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Crime de violação do privilégio postal da União x Constituição Federal de 1988:

atipicidade da conduta em virtude da não recepção constitucional

28/10/2003 às 00:00
Leia nesta página:

I – Introdução.

            1 – Breves considerações acerca das características do Ordenamento Jurídico.

            Numa concepção bastante simplificada, entende-se que o Ordenamento Jurídico é um complexo de normas jurídicas, sistematizado e completo, que se constitui em uma unidade, onde as normas integrantes se relacionam de forma harmônica.

            Dentro do Ordenamento Jurídico, as normas podem ser consideradas como se estivessem organizadas em uma pirâmide, cujo ápice é ocupado pela Constituição, a norma originária e hierarquicamente superior às demais normas jurídicas integrantes do sistema, ressaltando-se que estas devem ser absolutamente compatíveis com a Constituição, sob pena de se tornarem inaplicáveis.


II – O crime descrito no art. 42 da Lei nº 6.538/78.

            1.- Descrição e características fundamentais da conduta típica.

            A Lei nº 6.538, de 22 de junho de 1978, dispõe sobre os serviços postais e, inclusive, tipifica como criminosas algumas condutas praticadas em detrimento desses serviços. Dentre esses tipos, encontra-se o disposto no art. 42, in verbis:

            "Violação do privilégio postal da União.

            Art. 42. Coletar, transportar, transmitir ou distribuir, sem observância das condições legais, objetos de qualquer natureza sujeitos ao monopólio da União, ainda que pagas as tarifas postais ou de telegramas.

            Pena – detenção, até 2 (dois) meses, ou pagamento não excedente a 10 (dez) dias-multa."

            Trata-se de tipo anormal, tendo em vista a presença de elementos normativos, doloso, de ação múltipla ou de conteúdo variado, que descreve um crime comum, de mera conduta, instantâneo e unissubjetivo.

            2 - O bem jurídico tutelado e o regime de prestação dos serviços postais à época da Lei nº 6.538/78.

            A denominação do tipo em comento já se refere ao respectivo bem jurídico por ele tutelado, qual seja: o privilégio postal da União ou, em outras palavras, o monopólio da União, na prestação de determinados serviços postais.

            Definem-se os serviços postais nos seguintes termos:

            Art. 7º da Lei 6538/78: "Constitui serviço postal o recebimento, expedição, transporte e entrega de objetos de correspondência, valores e encomendas, conforme definido em regulamento (grifamos)."

            Entende-se por monopolizado o serviço público quando o Poder Público se encarrega de satisfazê-lo, de forma exclusiva, restando excluído o particular desse campo de ação, seja pelo fato de ser considerado ineficaz – como nos casos de serviços públicos não rentáveis -, seja por se tratar de serviço perigoso.

            A Lei nº6.538/78 surgiu sob a égide da Emenda Constitucional nº 1 de 1969, que, em seu art. 8º, XII, estabelecia como competência da União "manter o serviço postal e o Correio Aéreo Nacional". Embora não tenha constado do referido texto constitucional que a prestação de alguns desses serviços deveria ser feita somente pela União e em regime de monopólio, tal se depreende do contido no art. 163 da EC nº1/69 c/c os arts. 7º, 9º e 27 da Lei nº 6.538/78, todos a seguir transcritos:

            Art. 163 da EC nº1/69: "São facultados a intervenção no domínio econômico e o monopólio de determinada indústria ou atividade, mediante lei federal, quando indispensável por motivo de segurança nacional ou para organizar setor que não possa ser desenvolvido com eficácia no regime de competição e de livre iniciativa, assegurados os direitos e garantias individuais (grifamos)."

            Art. 7º da Lei nº6.538/78: "Constitui serviço postal o recebimento, expedição, transporte e entrega de objetos de correspondência, valores e encomendas, conforme definido em regulamento (grifamos)."

            Art. 9º da Lei nº6.538/78: "São exploradas pela União, em regime de monopólio, as seguintes atividades postais:

            I - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal;

            II - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de correspondência agrupada;

            III - fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franqueamento postal (grifamos)".

            Art. 27 da Lei nº 6.538/78: "O serviço público de telegrama é explorado pela União em regime de monopólio".

            Fazendo-se uma análise sistemática dos dispositivos acima elencados, constata-se que somente as atividades elencadas nos arts. 9º e 27 da lei mencionada deveriam ser prestadas pela União sob regime de monopólio, constituindo o denominado privilégio postal desse ente político. Portanto, somente a prestação destes serviços, por pessoas distintas da União, poderia atingir o bem jurídico tutelado pelo tipo descrito no art. 42 daquela Lei.


III – O tipo descrito no art. 42 da Lei nº 6.538/78 em face da Constituição Federal de 1988.

            1 – Competência e regime de prestação dos serviços postais na Constituição vigente.

            Em redação semelhante àquela contida no art. 8º, XII, da Emenda Constitucional nº 01/69, a Constituição Federal de 1988 prevê o seguinte:

            "Art. 21. Compete à União:

            (...)

            X – manter o serviço postal e o correio aéreo nacional;

            (...) (grifamos)."

            Em relação ao regime de prestação, a Constituição Federal vigente, também de forma idêntica à anterior, não instituiu o regime de monopólio para a prestação dos serviços postais, desta diferindo pelo fato de vedar a criação de novas hipóteses de atividades monopolizadas por meio de lei ordinária.

            A propósito, ensina o mestre José Afonso da Silva, em sua obra "Curso de Direito Constitucional Positivo":

            "A Constituição não é favorável aos monopólios. Certamente que o monopólio privado, assim como os oligopólios e outras formas de concentração de atividade econômica privada, é proibido, pois está previsto que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. O monopólio público também ficou bastante limitado, pois já não se declara, como antes, a possibilidade de monopolizar determinada indústria ou atividade. Declara-se a possibilidade de exploração direta de atividade econômica quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (art. 173). Parece-nos que aí não entra o monopólio, que é reservado só para as hipóteses estritamente indicadas no art. 177 (...) (grifamos)."

            No mesmo sentido, veja-se o seguinte julgado:

            PENAL E PROCESSO PENAL - HABEAS CORPUS - ADMISSIBILIDADE - MONOPÓLIO POSTAL - CONSTITUIÇÃO FEDERAL SUPERVENIENTE - LEI ANTERIOR CONFLITANTE/REVOGAÇÃO.

            - (...) Com a vigência da Constituição Federal de 1988, deixou de existir o monopólio do serviço postal, posto que não enquadrado nas hipóteses do art. 177 da Lei Maior, e a possibilidade de instituição de monopólio através de lei ordinária não permaneceu no atual texto constitucional (...).

            - O serviço postal é de utilidade pública, posto à disposição da sociedade para a conveniência de seus membros, e por isso mesmo, incumbe ao Estado a garantia de seu funcionamento, conforme o estabelecido no inc. X do art. 21 da CF. Mas, antes de pretender atribuir exclusivamente à União a execução do serviço postal, esta norma constitucional confere àquele ente a função de zelar pela manutenção da oferta do serviço (...) (grifamos). (TRF da 4ª Região - Processo: 9304385610 - Segunda Turma – DJ: 14/02/1996, página: 7367 - Juiz Dória Furquim – Julgamento unânime).

            2 – A atipicidade da conduta em decorrência do fenômeno da não recepção constitucional.

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            Conforme dito inicialmente, as normas integrantes de um Ordenamento Jurídico devem ser compatíveis entre si e com a Constituição, sendo esta a norma originária desse sistema harmônico.

            A atual Constituição Federal não prevê os serviços postais dentre aqueles a serem prestados em regime de monopólio, ao mesmo tempo, veda a edição de leis que criem novas atividades monopolizadas, constata-se, então, a existência de uma incompatibilidade entre a Constituição e a Lei nº 6.538/78, porquanto esta determina que a prestação dos serviços postais deve ser feita sob o regime de monopólio.

            Da incompatibilidade entre norma inferior e a Constituição não resulta a revogação da primeira pela segunda, como poderia ocorrer se ambas pertencessem à mesma categoria hierárquica, nem tampouco a declaração de sua inconstitucionalidade. Tratando-se de norma anterior à Constituição vigente e com esta incompatível, verifica-se o fenômeno da não recepção constitucional.

            Sendo a Constituição Federal subseqüente à Lei nº 6.538/78, conclui-se que o art. 42 desta não foi recepcionado constitucionalmente, tendo em vista a incompatibilidade verificada supra. Por conseguinte, tem-se configurada a atipicidade da conduta descrita no referido dispositivo incriminador devido à inexistência do respectivo objeto jurídico por este tutelado, qual seja: o monopólio da União na prestação de serviços postais.

            Nesse sentido:

            PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL. CRIME DE VIOLAÇÃO DO MONOPÓLIO POSTAL DA UNIÃO. NORMA NÃO RECEPCIONADA. FATO ATIPICO. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. CONCESSÃO DA ORDEM. DENÚNCIA PELO CRIME PREVISTO NO ART. 42 DA LEI 6538/78. VIOLAÇÃO DO PRIVILÉGIO POSTAL DA UNIÃO.

            - A Lei 6538/78 não foi recepcionada pela nova ordem constitucional, uma vez que a atividade postal não constitui mais monopólio da União.

            - A Carta Magna atual (art. 21, X) dispõe apenas que competirá à União manter o serviço postal, mas não impõe que seja em regime de monopólio, do contrário teria empregado as expressões "privativa" ou "exclusivamente", ou então teria incluído o serviço postal dentre as hipóteses previstas no art. 177.

            - Desaparecendo a figura do monopólio estatal, atipifica-se a conduta capitulada no art. 42 da Lei 6538/78.

            - A instauração de inquérito policial para apuração de fato atípico configura, portanto, manifesto constrangimento ilegal.

            - concessão da ordem (grifos nossos).

            (TRF da 5ª Região – HC/CE nº 9305355099 - Primeira Turma – Rel. Juiz Ridalvo Costa – Julgamento por maioria - DJ:03/06/1994, pagina:28696).


IV- Conclusão.

            Indubitavelmente, as normas penais fazem parte do Ordenamento Jurídico e, portanto, também devem ser compatíveis com a Constituição, sob pena de se tornarem inválidas, visto que a norma originária é, simultaneamente, o fundamento de validade e o princípio unificador de todas as normas do sistema.

            Assim, demonstrada a real incompatibilidade entre o disposto no art. 42 da Lei nº6.538/78 e a Constituição Federal vigente, tendo em vista a atual inexigibilidade do regime de monopólio para prestação de serviços postais, conclui-se que a nova Ordem Constitucional não recepcionou o tipo descrito no mencionado dispositivo, ensejando a atipicidade da conduta por este incriminada.


V – Referências bibliográficas.

            Bitencourt, Cezar Ribeiro, "Manual de Direito Penal – parte geral", Ed. RT;

            Bobbio, Norberto, "Teoria do ordenamento jurídico", Ed. UnB;

            Campanhole, Adriano e Hilton Lobo, "Constituições do Brasil", Ed.Atlas S.A.;

            Cunha Júnior, da Dirley, "Direito Penal – parte geral". Edições JusPodivm;

            Di Pietro, Maria Sylvia Zanella, "Direito Administrativo", Ed. Atlas S.A.;

            Mello, de Celso Antonio Bandeira, "Curso de Direito Administrativo", Ed. Malheiros;

            Prado, Luiz Régis, "Curso de Direito Penal Brasileiro – Vol. 1, parte geral", Ed. RT;

            Silva, da José Afonso, "Curso de Direito Constitucional Positivo", Ed. Malheiros.

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Sobre a autora
Mara Lina Silva do Carmo

bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARMO, Mara Lina Silva. Crime de violação do privilégio postal da União x Constituição Federal de 1988:: atipicidade da conduta em virtude da não recepção constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 116, 28 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4452. Acesso em: 26 abr. 2024.

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