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A doutrina clausewitziana da guerra ou a apologia política do militarismo estatal em função da "raison d’état"

11/09/2004 às 00:00
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Inicio este artigo formulando uma questão que certamente passará pela mente de muitos leitores: o pensamento de Clausewitz é atual ou inatual neste alvorecer do Terceiro Milênio? Para responder faz-se necessário tecermos algumas considerações prévias.

Carl von Clausewitz (1780-1831) foi um general prussiano cuja magnum opus, entitulada "Da Guerra", teve como referencial histórico as Guerras Napoleônicas. Seu pensamento militar foi moldado pelas incessantes campanhas militares levadas a cabo pelo "Pequeno Corso" por toda a Europa ao longo de cerca de vinte anos.

O supracitado livro foi publicado em 1832, e, ainda hoje, é muito lido por especialistas e não-especialistas, constituindo-se, assim, num clássico das literaturas militar e política contemporâneas.

Conforme bem destacado pelo sociólogo e filósofo Anatole Rapoport, Clausewitz absorveu a lição napoleônica de que a essência da política e do poder militar está na habilidade de se conseguir a destruição física do adversário.

Em outras palavras, Clausewitz, segundo o supracitado pensador russo, naturalizado norte-americano, ao mesmo tempo que rejeita a concepção da "guerra pela guerra", Clausewitz afirma que ela - guerra - é parte integrante da existência humana, constituindo-se, portanto, num dos instrumentos necessários da Política. Este é, em essência, o real significado da sua célebre frase "a guerra é a continuação da política por outros meios".

A principal conseqüência da concepção clausewitziana de que a guerra é um dos instrumentos da Política é considerar que ela - a guerra - deve ser conduzida com um único propósito, qual seja a total aniquilação militar e política do inimigo. Para Clausewitz qualquer outro objetivo é imoral e não-condizente com a "razão suprema" do estado, qual seja, a sua sobrevivência física.

O pressuposto básico da doutrina clausewitziana da guerra é uma "simetria equipolar" formal dos agentes do sistema internacional - os Estados-Nações - no tocante ao poderio militar individual de cada Estado-Nação, isto é, a existência de um equilíbrio prévio de condições quanto aos meios de aquisição, manutenção e distribuição do poder militar dentre os Estados-Nações.

Em suma, o modelo conceitual de guerra clausewitziano vincula-se à raison d’état e tem como referencial histórico empírico o "concerto" dos Estados-Nações europeus cuja liderança política tem a supremacia frente à liderança militar dos respectivos estados. A partir daí, constrói um modelo teórico onde propõe que a ratio da guerra é a destruição militar do adversário e a sua conseqüente submissão política ao vencedor.

Duas características da doutrina clausewitziana da guerra merecem ser mencionadas.

A primeira característica é que a doutrina clausewitziana da guerra é inequivocadamente conservadora no âmbito político. Tal fato não é surpreendente se considerarmos que Clausewitz era, em termos políticos e sociais, um conservador ferrenho. Entretanto, ressalte-se que o conservadorismo de Clausewitz não implica que a sua filosofia da guerra seja uma apologia do militarismo irrestrito ou que enfatize a sua total e absoluta independência ou desvinculação dos objetivos e interesses do Estado.

Ainda na esteira do magistério de Anatole Rapoport, uma leitura atenta da obra de Clausewitz resulta na conclusão que ele prioriza a autoridade civil em detrimento da autoridade militar.

A principal conseqüência da subordinação da autoridade militar à autoridade civil é que a formatação estrutural e funcional das forças armadas, aí incluindo os métodos de recrutamento e preparação dos membros das forças armadas e o desenvolvimento, aquisição e emprego dos armamentos militares, se dá unicamente em função das necessidades fundamentais e interesses supremos do Estado.

Apesar de ser uma doutrina de guerra nitidamente conservadora e de origem "burguesa", a doutrina clausewitziana foi, paradoxalmente, absorvida pelos teóricos militares da antiga URSS (1917-1991), em especial, no tocante à ênfase de um confronto militar inevitável e total entre os sistemas comunista e capitalista.

A outra característica da doutrina clausewitziana da guerra é ser, ou pelo menos pretendo ser, uma teoria descritiva da guerra sem quaisquer pretensões morais ou sociológicas. Neste contexto, ao procurar construir uma concepção de guerra sem componentes prescritivos de qualquer espécie, Clausewitz pretende que a guerra seja encarada como um fenômeno mensurável, e, portanto, cognícivel em termos objetivos dos interesses e objetivos estatais.

Uma vez feitas as considerações supra, penso ser possível responder a questão feita no início deste artigo

A tentativa de Clausewitz em construir uma doutrina da guerra sem levar em considerações quaisquer elementos subjetivos, morais ou sociais, externos ao fenômeno da guerra ainda é pertinente e coerente em termos estritamente epistemológicos. Sua idéia de que os conflitos militares devem, necessariamente, ser encarados como parte do sistema internacional ainda é válida, bem como a sua defesa intransigente da subordinação da autoridade militar à autoridade civil. Finalmente, o seu reconhecimento, ainda que implícito e vago em termos conceituais, de que as guerras expressam a diversidade das sociedades envolvidas e contribuem para a sua transformação também é uma contribuição importante de Clausewitz para o estudo da guerra enquanto fenômeno histórico.

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O componente ou o aspecto que resta superado na doutrina clausewitziana da guerra é a sua defesa apologética do uso irrestrito do poder militar do Estado com a finalidade de destruir o poderio militar dos Estados adversários. Em outras palavras, num mundo pós-Guerra Fria onde os conflitos militares ainda são dominados pela ameaça inequívoca de emprego das Armas de Destruição em Massa (ADM) combinado com a manipulação ideológica explícita de componentes religiosos ou étnico-culturais, os líderes políticos e militares não podem, em sã consciência, conduzir os seus países à um estado de guerra total, sob pena de ocorrer um hecatombe global ou algo muito próximo disso.

Neste diapasão, o surgimento das Armas de Destruição em Massa (ADM) e a sua conseqüente difusão cada vez maior por um sem número de Estados-Nações, possibilitou, pela primeira vez na História do Homem, que o Estado fosse aniquilado sem que houvesse uma vitória militar decisiva.

A doutrina clausewitziana da guerra foi formulada tendo como referencial o sistema internacional baseado nos Estados-Nações e tendo como uma das suas premissas fundamentais o processo de tomada de decisões de maneira racional.

Neste contexto, Clausewitz, ao formular sua doutrina no início do século XIX d. C., evidentemente não poderia prever o efeito desestabilizador e deletério das ideologias políticas e do radicalismo religioso que grassaram ao longo do século XX d. C. no tocante ao processo de tomada das decisões no âmbito das relações internacionais vigentes nos dias de hoje, bem como não vislumbrou o grande perigo, em termos globais, da proliferação em larga escala das Armas de Destruição em Massa (ADM) e o seu eventual uso indiscriminado por Estados-Nações cujas lideranças civis não tem o controle absoluto sobre a liderança do aparato militar.

De fato, e à guisa de conclusão deste artigo, considero que a aplicação da doutrina clausewitziana da guerra em sua forma pura, neste início do século XXI d. C., é, antes de mais nada, extremamente perigosa, na medida em que a ordem internacional atualmente vigente é um conglomerado multi-cultural instável e conduzido, não raro, de maneira irracional conforme interesses inconfessos e não-fundamentados exclusivamente nos reais interesses estatais, bem como a liderança militar, na grande maioria dos países que compõem o sistema internacional vigente, não se subordina à liderança civil, muito ao contrário.


Referências bibliográficas

BOUTHOUL, Gaston e CARRÈRE, René: O desafio da Guerra. Tradução do Cel. Francisco Fernandes de Carvalho Filho. Rio de Janeiro: Ed. Biblioteca do Exército, 1979.

EVANS, Graham e NEWHAM, Jeffrey: The Penguim Dictionary of Internacional Relations. Reino Unido: Penguin Books, sem data.

KISSINGER, Henry: A Diplomacia das Grandes Potências. 3ª. ed. revista. Tradução de Saul S. Gefter e AnnMary F. Perpétuo. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora; Ed. Francisco Alves, 2001.

RAPOPORT, Anatole: Prefácio. Tradução de Maria T. Ramos. In: Carl von Clausewitz: Da Guerra. Tradução de Teresa Barros P. Barroso. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1979.

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Sobre o autor
Ricardo Luiz Alves

licenciado em História pela PUC/RJ, bacharel em Direito pelo Centro Integrado de Ensino Superior do Amazonas (CIESA), servidor da Justiça do Trabalho em Manaus (AM)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Ricardo Luiz. A doutrina clausewitziana da guerra ou a apologia política do militarismo estatal em função da "raison d’état". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 431, 11 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5674. Acesso em: 28 mar. 2024.

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