sendo considerada não como um elemento do Estado, mas, sim, como sua raison d´être, sua condição de ser e de estar nas relações internacionais, não guarda hoje as características de outrora [1]. Com efeito, a globalização, que é traço dos mais representativos da nova macroestrutura internacional, emergida do Pós-Guerra Fria, afetou sobremaneira o status de soberania, ou seria melhor dizer, de seu conceito.

A questão da soberania apresenta grande relevância para o debate hodierno das relações internacionais e do direito internacional público, pois, nestas áreas, o Estado é o objeto central de estudo. Se retomarmos, ainda que brevemente, aos primórdios da doutrina da soberania, temos a relevante contribuição de Aristóteles, que introduziu, já na Antiguidade, o conceito de autarquia [2]. Este conceito, entretanto, difere-se da atual conceituação de soberania; na Antiguidade grega, os Estados formavam uma comunidade perfeita capazes de suprir as necessidades de seus cidadãos, sem recorrer a auxílio externo. No atual cenário, não se discute mais o conceito interno e externo do exercício do poder, tal qual faziam os clássicos doutrinadores da soberania nacional. O conceito que temos hoje de soberania surgiu no século XV, juntamente com o nascimento do Estado Moderno. O conceito de soberania, da forma que foi concebido, foi essencial para o exercício do poder pelos reis, que eram uma força emergente na época, e precisavam impor e consolidar sua autoridade à organização descentralizada da era medieval. Com base neste conceito emergente de soberania, os Estados foram unificados, com a afirmação do poder do rei sobre um determinado povo e território, sendo Jean Bodin, na obra Os Seis Livros da República, o primeiro escritor a introduzir esta concepção da soberania do poder real.

Desde então, a soberania passou a ser analisada à luz de seus aspectos internos e externos. Internamente, os soberanos passaram a exercer uma relação de poder com o povo sem intermediários, assumindo um papel de total supremacia não se sujeitando a nenhum outro poder, ou seja, os senhores feudais não tinham mais autonomias locais e todos se sujeitavam ao poder real. Quanto aos aspectos externos da soberania, os soberanos passaram a considerar uns aos outros como iguais, sem a intervenção de nenhum juiz com poder sobre os Estados, cabendo a eles decidir sobre a guerra e a paz. Para Jellinek, a soberania pode ser traduzida pela negação de toda subordinação ou limitação do Estado por qualquer outro poder, passando este a encerrar um poder supremo e independente, sem o reconhecimento de nenhuma autoridade acima da sua.

Cumpre lembrar que muitos significados têm sido atribuídos, no decorrer da história, ao termo soberania. Inicialmente, as teorias teocráticas afirmavam que o poder tinha origem divina, sendo que estas teorias se dividiam na Teoria da Investidura Divina e na Teoria da Investidura Providencial [3]. Para a primeira, os governantes eram delegados diretos de Deus; já a segunda admitia apenas a origem divina do poder.

No curso da história, como resultado das revoluções burguesas, apareceram as teorias democráticas e com elas a expressão soberania popular, principalmente após a publicação do Contrato Social de Rousseau. A soberania popular tem como fundamento a igualdade política dos cidadãos e o sufrágio universal, sendo o titular da soberania o próprio povo, que a exerce por intermédio de seus direitos políticos. Canotilho, em sua obra, nos demonstra como este conceito evoluiu para a idéia de soberania nacional, na qual a titularidade é deslocada para a nação, que representa o povo organizado numa ordem instituída como um complexo indivisível [4]. Pode-se dizer que, o que diferencia a idéia de soberania popular, defendida por Rousseau [5], da idéia de soberania nacional, tal qual descrita por Canotilho [6], é a participação política, pois, a primeira reconhece a todos os cidadãos direitos políticos, e a segunda limita a participação àqueles investidos pela nação na escolha dos governantes [7].

Por fim, o modelo da soberania nacional foi adotado após a Revolução Francesa, sendo o modelo que predomina até os dias atuais nos Estados que se organizam como Democracias Constitucionais [8]. Nesta nova formulação do conceito de soberania, a maior parte dos estudiosos a classificam como una, indivisível, imprescritível e inalienável [9]:

- Una por não ser possível a convivência simultânea de dois poderes soberanos;

- Indivisível pela conclusão lógica ante a sua unidade, o que não impede a divisão do seu exercício [10];

- Imprescritível e inalienável porque encarna o poder supremo, insuscetível de lesão e indisponível.

Destaca-se, também, como característica da soberania, a coatividade, pois somente o poder soberano é autorizado a empregar a força material, através de elemento de coação, com o objetivo de obrigar aos indivíduos o cumprimento da ordem jurídica [11]. Outra característica é que o poder do Estado não é ilimitado. Jellinek desenvolve o pensamento de que a soberania está subordinada a certos limites, e, o Estado encontra sua limitação na existência de uma ordem determinada. Assim, é negado o poder absoluto e ilimitado ao Estado. Deve-se ressaltar que a soberania não é compatível com a subordinação a uma vontade concreta, mas nada impede que se sujeite a uma ordem jurídica. O fundamento básico do Direito se sustenta no fato de que o Poder Político, para se legitimar, deve organizar-se em um Estado, autolimitando seus poderes e criando mecanismos de proteção às minorias. Este é o papel das Constituições, que são a base da organização política, instituindo os poderes públicos, definindo-lhes as competências e fixando direitos e obrigações do indivíduo face ao Estado. Por esta razão, o Estado e os indivíduos devem obedecer às disposições das leis promulgadas pelo Poder Estatal.

Modernamente, a principal característica da soberania é o exercício do Poder Constituinte Originário, existindo uma estreita relação entre os dois [12]. Esta originalidade, todavia, deve ser considerada pelo prisma jurídico e não histórico, como bem assevera Jorge Miranda: "Não se trata de remontar à formação do Estado (...), mas, tão-somente de recortar, com clareza a posição do Estado frente às demais entidades ou pessoas coletivas públicas de direito interno." [13]. Konrad Hesse assevera que a Constituição é a grundnorm da sociedade de um Estado, que fixa princípios gerais formatadores da unidade política e orientadores da ação do Estado, pois contém os procedimentos para resolver os conflitos internos, para regular a organização estatal e para criar as bases da ordem jurídica [14]; consagra Hesse, desta forma, a relação entre poder constituinte e soberania.

Ademais, para ser soberano, o Estado não pode estar submetido a outro, assim, pode elaborar a sua constituição, criar órgãos, determinar competências e definir os direitos e garantias de seus cidadãos [15]. A Constituição é o símbolo de maior detenção de um poder soberano. O conceito de soberania não se confunde com os poderes do Estado; sendo a soberania indivisível, o poder do Estado pode ser repartido na sua execução, de acordo com as funções a serem desempenhadas. Assim, a soberania é uma qualidade do poder, podendo estar presente ou ausente. Não cabe, nesse contexto, medida para a soberania, pois não há Estado mais soberano que o outro.

Asseveram os doutrinadores da Teoria Geral do Estado que a soberania existe e é exercida em dois domínios básicos: um interno e outro externo [16]. O interno significa supremacia, ou direito de dar ordens a todos os indivíduos de uma nação; e o externo significa independência, ou o direito de representar a nação nas suas relações internacionais com outras nações, sem que se sujeite a nenhuma delas [17]. Depois da consolidação dos Estados nacionais e da resolução dos conflitos referentes à distribuição do poder interno, que passou a pertencer ao rei, os soberanos passaram a se reconhecer mutuamente e a se encarar como iguais. Neste contexto, um grande acordo é firmado, em 1648, entre a maioria dos países europeus, conhecido como a Paz de Westfalia, que reconhecia a igualdade e a soberania dos governos. De acordo com Westfalia, os governos eram soberanos e iguais por fiat jurídico [18].

O Tratado de Westfalia conseguiu manter o equilíbrio mundial até o início do século XX, todavia, o aumento das desigualdades e a expansão do comércio internacional, contribuíram para a decadência do acordo, que acabou resultando na Primeira Guerra Mundial [19]. Com o fim desta, um novo modelo foi criado, conhecido como Liga das Nações, que veio a fracassar rapidamente. Ao término da Segunda Guerra Mundial, instaurou-se a Pax Americana, com a instituição da ONU, sob liderança dos Estados Unidos, sendo decisiva para o bom funcionamento e coordenação entre os Estados, através da atuação de seus órgãos para a estruturação da nova macroestrutura internacional do Pós-II Guerra Mundial, dos quais destacam-se o GATT e o FMI. A partir de então, as relações internacionais dos Estados foram solucionadas através da intergovernamentalidade, com a proliferação de organizações internacionais.

Permaneceu, entretanto, a idéia de soberania como poder supremo, não se submetendo a nenhuma autoridade estrangeira, salvos os casos onda há consentimento expresso em tratado [20]; desta forma, surgiram as bases do Direito Internacional Clássico [21]. Dentro deste novo cenário, cresceu a idéia dos Estados soberanos criarem obrigações entre si, por meio de acordos e compromissos mútuos, geralmente materializados por tratados, o que caracteriza a possibilidade de uma autolimitação destes Estados por meio de acordos internacionais. Para Vignali, o tributo da soberania:

(...) não exclui a possibilidade de que os sujeitos soberanos, sem perder seu atributo, obriguem-se por regras jurídicas que devem cumprir e às quais não podem renunciar unilateralmente, sempre que tais regras não lhe sejam impostas por um poder estranho, mas que sejam o resultado de decisões conjuntas aceitas por todos os obrigados. [22]

Assim, enquanto o direito interno tem a função de reger as relações intersubjetivas que se desenvolvem dentro do Estado, por outro lado, o direito internacional tem por objeto as relações interestatais.

A partir deste cenário, tornou-se clássica a polêmica entre dualistas, cujos principais autores eram Triepel e Anzilotti, e monistas, liderados por Hans Kelsen. Como já fora analisado neste capítulo, em tópico anterior, os dualistas defendem a distinção entre ordem jurídica nacional e internacional e os monistas defendem a unicidade da ordem jurídica, procuravam, estes, também, estabelecer um método para solucionar possíveis conflitos entre normas internas e internacionais [23]. Com base nos posicionamentos monistas, Rezek aponta três possibilidades de composição dos conflitos [24]:

a)primado do direito interno - atualmente não é mais sustentado;

b)primado do direito internacional – previsto expressamente em regras constitucionais de alguns países;

c)paridade entre direito interno e direito internacional - solução consagrada nos Estados Unidos, sem objeções doutrinárias ou variações jurisprudenciais.

O posicionamento brasileiro quanto ao conflito entre as normas de origem internacional e interna é, com efeito, um dos pontos mais debatidos quando se pretende estudar as teorias jus-filosóficas envolvendo conceitos de soberania e as relações entre a ordem interna e internacional.

Em suma, existem vários posicionamentos quanto ao rótulo que o sistema constitucional brasileiro apresenta: se dualista moderado [25] ou monisma moderado, ou dualista. Isto faz com que se tenha um problema terminológico, pois a expressão monismo significa a possível existência de conflitos entre tratado e lei, enquanto no dualismo, estes conflitos são impossíveis, por pertencerem a esferas normativas diferentes. Neste campo, o da terminologia, parece não haver um entendimento; fato que pode ilustrar o que neste artigo se pretende provar: a relevância e a dificuldade do tema, conflito entre normas, que perpassa pelo estudo da relação entre o direito internacional com o direito interno [26].

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1. Soberania Compartilhada e Direito Comunitário

Já virou jargão dizer que o mundo atual passa por um fenômeno conhecido como globalização; todavia, não se pode negar que a globalização é o traço mais relevante dos contornos assumidos pela atual estrutura internacional. Diante desta nova realidade, observa-se que, nos dias atuais, tem havido uma maior cooperação intergovernamental, e, como conseqüência, tem o conceito de soberania necessitado de reformulação, uma vez que os Estados não são auto-suficientes, ou seja, não operam individualmente nas relações internacionais, mas, sim, interdependentemente. A comunidade mundial tenta buscar soluções que conciliem o conceito de soberania com as necessidades de cooperação e integração entre os Estados Modernos. A União Européia talvez seja o exemplo mais bem-sucedido, introduzindo o que se vem chamando de supranacionalidade, um instituto novo do direito internacional, já pensado por Kelsen, que levou a criação de uma ramificação: o direito comunitário. Há quem entenda que o direito internacional, pela ausência de um poder legislativo internacional, de tribunais com jurisdição obrigatória e da ausência da imperatividade das decisões judiciais, não seria, exatamente, um direito. Hart assevera que o direito vincula as condutas humanas e se o direito internacional não é capaz de vincular as condutas dos Estados, então, não seria um direito verdadeiramente [27]. Sobre o direito internacional, Hart assevera que:

(...) não só dispõe de regras securitárias de alteração e de julgamento que criem um poder legislativo e tribunais, como ainda lhe falta uma regra de reconhecimento unificadora que especifique as fontes do direito e estabeleça critérios gerais de identificação das suas regras. [28]

Com a experiência integracionista, pautada no direito comunitário, pode-se observar características de maior imperatividade nas suas decisões, uma aproximação da estrutura jurídica que existe internamente nos Estados; daí, alguns teóricos diferenciarem direito internacional público do direito comunitário, como se este fosse um ramo do DIP: "O exemplo mais bem-sucedido até o momento é o da Comunidade Européia, que introduziu o que se vem chamando de supranacionalidade, um instituto novo do direito internacional, que levou a criação de uma ramificação: o direito comunitário." [29].

Quanto à supranacionalidade, consiste basicamente [30]:

a)na existência de instâncias de decisão independentes do poder estatal, as quais não estão submetidas ao seu controle;

b)na superação da regra da unanimidade e do mecanismo de consenso, já que as decisões – no âmbito das competências estabelecidas pelo tratado instituidor – podem ser tomadas por maioria, ponderada ou não;

c)no primado do direito comunitário frente à legislação interna. A integração européia determinou a reestruturação das competências soberanas, que passaram a ser dividida entre os Estados e os órgãos comunitários [31].

É importante mencionar, contudo, que o direito comunitário, tal como se apresenta na Europa, só se estabeleceu devido a limites impostos pelos tratados constitutivos da UE, como por exemplo o Tratado de Roma, de 1957, posteriormente o Tratado de Maastricht, de 1994, que reformulou as bases da cooperação previstas no Tratado de Roma. O conjunto destes tratados constitutivos tem sido considerado como a Constituição da Comunidade, pois, como assevera Canotilho, são eles que determinam as diretrizes a serem tomadas, como por exemplo, a criação de órgãos comunitários, competências, objetivos, limites e até direitos e garantias individuais [32].

O direito comunitário encontra fundamentos na teoria da soberania compartilhada. De acordo com esta teoria, os Estados-membros, quando buscam a integração, transferem parcelas de seu poder que passam a ser exercidas por todos da comunidade. Esta transferência permite que os Estados estendam suas influências aos demais da comunidade, bem como podem se colocar, de modo estratégico, como interlocutores em relação a outros países no cenário internacional.

Na soberania compartilhada, os Estados-membros não renunciam à sua soberania, tão-somente passam a exercê-la de forma compartilhada com os outros Estados naquelas matérias expressamente previstas nos tratados; estes, sim, são a base para a definição da distribuição de poderes (competências) entre a Comunidade e seus membros. Esta limitação, que é uma característica da soberania compartilhada, é assegurada pelo chamado princípio da subsidiariedade.

Em suma, neste modelo, não há perda da soberania, muito menos perda de parte desta, pois soberania não é algo que se possa ter em maior ou menor grau: se é Estado, logo é soberano. A soberania é uma condição do Estado. O que se propõe é o compartilhamento da soberania.


2. A Soberania na Constituição

A Constituição Federal brasileira, em seu artigo 1º, expõe quais são os fundamentos do Estado. Dentre esses fundamentos está a soberania, princípio que vêm ratificados pelo artigo 4º. Como já fora analisado no tópico anterior, o conceito jurídico de soberania não é imutável, pelo contrário, seu conceito vem sendo alterado de acordo com as configurações do próprio Estado. Esta alteração amolda-se, assim, às necessidades de construção de espaços supranacionais, conforme indica o Parágrafo Único do artigo 4º, da CRFB. Com efeito, as críticas recaem sobre a ausência de um dispositivo constitucional mais objetivo que dispusesse, de forma clara, acerca da posição dos tratados internacionais no ordenamento jurídico interno brasileiro, bem como sobre um processo simplificado de internalização das normas surgidas no MERCOSUL e, também, sua hierarquia interna. As críticas, que partem de autores constitucionalistas, internacionalistas e até os processualistas [33], de forma geral, são direcionadas à ausência destes dispositivos fato que tem gerado uma certa instabilidade nos julgados em razão, exatamente, de não haver uma vinculação legal. Como saída, temos a hermenêutica constitucional como subsídio metodológico para se extrair da omissão alguma regra materialmente constitucional. Se Konrad Hesse analisasse esta omissão, diria ele que cabe ao intérprete o exercício hermenêutico. Não seria necessário, portanto, uma reforma no texto constitucional que dispusesse, com objetividade, sobre estas questões. Esta é a função do intérprete, segundo Hesse [34]. Entende que:

Para o Direito Constitucional, interpretação tem importância decisiva, em vista da abertura e amplitude da Constituição, problemas de interpretação nascem mais freqüentemente do que em âmbitos jurídicos, cujas normatizações entram mais no detalhe. (...) Tarefa da interpretação é encontrar o resultado constitucionalmente "exato" em um procedimento racional e controlável, fundamentar esse resultado racional e controlavelmente e, deste modo, criar certeza jurídica e previsibilidade – não, por exemplo, somente decidir por causa da decisão. (35)

Como se sabe, a interpretação da Constituição possui um caráter elástico, devido à sujeição desta a uma cambiante consciência valorativa [36]. Essa interpretação, assim como a aplicação de princípios, utiliza uma metodologia diferente da utilizada na aplicação de regras. Não se quer dizer com isso que os princípios não sejam normas [37]; está é uma designação genérica que engloba regras e princípios [38]. Neste debate, vale trazer as concepções de Dworkin quando demonstra a distinção entre princípios e regras: o que irá diferenciar as regras dos princípios é que na primeira é usado o sistema de tudo ou nada, e no segundo há uma obediência de dimensão, ou seja, de valores [39]. A subsunção se dá quando a regra descreve abstratamente um fato, e esta pode ser aplicada a um fato concreto. Já a aplicação dos princípios é diferente, uma vez que por força do seu aspecto valorativo não há conflito entre eles. A Constituição desempenha importantíssimo papel ao proporcionar estabilidade aos elementos básicos da ordem política e social, impondo-se como fundamento de validade de todo ordenamento jurídico [40].

Com efeito, o sentido gramatical do texto é o limite para a ação do interprete, o qual não pode jamais constituir interpretações que violem o sentido lógico da norma [41]. Como ressalta Hesse:

A doutrina da interpretação tradicional procura, em geral, averiguar a vontade (objetiva) da norma ou a vontade (subjetiva) do legislador ao ela ter em conta o texto, o trabalho preparatório, a conexão sistemática da norma, a história da regulação e o sentido e finalidade, o "telos", a "ratio" da norma. (42)

Assim, Hesse sugere que se busque a mens lege, a vontade do legislador. Não obstante, este aspecto não retira a importância da atividade interpretativa, principalmente em nível constitucional, onde existe o emprego de um grande número, de termos polissêmicos e conceitos indeterminados como o de soberania [43]: "Pelo contrário, é exatamente esta atividade do intérprete que mantém vivo o texto constitucional, adequando-o à realidade histórica." [44]. Essa atividade do intérprete é que mantém vivo o texto constitucional, permitindo a sua adequação à realidade histórica e que supre as omissões positivas constitucionais [45].

Como foi visto, o conceito de soberania está inserido, expressamente, no texto constitucional brasileiro; entretanto, seguindo as lições de Hesse, caberia um exercício de interpretação em face deste conceito, interpretação esta, vinculada com os problemas concretos [46].

O Parágrafo Único do art.4º, da CRFB, por exemplo, que dispõe sobre uma cláusula integracionista, é uma típica norma programática [47]. As maiores críticas advindas dos analistas internacionais e juristas internacionalistas recaem sobre o fato de a CRFB/88 não ter explicitado, em seu texto, mecanismos que permitiriam ao Brasil realizar uma integração, tal qual principiologicamente se propõe, com os seus parceiros da América Latina.

Sabe-se que os integrantes do MERCOSUL optaram por uma cooperação intergovernamental, sem a existência de um órgão dotado de supranacionalidade ou de um Tribunal Permanente com jurisdição obrigatória nos países-membros; entretanto, se o MERCOSUL optasse por outra disposição, há quem entenda não haver, em questão do alinhamento da soberania como fundamento do Estado, qualquer empecilho para a formação de uma ordem supranacional, pois:

(...) A Constituição determina que se buscará a integração, sem especificar o modelo a ser adotado. O que se pode afirmar é que uma vez dado o passo na direção indicada pela norma não é mais possível voltar atrás. As normas programáticas, como salienta Canotilho possuem uma vinculação, na qualidade de limites materiais negativos fazendo existir um direito subjetivo de exigir do Poder Público que se abstenha de praticar atos que lhe contrariem, justificando sua censura sob a forma de inconstitucionalidade. [48]

Desta forma, também o art. 1º, I, CRFB, deve ter a sua regra interpretada de acordo com o conteúdo da norma integracionsta. Pensa o autor acima citado que o conceito de soberania deve ser interpretado sem a exclusão da possibilidade dos sujeitos soberanos, sem perder sua soberania; devem estar obrigados por regras jurídicas que não podem negociar de forma unilateral, cedendo parte de seus poderes a órgãos supranacionais [49].

Pensando nesta questão, Celso Lafer propõe uma analogia entre o processo integracionista dos Estados e um contrato plurilateral, como os contratos societários, tendo como elemento fundamental o objetivo comum. Como já fora assinalado, não se pode dizer que os Estados-membros perdem sua soberania por participarem de uma ordem supranacional, da mesma forma que os sócios de uma empresa não perdem a liberdade em constituí-la [50].

Uma das relevantes características da soberania dos Estados é a existência do Poder Constituinte, originário e derivado, sobremaneira o derivado reformador, que será resguardado sempre que o Estado, livremente, puder modificar as bases de sua organização política e social, bem como o seu ordenamento jurídico. A mudança que o Brasil terá que fazer para adoção de um direito comunitário mercosulino, não implicará reformar a norma geral, que é consagradora da soberania, mas, sim, nas várias normas definidoras de competências.

A Constituição gera uma série de entes e órgãos encarregados, cada um deles, de parcelas do poder estatal, o que se pode concluir que o espaço para expectativa supranacional é diminuído. Por esta razão, assevera-se que qualquer iniciativa nesse sentido deverá ser antecedida por uma mudança das normas constitucionais distribuidoras de competências.

No Brasil, existe uma corrente doutrinária bastante forte que defende que o Tratado de Assunção e os Protocolos de Ouro Preto e de Brasília, que constituem o MERCOSUL, não poderiam ser igualados aos outros tratados assinados pelo Brasil, pois significam a realização de um programa constitucional, e possuiria, portanto, status diferenciado. Desta forma, eles poderiam ser alterados, mas as alterações não poderão diminuir a integração já produzida até o momento. Esta tese em muito se assemelha com aquela da corrente doutrinária que defende a equiparação dos tratados internacionais de direitos humanos à norma constitucional, no que tange especificamente à interpretação que se faz às normas, respectivamente, do art. 4º, Parágrafo Único, e do art. 5º, §2º, da CRFB. Daí se dizer que:

Sendo assim, qualquer juiz monocrático pode deixar de aplicar norma que venha a ferir os tratados constitutivos do Mercosul, pondo em risco a integração já obtida. Da mesma forma, estas normas poderão ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal. [51]

De acordo com este entendimento, o mandamento programático constitucional ficaria, então, prejudicado se uma lei ordinária derrogasse qualquer norma implementada por estes tratados, pois interferiria na integração já alcançada. Defendem os adeptos desta corrente que uma lei deste teor pode ser declarada inconstitucional, por ferir o mandamento da Constituição. Clèmerson Merlin Clève denomina este fenômeno por controle de constitucionalidade de norma pressupostas, que pode ser exercido tanto por via difusa, quanto pela via concentrada [52].

Maurício Andreioulo, em seu livro, Poder Constituinte Supranacional: esse Novo Personagem, desenvolve, com maestria, todas as questões até aqui apresentadas sobre a soberania. Conclui a Parte I de seu livro fazendo uma análise da evolução do conceito de soberania até se chegar ao conceito de soberania compartilhada. Vale trazer abaixo citado, a título de conclusão, uma interessante abordagem para se estudar as relações entre o direito interno e o direito internacional, e que tem na soberania um elemento de acomodação, de mediação para esta relação:

A dogmática tradicional que sustentou por tanto tempo a teoria do Poder Constituinte esgotou-se com a mudança de paradigmas, o que se deu principalmente na segunda metade do século.

A transmutação dos seus elementos fundantes acarretou novos desafios na configuração daquele instituto, o que se deu através da manutenção de alguns de seus princípios basilares, como, por exemplo, na idéia de que há ali certas limitações imanentes.

No entanto, o mosaico proposto pela evolução do concerto mundial exige mais do que uma mera recomposição, exige a reinauguração do Poder Constituinte sob novos (e autônomos) pilares.

Dessa forma, o reconhecimento do Poder Constituinte Supranacional passa tanto pela teoria constitucional daquele problema quanto pela visão multidisciplinar (cidadania, pluralismo, soberania). Seja como for, ambas as ocasiões refletem a realização daquele instituto. [53]

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Sobre a autora
Mariangela Ariosi

Sou tabeliã e registradora no interior do estado de São Paulo. Carioca, fiz meus estudos no RJ; mestrado em Direito na UERJ. Cursei o doutorado em Direito na USP, sem concluir a Tese, interrompido pois estava estudando para vários concursos, todos na área de cartório. Cursei algumas Pós na área cartorária e atualmente me preparo para retornar e concluir o doutorado. Também , fui professora de Direito durante quase 20 anos em algumas universidades do RJ como UCAM, São José, Castelo Branco e UNIRIO, dentre outras. Atualmente continuo estudando e escrevendo sobre temas afetos às atividades cartorárias. Estou a sua disposição para conversarmos sobre esses temas e trocar informações.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARIOSI, Mariangela. Direito Internacional e soberania nacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 498, 17 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5942. Acesso em: 29 mar. 2024.

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