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Utopias penitenciárias.

Projetos jurídicos e realidade carcerária no Brasil

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05/06/2004 às 00:00
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A História do Sistema Penitenciário brasileiro foi marcada por episódios que revelam e apontam para o descaso com relação às políticas públicas na área penal, como também para a edificação de modelos que se tornaram inviáveis quando de sua aplicação.

Resumo: Este texto pretende inserir na discussão historiográfica sobre violência, uma temática pouco explorada à nível histórico: o sistema penitenciário. Para isso escolhi uma questão que considero polêmica - as utopias penitenciárias - projetos idealizados por juristas no século XIX e XX com o intuito de sanear o problema da superlotação carcerária.

Destaco o projeto da Cidade Penitenciária do Rio de Janeiro, o selo penitenciário e as Colônias de Defesa Social, nos quais pretendia-se dar ao preso condições ideais de vida no interior do cárcere. Ou então, soluções paleativas, como a utilização de lazaretos ou abrigos para tuberculosos. Projetos e soluções, que com o transcorrer do tempo, tornaram-se inviáveis.

Palavras-chaves: Utopia; Sistema Penitenciário; condições carcerárias; idéias jurídicas; violência.

Abstract: This text intend to insert into the historiographical discussion about violence a thematic little explored on the historical level: the penitentiary sistem.For that, I chosed an argument that I considered to be polemic: the utopias of penitentiary sistem - projects idealizeded by lawyers on the XIX and XX century, intending to sanitize the problem of overcrowded prison.

I highlight the following projects: "Cidade Penitenciária do Rio de Janeiro", the "Selo Penitenciário" and the "Colônias de Defesa Social", whose intents were to give the prisoner idealistic terms of life inside the prison. Or else, palliative solutions, as the utilization of Pesthouse or Asylum for tuberculous. Projects and solutions that, as time´s gone by, became unfeasible.

key-words: Utopia; Penitentiary Sistem; Jails conditions; Juridical ideas; violence.


INTRODUÇÃO

A História do Sistema Penitenciário brasileiro foi marcada por episódios que revelam e apontam para o descaso com relação às políticas públicas na área penal, como também para a edificação de modelos que se tornaram inviáveis quando de sua aplicação.

A prisão, símbolo do direito de punição do Estado, teve, quando de sua implantação no Brasil, utilização variada: foi alojamento de escravos e ex-escravos, serviu como asilo para menores e crianças de rua, foi confundida com hospício ou casa para abrigar doentes mentais e, finalmente fortaleza para encerrar os inimigos políticos. Monumento máximo de construção da exclusão social, cercado por muros altíssimos ou isolados em ilhas e lugares inóspitos, escondia uma realidade desconhecida, e às vezes aceita pela população: os maus-tratos, a tortura, a promiscuidade e os vícios, uma representação nada agradável do universo carcerário.

Por outro lado, a prisão, vista sob a ótica de aparelho reformador dos indivíduos, recebeu atenção preferencial dos juristas preocupados em edificar modelos perfeitos para o bom gerenciamento da sociedade. São esses modelos, registrados sob a forma de leis, decretos e códigos, que nos possibilitam resgatar as utopias penitenciárias de cada período da história brasileira, e verificar como foram estruturadas as práticas de dominação, na medida em que se estabeleceram relações de força, poder e violência, presentes no tecido social. Sob essa ótica, o sistema penitenciário deve ser observado sob seu aspecto de instituição estruturada com base no poder de punição do Estado e reveladora do aparato de exclusão social.

Nesse sentido, pretendemos nas próximas páginas relatar algumas tentativas para a viabilização do sistema penitenciário brasileiro, calcado em modelos e projetos que se tornaram irrealizáveis em confronto com a realidade carcerária.


A prisão no Brasil: os primeiros passos

A primeira menção à prisão no Brasi foi dada no Livro V das Ordenações Filipinas do Reino, Código de leis portuguesas que foi implantado no Brasil durante o período Colonial. O Código decretava a Colônia como presídio de degredados. A pena era aplicada aos alcoviteiros, culpados de ferimentos por arma de fogo, duelo, entrada violenta ou tentativa de entrada em casa alheia, resistência a ordens judiciais, falsificação de documentos, contrabando de pedras e metais preciosos (ORDENAÇÕES FILIPINAS, 1870, P. 91) [1].

A utilização do território colonial como local de cumprimento das penas se estende até 1808, ano marcado por mudanças significativas rumo à autonomia legal e aos anseios de modernidade, tão em voga naqueles tempos.

A instalação da primeira prisão brasileira é mencionada na Carta Régia de 1769, que manda estabelecer uma Casa de Correção no Rio de Janeiro (SILVA MATTOS, 1885) [2].

Segundo os rumos da jurisprudência em todo o mundo, a implantação de um sistema prisional se fazia necessária no Brasil. A assimilação da nova modalidade penal se fez pela constituição de 1824 que estipulou as prisões adaptadas ao trabalho e separação dos réus, pelo Código Criminal de 1830 que regularizou a pena de trabalho e da prisão simples, e pelo Ato Adicional de 12 de agosto de 1834, de importância fundamental, que deu às Assembléias Legislativas provinciais o direito sobre a construção de casas de prisão, trabalho, correção e seus respectivos regimes.

A opinião pública também tomou parte nos debates sobre a implantação do regime penitenciário em nosso país. Uma acalorada discussão se fez em torno das formas como esse regime deveria ser adotado. Missões especiais foram enviadas a países como Estados Unidos, Inglaterra e França, com o objetivo de verificar as verdadeiras circunstâncias de aprisionamento e gerenciamento das chamadas prisões-modelo [3].

A Constituição de 1824 estabelecia que as prisões deveriam ser seguras, limpas, arejadas, havendo a separação dos réus conforme a natureza de seus crimes (CONSTITUIÇÃO DO IMPÉRIO DO BRASIL, ARTIGO 179) [4], mas as casas de recolhimento de presos do início do século XIX mostravam condições deprimentes para o cumprimento da pena por parte do detento. Um exemplo deste quadro era a Prisão Eclesiástica do Aljube, localizada na cidade do Rio de Janeiro e instituída pelo Bispo Antonio de Guadalupe após 1735. Com a vinda da família, esta área de reclusão foi transformada em prisão comum, recebendo, posteriormente, o nome de Cadeia da Relação (1823), enquanto que a cadeia passou a abrigar a Câmara dos Deputados. Somente em 1856 é que a Cadeia da Relação foi desativada transformando-se em casa residencial.

Os vários testemunhos sobre a tão famigerada Prisão do Aljube ou da Relação dão-nos o quadro do sofrimento dos presos, apontando para uma história que ainda precisa ser escrita. José Vieira Fazenda, em artigo memorável publicado na Revista do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro, cita o relatório da comissão nomeada para visitar as prisões em 1828 que apontou para o aspecto maltrapilho e subnutrido dos presos. Além disso o edifício projetado para abrigar 15 pessoas, comportava, naquela data, cerca de 390 pessoas (FAZENDA, 1921, p. 426) [5].

Essa casa de reclusão, como tantas outras nos primeiros anos do século XIX, abrigava categorias de presos cujos crimes eram diversos; havia alí paisanos e militares, indivíduos processados por delitos comuns, presos por qualquer motivo ou por nenhum motivo declarado.

O cotidiano carcerário desta prisão revela, além do descaso público, lugar-comum em relação às prisões, aspectos sub-humanos que apontam para a precária cidadania ou sub-cidadania dos condenados sociais. Mesmo assim, teoricamente, buscava-se o modelo de enclausuramento perfeito.

A prisão, a partir de uma visão utópica, tinha como principais metas:

- modificar a índole dos detidos através da recuperação dos prisioneiros;

- reduzir o crime, a pobreza e a insanidade social;

- dirigir suas finalidades para a cura e prevenção do crime;

- reforçar a segurança e a glória do Estado (Rothman, 1991, p.30) [6].

Apesar destes objetivos tão claros, os órgãos públicos pouco se interessavam pela administração penitenciária, que ficava entregue ao bel-prazer dos carcereiros que, por sua vez, instituiam penalidades aos indivíduos privados de liberdade. Assim, a implantação dessas casas foi mascarada por um realidade brutal, possível de ser observada só pelas pessoas que lá conviviam diariamente. Utopias carcerárias pensadas pelos juristas de época entravam em colisão com os poderes presentes na realidade pentenciária.

Por sua vez, o Código Criminal do Império admitiu duas espécies de penas: a prisão simples e a prisão com trabalho, variando a duração de ambas conforme a penalidade aplicada, desde a prisão perpétua até a reclusão de alguns dias. Mesmo com a insistência nesse modelo penitenciário, o artigo 49 do Código Criminal estabelecia que, enquanto não houvesse condições para o cumprimento da pena de prisão com trabalho, ela deveria ser substituída pela pena de prisão simples, com acréscimo da sexta parte do tempo da penalidade prevista. Essa modalidade se defrontou com dificuldades para sua implantação, já que na maioria dos cárceres, as características humildes dos edifícios não comportavam a aplicação de tal sistema inovador: eram casas alugadas e sem acomodações próprias, principalmente as do interior, o que dificultava a instalação de oficinas de trabalho para os presos.

Todo o arcabouço legislativo montado pela regulamentação das prisões e pelo conjunto de leis, decretos e códigos não humanizou o sistema penitenciário; muito pelo contrário, a quantidade de novos mandamentos sobre a conduta e direção das casas de aprisionamento fez com que se perdesse a finalidade da origem da prisão, transformando a instituição em um mero aparelho burocrático. Constatamos, dessa forma, que o mau gerenciamento foi uma das causas que, desde a implantação dos cárceres em território brasileiro, impediu que o objetivo de transformar o condenado em uma "nova pessoa" fosse atingido, retornando, assim, após o cumprimento da pena, à readaptação social.


O ideal republicano

O Código Penal de 1890 estabeleceu novas modalidades de penas: prisão celular, banimento, reclusão, prisão com trabalho obrigatório, prisão disciplinar, interdição, suspeição e perda do emprego público e multa. O artigo 44 do Código considerava que não haveria penas perpétuas e coletivas. As penas restritivas de liberdade individual eram temporárias e não deveriam exceder trinta anos. Eram elas: Prisão celular, Reclusão, Prisão com trabalho obrigatório e Prisão disciplinar.

A prisão celular, menina dos olhos dos juristas na época e grande novidade da revisão penal de 1890 foi considerada punição moderna. Foi sob essa modalidade penal que se construiu a abóbada de todo o sistema repressivo brasileiro (MORAES, 1923, p.49) [7].

Os artigos 50 e 51 do Código Penal de 1890 regulamentavam algumas práticas para a execução da pena: o condenado à prisão celular por tempo excedente a seis anos que houvesse cumprido metade da pena, mostrando bom comportamento, poderia ser transferido para alguma penitenciária agrícola, a fim de cumprir o restante da sentença. O condenado a esta mesma pena incorria em ser interditado nos seguintes ítens: suspensão de todos os direitos políticos, perda do emprego e perda de todas as dignidades e condecorações.

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A estrutura penitenciária ideal a partir deste novo código passou a exigir os seguintes quesitos:

- segurança dos detentos;

- higiene apropriada ao recinto da prisão;

- segurança por parte dos vigilantes e guardas;

- execução do regime carcerário aplicado;

- inspeções frequentes às prisões.

A questão penitenciária tratava, do ponto de vista ideal, mais do que nunca, das funções que a pena deveria exercer na vida social. Toda essa boa vontade entrou em colisão com as condições deprimentes dos presídios brasileiros, detectáveis através de estudos e depoimentos de época.

Os problemas referentes à execução das penas foram previstos nas disposições gerais do Código ao estabelecer que, enquanto não entrasse em inteira execução o sistema penitenciário, a pena de prisão celular, como a de prisão com trabalho, seriam cumpridas nos estabelecimentos pentienciários existentes, segundo o regime atual; nos lugares onde elas não existissem seria convertida em prisão simples, com aumento da sexta parte do tempo, exceto o tempo em que o condenado passasse trabalhando em estradas públicas, pois esse tempo deveria ser considerado como passado na penitenciária, não estando, portanto, sujeito ao aumento da sexta parte.

O regime carcerário provisório prosseguia.

A persistência na implantação do regime de trabalho dificultava a sentença proferida para a execução da pena, já que a desorganização, a falta de produtividade, a ausência de matérias-primas e de utensílios para o labor interno nas oficinas da prisão eram uma constante. O detento tornou-se desocupado, promíscuo e preguiçoso. Nesse sentido, de que valia o aparato carcerário, se a meta de recuperar o preso estava sendo realizada erroneamente?

Os críticos desse sistema eram muitos. Dentre eles, destacamos Antonio Bezerra, que em 1900 publicou um projeto de reforma do Código Penal, cujo conteúdo era específico sobre a reforma do trabalho penal. Na opinião de Bezerra a escolha do ofício, pelo preso, conferia um caráter alheio que a ciência penitenciária considerava como trabalho penal. Ao seu ver era um erro nomear a "prisão com trabalho" de "pena restritiva de liberdade", mero formalismo (BEZERRA, 1900, p. 135) [8].

Além disso, o trabalho do preso deveria ter, dentre outras finalidades, não somente sua futura recuperação, mas também ganhos salariais, dependendo da classe a que pertencesse o preso. A sugestão era de que seu salário fosse dividido em três partes: a primeira recolhida ao tesouro contribuindo para o custeio das despesas da penitenciária; a segunda seria utilizada em proveito do condenado durante o tempo de sua prisão ou de sua família;e a terceira, entregue aos liberados, pela comissão do patronato. Sugestões essas que foram colocadas em prática em 1910 (DECRETO NO 8233 DE 22 DE DEZEMBRO DE 1910) [9].

Tínhamos, assim, uma regulamentação quanto à forma de pagamento pelo trabalho realizado pelo preso, sem estar especificado o tipo de trabalho, a quantidade de horas dedicadas ao ofício, a insalubridade, se houvesse, entre outros fatores.

Em meio às reformas carcerárias do período, o governo autorizou em 1893 a fundação da Colônia Correcional da Fazenda Bôa Vista, na Paraíba, considerado como local ideal: uma fazenda. Esta colônia foi edificada sob uma antiga colônia militar e deveria receber os indivíduos de qualquer sexo que estivessem vagando pela cidade, em ociosidade; ou os que andassem armados, incutindo o terror.

Os criminosos sociais, os vadios, vagabundos e capoeiras, tinham, assim, legislação e espaço específico muito bem elaborado para a punição nas chamadas colônias correcionais, criadas especialmente com a finalidade de circunscrever a marginalidade das cidades. Outras colônias seguiram o modelo original. Foi o caso da Colônia Correcional de Dois Rios, criada em 1908, com a finalidade de manter as classes perigosas distantes do convívio social. Lá seriam depositados os "ociosos", "imorais" e ‘reincidentes". Além disso, a Colônia de Dois Rios, quando da sua implantação, foi acompanhada da tentativa de implantação de um núcleo de trabalhadores pobres das cidades que habitariam o espaço rural da colônia e que, para isso, receberiam passagem gratuita, abrigo, e consentimento de moradia, além de trabalho por um prazo máximo de um ano. Com essa medida tentava-se, ao máximo, limpar as cidades através da reclusão social, tanto dos criminosos, como da população carente. Essa medidas visavam uma estratégia repressiva "avançada" na legislação, na medida em que, aliavam a perseguição de criminosos, mas também de pobres e despossuídos, potencialmente considerados perigosos.

Com o passar do tempo, a Colônia de Dois Rios passou a receber qualquer tipo de infrator. A colônia recebia pessoas indiscriminadamente: brasileiros ou estrangeiros, sem passagem pela polícia, cuja única finalidade era a residência na colônia, pois se encontravam desempregados e sem recurso na cidade.

As idéias e princípios originais confrontaram-se com a mendicância crescente principalmente na cidade do Rio de Janeiro. As colônias para os criminosos, não passavam de simples depósitos de indivíduos renegados pela sociedade, principalmente de negros e mulatos, rejeitados pelo contexto econômico-social e dirigidos à reclusão em cárceres ou asilos. O Asilo dos Alienados de São João de Deus, fundado em Salvador em 1874, para os loucos, foi um exemplo concreto dessa prática. O asilo registrou um contingente de maioria mestiça e negra: ao todo eram 96 "alienados" encarcerados, sendo que 36 eram negros e 31 mulatos e pardos, enquanto que o número de brancos representava a minoria, eram 29 (CARNEIRO, 1993, p. 149) [10].

No imaginário jurídico a prisão ou colônia correcional deveria causar temor, para que a sociedade se sentisse amedrontada frente ao poder policial ou judicial. A ocultação do condenado nas prisões deveria introduzir no imaginário popular a sensação de que todos eram potencialmente condenáveis e sujeitos ao suplício carcerário. Era a alma o alvo preferencial da punição.


Modernidade e continuidade

No início do século XX a legitimidade social da prisão ganhou variações para um melhor controle da população carcerária. Surgiram tipos modernos de prisões adequadas à qualificação do preso segundo categoriais criminais: contraventores, menores, processados, loucos e mulheres.

Os asilos de contraventores, tinham por finalidade o encarceramento dos ébrios, vagabundos, mendigos, em suma, os anti-sociais.

Os asilos de menores se propunham a empregar uma pedagogia corretiva à delinquência infantil. Pressupondo a inocência do réu, foi proposto uma prisão de processados, considerando-se não conveniente misturá-los com delinquentes já condenados ou provavelmente criminosos.

Os manicômios criminais foram idealizados para aqueles que sofriam alienação mental e requeriam um regime ou tratamento clínico enquanto que os cárceres de mulheres, seriam organizados de acordo com as indicações especiais determinadas por seu sexo.

Percebemos, nesta forma de distribuição, uma tentativa de racionalização do espaço, adequando-o à tipologia do crime tendo por critério o grau de infração e periculosidade do réu. Com relação às legislações anteriores, houve uma modificação positiva, significativa sobre o fato de se pensar um espaço apropriado para mulheres e menores. A separação do réu, levando-se em conta o sexo e a idade também deve ser observado pelo seu lado técnico. Ao isolar em lugar específico categorias específicas de presos, forma-se um saber mais aprimorado sobre os indivíduos e o controle sobre seus corpos torna-se mais direto e elaborado.

Esse novo mecanismo, por outro lado, tinha por objetivo reforçar a ordem pública, protegendo a sociedade através de uma profilaxia apropriada: o isolamento em um espaço específico.

A utopia prisional passou a ceder algum direito-benefício a certos presos, que se defrontaram com as invenções do surcis e da condicional, que davam liberdade ao preso de "bom comportamento", ou seja àquele que tivesse cumprido parte da pena.

No entanto, o princípio do isolamento dos detidos por categorias criminais entrou em choque com o cotidiano da realidade carcerária, o que impossibilitava, em parte, a aplicação dessas modalidades. Por exemplo, na Colônia Correcional de Dois Rios, as mulheres condenadas eram atendidas por um homem; dormiam em edifício separado, mas quando se ocupavam em lavar a roupa, tinham de atravessar os lugares destinados aos presos de sexo masculino, com grande prejuízo para a "ordem" e "moralidade" do presídio (RELATÓRIO DO CONSELHO PENITENCIÁRIO, 1927) [11].

Outro fator a ser considerado quanto à separação do réu na prisão, era o fato de que deveria levar-se em conta a índole, antecedentes e grau de criminalidade do condenado. A preocupação com a índole do indivíduo revela a preocupação com o caráter, inclinação, tendência, temperamento e propensão ao crime, estipulado através do pré-julgamento da personalidade do preso através da análise de sua fisionomia.

Medidas paliativas também eram tomadas pela direção dos presídios, que viam na punição e no castigo aos presos, formas de suprir as deficiências operacionais dos presídios que, na prática, não ofereciam condições adequadas para a recuperação do delinquente. Na tentativa de "administrar" a degeneração de alguns e a sublevação de outros, João Pires Farinha, diretor da Casa de Correção do Distrito Federal (RJ), mandou construir em 1907 três celas fortes para nelas serem recolhidos os sentenciados classificados por ele de "incorrigíveis". Na sua opinião, estes deveriam ser isolados visto que alguns eram "verdadeiros degenerados, que absolutamente não se corrigem com os castigos impostos pelo regulamento, achando-se ainda em construção mais oito" (RELATÓRIO DA CASA DE CORREÇÃO DO DISTRICTO FEDERAL, 1908) [12].

Entendemos que a profilaxia se fazia, portanto, em dois estágios: primeiramente apelava-se para os castigos que, no caso de insatisfatórios, conduziam ao isolamento. Medida de grande relevância para o bem da disciplina, uma vez que a punição e o castigo são modalidades de fácil aplicação no universo da detenção.

Lemos Brito em Os sistemas penitenciários do Brasil, registrou em 1924 a situação em que se encontravam as prisões de algumas capitais brasileiras, apontando-a como "nefasta" e "odiosa". A administração carcerária, com base em suas denúncias, chegou a receber uma série de propostas de reformas sugeridas por vários juristas. O próprio Lemos Brito propôs, em 1925, a adoção de um novo sistema penal. As premissas para tais mudanças tinham como ponto de debate a capacidade das prisões e as condições dos cofres públicos.

Com base nessas idéias, a solução para a condição de detenção das mulheres concentrou-se na proposta de se construir uma prisão nacional, localizada no Rio de Janeiro. Alí seriam recolhidas as mulheres criminosas de todos os estados, condenadas a penas maiores de quatro anos mediante a subvenção de cada estado de origem. Com base nos relatórios penitenciários sabemos que a porcentagem de mulheres no cárcere era muito pequena, em torno de 3% se comparadas aos homens. As causas mais comuns apontadas para a condenação feminina eram: a desordem, vadiagem, furto, ferimentos e infanticídio (LEMOS BRITO, 1933, p. 8) [13].

A criminalidade não era considerada como um problema insolúvel. Poderia ser resolvido através da prevenção. Nesse sentido, foi decretada em 1924, durante o governo Arthur Bernardes, a criação da Escola de Reforma do Direito Penal, destinada a recolher os menores desprovidos de qualquer orientação de vida: menores reincidentes considerados "rebeldes pelos próprios pais".

Esse universo de idéias acolherá a possível solução do problema penitenciário brasileiro, que pleiteava a criação de reformatórios agrícolas visto que a maioria dos delinquentes provinham da região rural. O modelo de prisão apresentado custava menos que o industrial e sanearia as grandes cidades das populações marginais que vinham de fora.

A confrontação entre cidade e campo reforçava, na mentalidade de época, os anseios de progresso e modernização. De um lado temos o mundo rural, identificado como a barbárie e atraso; e do outro,a metrópole, como espaço do "novo" atrelado à idéia de progresso. Tais idéiais reformadoras, estabeleciam a "modernização" como meta histórica, acobertando a prática da violência e do descaso pelo homem. A concepção de cidade pressupunha trabalho, dinamismo e arraigamento a ela. Logo, os preguiçosos, os não-trabalhadores e estrangeiros não pertenciam ao quadro de legalidade dos habitantes das cidades. A partir da construção dos ilegalismos, moldaram-se os significantes de exclusão, que foram interpretados como "anomalias". Aos desiguais a prisão serviria como "válvula de escape". Limpar fazia parte da construção da disciplina e identidade urbana.

A prisão rural como modalidade de profilaxia ao crime não comportava nenhum tipo de inovação, visto que as colônias agrícolas e correcionais destinadas aos menores e vadios já existiam. Nessas colônias o cotidiano era de fugas frequentes, maus tratos do pessoal administrativo, desvio de víveres dos presos, escassez dos meios de comunicação etc. Mesmo assim, os modelos penitenciários das décadas de 20 e 30 buscaram nas colônias agrícolas ou em prisões distantes dos centros urbanos, os locais, por excelência, para o ocultamento da marginalidade à solta nas cidades.

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Sobre a autora
Regina Célia Pedroso

Professora universitária e Doutora em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEDROSO, Regina Célia. Utopias penitenciárias.: Projetos jurídicos e realidade carcerária no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 333, 5 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5300. Acesso em: 23 abr. 2024.

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