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A responsabilidade objetiva no direito brasileiro como regra geral após o advento do novo Código Civil

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01/05/2003 às 00:00
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INTRODUÇÃO

O instituto da responsabilidade civil é quase tão antigo quanto a história da humanidade, porquanto sempre houve ações ou omissões por parte dos seres humanos, que de alguma forma vieram a ocasionar dano a outrem, surgindo, por conseguinte, a subsequente necessidade de ressarcimento.

No início, donde se tem as primeiras notícias do instituto, vigorava a vingança generalizada (vindicta), onde não se buscava a restauração do status quo ante, mas tão somente impingir ao ofensor dano de igual magnitude ao que foi causado.

Ao depois, com a evolução das relações sociais, tornou-se mais interessante a reparação do dano de forma subsidiária (em pecúnia), quando então o Estado avocou para si referida tarefa, o que se percebe denotadamente pela Lex Aquilia, onde, inclusive, reconheceu-se a necessidade de demonstração da culpa para que se pudesse exsurgir o direito à indenização.

Todavia, pode-se dizer que foi no direito francês que o instituto experimentou evolução maior, pois o Código de Napoleão, em seus artigos 1382 e seguintes, veio a regulamentar a idéia da culpa como sucedâneo da responsabilidade de indenizar os prejuízos causados.

De outro tanto, as legislações pátrias, desde o Código Criminal de 1830 até o Código Civil de 1916 buscaram inspiração no direito francês, razão pela qual a responsabilidade civil sempre foi pautada na idéia de existência de culpa por parte do ofensor. É o que se percebe da leitura do artigo 159 da revogada Lei Adjetiva Civil, ao determinar que "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano."

Pode-se afirmar, sem margem a questionamentos, que a responsabilidade civil no direito brasileiro sempre pautou-se na necessidade de demonstração de três requisitos principais: o ato ilícito, o dano e o nexo causal, ou seja, a culpa como pressuposto para que haja a obrigação de reparar o prejuízo experimentado.

Com efeito, a responsabilidade civil surgiria a partir do momento em que o indivíduo deixa de cumprir determinada obrigação, ou ainda, que sua atitude venha a ocasionar dano a outrem, surgindo daí o entendimento de que se trataria de um dever jurídico sucessivo, vindo somente a existir após a violação de um dever jurídico originário (contratual ou extracontratual).

Neste sentido, CARLOS ROBERTO GONÇALVES ensina que "Responsabilidade civil é, assim, um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário." (Comentários ao Código Civil, Volume XI, Editora Saraiva, São Paulo, 2003, p. 07)

Portanto, a responsabilidade civil deve ser encarada como fato humano, ou seja, a necessidade de se proporcionar a devida reparação em virtude de ato causador de dano. Cumpre transcrever, por oportuno, o escólio de CÁIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA:

"Como sentimento humano, além de social, à mesma ordem jurídica repugna que o agente reste incólume em face do prejuízo individual. O lesado não se contenta com a punição social do ofensor. Nasce daí a idéia de reparação, com estrutura de princípios de favorecimento à vítima e de instrumentos montados para ressarcir o mal sofrido. Na responsabilidade civil está presente uma finalidade punitiva ao infrator aliada a uma necessidade que eu designo de pedagógica, a que não é estranha a idéia de garantia para a vítima, e de solidariedade que a sociedade humana deve-lhe prestar."

(Responsabilidade Civil, Editora Forense, 2ª Edição, Rio de Janeiro, 1990, p. 15)

Todavia, como sói ocorrer em diversos casos, a demonstração de culpa não é de simples constatação, vale dizer, em muitos casos, fazer tal exigência à vítima seria o equivalente a negar o direito à reparação.

Neste panorama, foi necessária a construção, doutrinária e jurisprudencial, também com origens no direito francês (Saleilles e Josserand), de novas formas de atender aos anseios de justiça que inspiram o instituto da responsabilidade civil, de modo a ampliar as possibilidades de indenização, fornecendo uma entrega de tutela jurisdicional de forma mais eficaz, proporcionando, assim, a pacificação social, que é o escopo principal do processo civil moderno.

Exemplos dessa atividade podem ser encontrados em vários precedentes jurisprudenciais pátrios, em especial no que diz respeito aos acidentes em transportes de passageiros, onde buscou-se uma interpretação inegavelmente extensiva do artigo 17 do Código das Estradas de Ferro.

Ainda, no que diz respeito à responsabilidade por ato de terceiro, tal como previsto nos artigos 1527 e seguintes do Código Civil de 1916, havia interpretação dos pretórios totalmente contrária ao texto da lei. A despeito dessa situação, essa foi a forma que a jurisprudência, à míngua de um diploma legal que regulasse apropriadamente a matéria, encontrou de fornecer a tutela pretendida pelas partes.

É importante a análise dos fatos acima, ainda de que forma superficial, para demonstrar o tema a ser abordado neste estudo, qual seja a tendência irrefragável de se adotar em nosso direito a responsabilidade objetiva como regra geral, eis que mais consentânea com os ideais de justiça e eqüidade que norteiam as atividades do indivíduo no século XX.


CONSIDERAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE SUBJETIVA

Como salientado, o direito brasileiro sempre buscou inspiração nas legislações francesas, mormente no Código de Napoleão, que, conforme preceituam seus artigos 1382 e seguintes, busca na culpa o fundamento para a existência da obrigação de reparar o dano causado, teoria essa que deve ser creditada a DOMAT e POTHIER.

Nosso Código Civil de 1916 adotou expressamente essa concepção – da responsabilidade subjetiva – dado que em seu artigo 159 era expressamente prevista a idéia de conduta culposa do agente como pressuposto para o dever de indenizar.

Segundo a teoria da responsabilidade subjetiva, para que haja a obrigação de indenizar é necessário que seja demonstrada a culpa do suposto violador do direito da vítima, sendo desta última a incumbência de provar tal situação para que tenha direito à indenização. Utiliza-se, novamente, do ensinamento de CARLOS ROBERTO GONÇALVES:

"Conforme o fundamento que se dê à responsabilidade, a culpa será ou não considerada elemento da obrigação de reparar o dano.

Em face da teoria clássica, a culpa era fundamento da responsabilidade. Essa teoria, também chamada teoria da culpa, ou "subjetiva", pressupõe a culpa como fundamento da responsabilidade civil. Em não havendo culpa, não há responsabilidade.

Diz-se, pois, ser ‘subjetiva’ a responsabilidade quando se esteia na idéia de culpa. A prova da culpa do agente passa a ser pressuposto necessário do dano indenizável. Dentro dessa concepção, a responsabilidade do causador do dano somente se configura se agiu com dolo ou culpa."

(ob. cit., p. 28)

Como dito, a responsabilidade subjetiva, de um modo geral, remonta da interpretação inicialmente conferida aos dispositivos do Código Civil francês, bem como à palavra faute, sendo importante a citação do pensamento de CÁIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA:

"A doutrina da culpa assume todas as versas de uma fundamentação ostensiva e franca com o Código de Napoleão. (...). Sobre este preceito a corrente exegética assentou que o fundamento da reparação do dano causado é a culpa. Os autores franceses desenvolveram-na em seus caracteres e construíram por todo o século passado, e ainda neste século, a doutrina subjetiva."

(ob. cit., p. 19)

Os defensores dessa teoria, dentre eles os irmãos Mazeud, buscavam fundamento na Lei Aquilia, considerando-a como o primeiro diploma legal a regulamentar a questão, reconhecendo-se a culpa como elemento caracterizador da responsabilidade civil.

Os questionamentos a respeito da necessidade de culpa para que houvesse a responsabilização do agente surgiram ainda no direito romano (onde em princípio prevalecia a responsabilidade objetiva), em casos de pessoas que não responderiam por seus atos, e por conseguinte, não poderiam ser sujeitos passivos da reparação.

AGUIAR DIAS, principal expressão doutrinária sobre o tema, como que alertando o leitor a respeito de seu posicionamento contrário à teoria subjetiva, bem como explicando os fundamentos em que se baseavam seus defensores, pondera que:

"A teoria da culpa, resumida, com alguma arrogância, por VON IHERING, na fórmula "sem culpa, nenhuma reparação", satisfez por dilatados anos à consciência jurídica, e é, ainda hoje, tão influente que inspira a extrema resistência oposta por autores insignes aos que ousam proclamar a sua insuficiência em face das necessidades criadas pela vida moderna, sem aludir ao defeito da concepção em si mesma."

(Da Responsabilidade Civil, Volume I, Editora Forense, 7ª Edição, Rio de Janeiro, 1983, p. 36)

Por certo, em nosso direito a interpretação literal dos dispositivos constantes do Código Civil de 1916, em especial o artigo 159 e 1523, por exemplo, não deixam dúvida de que, segundo palavras do autor em referência, a doutrina legal a respeito da responsabilidade civil é a subjetiva.

Todavia, fato é que a responsabilidade subjetiva há muito tempo já não vinha sendo uma forma satisfatória de se proceder a entrega da tutela jurisdicional, dado que em muitos casos era impossível à vítima fazer prova da conduta faltosa do autor do dano, como sói ocorrer nos casos de acidente de trabalho, em que ao empregado era praticamente impossível demonstrar a negligência do patrão, seja pela dificuldade na colheita de provas documentais, seja ainda pela ausência de testemunhas, todas zelosas no sentido de manterem seus empregos.

Em termos de direito comparado, os primeiros questionamentos começaram a surgir após a Revolução Industrial, onde o aumento de acidentes de trabalho, com a subsequente impossibilidade de demonstração de culpa por parte do patrão, apenas para citar exemplo mais comum, acabava por relegar o direito de obter a competente indenização a um plano meramente hipotético, senão utópico, dada a dificuldade na produção da prova.

Diante de situações como a acima externada, e de outros exemplos que poderiam se perpetuar, o que também ocorreu em nosso direito, foram surgindo algumas legislações esparsas, de modo a possibilitar, em alguns casos, a responsabilização de forma objetiva, independente da culpa do autor do dano, servindo de exemplo o Código das Estradas de Ferro, Lei do Acidente de Trabalho, Código Brasileiro do Ar e mais recentemente o Código de Defesa do Consumidor.

Os diplomas legais referidos, certamente abriram caminho para a reparabilidade plena, fundada na teoria do risco, onde o simples exercício de determinada atividade com o proveito econômico daí decorrente, cria o dever de indenizar eventuais danos causados a terceiros.

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Nesse panorama e contexto histórico é que se mostrou necessária a reformulação das regras concernentes à responsabilidade civil, transmudando-se conceitos antigos e inadequados à realidade do desenvolvimento das relações sociais, de modo a conferir e ampliar de forma objetiva as possibilidades daquele que foi lesado em seu direito de obter a correspondente indenização. Importante, neste sentir, transcrever a lição de AGUIAR DIAS, no que diz respeito à crítica sobre a adoção da responsabilidade subjetiva como regra:

"Aceitando, em termos, a opinião, é conveniente ponderar que, naquilo em que não seguir a orientação moderna, o nosso legislador ficou extremamente aquém das conquistas do direito da responsabilidade. Nele, predomina o critério da culpa, e nas suas exigências mais retrógradas, porque as presunções que se admitem não alcançam a extensão com que, na maioria das legislações modernas, se procurou facilitar, aliás pouco cientificamente, em proveito do prejudicado, a caracterização da culpa."

(ob. cit., p. 41)

Também RUI STOCO faz importante ponderação a respeito do sentimento de insatisfação, decorrente da utilização generalizada da teoria da responsabilidade subjetiva, como forma de caraterizar a obrigação de reparar o dano causado:

"A insatisfação com a teoria subjetiva, magistralmente posta à calva por Cáio Mário, tornou-se cada vez maior, e evidenciou-se a sua incompatibilidade com o impulso desenvolvimentista de nosso tempo. A multiplicação de oportunidades e das causas de danos evidenciaram que a responsabilidade subjetiva mostrou-se inadequada para cobrir todos os casos de reparação."

(Responsabilidade Civil e sua Interpretação Jurisprudencial, Editora Revista dos Tribunais, 4ª Edição, São Paulo, 1999, p. 76)

A título de ilustração, vale dizer que dentro deste mesmo espírito de se conferir maior eficácia aos provimentos jurisdicionais, proporcionando a pacificação social, tem-se entendido que a conversão das obrigações para as perdas e danos não mais deve servir como regra, sendo mitigado o respeito inabalável que outrora era conferido à intangibilidade da vontade humana, o que se mostra particularmente verdadeiro na análise dos artigos 461 e 461-A do Código de Processo Civil, ao tratarem da execução específica das obrigações, e sendo necessária a indenização subsidiária, que se dê pela forma mais completa possível.

Outrossim, conforme se perceberá da análise dos dispositivos do Código Civil vigente, é lícito afirmar que existe no direito brasileiro a tendência irrefragável de se adotar a responsabilidade objetiva como regra geral nos casos de indenização por danos causados a outrem, seja porque mais se coadunam com a realidade das relações sociais, seja ainda porque o antigo sistema fundado na existência de culpa mostrou-se insatisfatório como meio de proporcionar a reparabilidade plena.


A RESPONSABILIDADE OBJETIVA - TEORIA DO RISCO

Costuma-se conferir ao direito romano o período primeiro onde se reconheceu a existência da responsabilidade objetiva. Com efeito, nesta época não interessava a verificação da culpa, mas simplesmente impor ao lesado o direito recíproco de impingir dano de igual magnitude ao experimentado, sendo somente ao depois, com a promulgação da Lei Aquilia, instituída efetivamente a necessidade de apuração da conduta faltosa como fundamento para a responsabilidade.

AGUIAR DIAS, o mais expressivo e importante defensor da responsabilidade sem culpa em nosso direito, citando MARTON, alude ao equívoco que fez com que vários diplomas legais adotassem a responsabilidade subjetiva como regra:

"O reputado professor de Budapeste, investigando a causa que teria levado a ciência jurídica ao acolhimento de construção teórica tão defeituosa, como é o princípio da culpa subjetiva, chegou à conclusão de que "o fenômeno tem uma explicação histórica, contida no fato de que a ciência do direito se inspira no direito romano, onde a responsabilidade extracontratual nunca foi um problema. (...). O grande erro e a grave omissão da teoria moderna do direito civil consistem precisamente em que, embora assistindo à obra de distinção entre o delito e a reparação, libertando esta idéia das restrições objetivas da Lei Aquilia – obra generalizada pelas codificações européias e, em primeiro lugar, pelo Código francês – pensava poder manter esse ponto de vista ingênuo e antiquado, segundo o qual o fundamento da reparação não se poderia encontrar senão no delito, e que, portanto, sempre que se deparasse uma responsabilidade sem delito, conviria de qualquer forma imaginá-lo."

(ob. cit., p. 42)

A partir do momento em que a apuração da culpa, ou melhor dizendo, a necessidade de prova da conduta ilícita para que surgisse o direito à indenização, deixava muitos dos casos apresentados aos tribunais sem a devida resposta, ocasionando a insatisfação social, que, por seu turno, acabou por impulsionar estudos a respeito de outros fundamentos para a responsabilidade civil que não a culpa.

Foi novamente no direito francês, com Saleilles e Josserand, que a teoria da responsabilidade objetiva foi construída e definitivamente imiscuída nos demais ordenamentos jurídicos. Cita-se, por importante, CÁIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA:

"O maior valor da doutrina sustentada por Raymond Saleilles, e que seria, por certo, a razão determinante da conquista de espaço em seu país e no mundo ocidental, foi ter engendrado a responsabilidade sem culpa, assentando-a em disposições do próprio Código Civil francês, que desenganadamente é partidário da teoria da culpa, proclamada por expresso no art. 1.382.(...). Neste estudo, Saleilles desenvolve a sua tese, argumentando: o art. 1.382 do Código Civil significa que "o que obriga à reparação é o fato do homem, constitutivo do dano.(...) O âmago de sua profissão de fé objetivista desponta quando diz que "a teoria objetiva é uma teoria social que considera o homem como fazendo parte de uma coletividade e que o trata como uma atividade em confronto com as individualidades que o cercam."

(ob. cit., p. 21/22)

Com efeito, referidos autores buscaram uma nova interpretação aos artigos 1382 e seguintes do Código de Napoleão, em especial ao artigo 1384, inciso I, no sentido de buscar o fundamento para sua teoria.

A necessidade dessa nova interpretação, como mencionado, remontou à Revolução Industrial, onde um número cada vez mais crescente de acidentes de trabalho tornavam indenes os prejuízos daí resultantes, dada a impossibilidade de demonstração da culpa por parte do patrão, valendo ainda exemplos como os casos de transportes de passageiros.

É importante a análise dos pontos em referência de modo a demonstrar os princípios que inspiram a teoria da responsabilidade objetiva, quais sejam a boa-fé e a eqüidade, como forma de propiciar a entrega de uma tutela jurisdicional mais justa. Com efeito, a partir do momento em que a evolução das relações sociais, em confronto com preceitos que inspiraram legisladores de outras épocas, torna insuficientes os meios para se obter a indenização correspondente ao dano experimentado, não se deve negar que é preciso rever conceitos antigos.

AGUIAR DIAS enumera quais os princípios que inspiram a responsabilidade objetiva: do interesse ativo, da prevenção, da eqüidade ou do interesse preponderante, da repartição do dano e do caráter perigoso do ato. Óbvio que essa não é uma definição pacífica e isenta de questionamentos, mas demonstra de forma clara o espírito que norteou os estudiosos de então e que certamente refletiram na elaboração de nossa nova codificação civil.

Portanto, não se pode fugir à conclusão de que a responsabilidade objetiva, que buscou suporte na teoria do risco, sempre pautou-se em princípios e valores sociais, como a eqüidade e a boa fé, que ganharam inegável reforço com o advento da Constituição Federal de 1988, na qual a proteção à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) tornou-se fundamento do Estado Democrático de Direito.

De modo a se conferir maior praticidade ao objeto do estudo, que visa demonstrar a adoção da teoria da responsabilidade objetiva no direito brasileiro, que fundamenta-se inegavelmente na teoria do risco, mister se faz tecer algumas ponderações acerca da teoria do risco.

Nesse diapasão, e dada a importância e atualidade da obra, não se pode prescindir dos ensinamentos de CARLOS ROBERTO GONÇALVES:

"Uma das teorias que procuram justificar a responsabilidade objetiva é a teoria do risco. Para esta teoria, toda pessoa que exerce alguma atividade cria um risco de dano para terceiros. E deve ser obrigada a repará-lo, ainda que sua conduta seja isenta de culpa. A responsabilidade civil desloca-se da noção de culpa para a idéia de risco, ora encarada como ‘risco-proveito’, que se funda no princípio segundo o qual é reparável o dano causado a outrem em conseqüência de uma atividade realizada em benefício do responsável (ubi emolumentum, ibi onus)".

(ob. cit., p. 29)

Segundo essa teoria, o dever de indenizar não mais encontra amparo no caráter da conduta do agente causador do dano, mas sim no risco que o exercício de sua atividade causa para terceiros, em função do proveito econômico daí resultante.

Portanto, consoante referido posicionamento, vale dizer que a parte que explora determinado ramo da economia, auferindo lucros desta atividade, deve, da mesma forma, suportar os riscos de danos a terceiros.

Deve-se mencionar que a insatisfação produzida pela exigência de demonstração da culpa na responsabilidade subjetiva foi fator preponderante para a mudança de entendimento sobre os elementos caracterizadores do dever de reparar o dano.

Para efeitos de esclarecimento dos fundamentos da teoria da responsabilidade objetiva, deve-se citar o ensinamento de SÍLVIO RODRIGUES:

Na responsabilidade objetiva a atitude culposa ou dolosa do agente causador do dano é de menor relevância, pois, desde que exista relação de causalidade entre o dano experimentado pela vítima e o ato do agente, surge o dever de indenizar, quer tenha este último agido ou não culposamente.

A teoria do risco é a da responsabilidade objetiva. Segundo essa teoria, aquele que, através de sua atividade, cria risco de dano para terceiros deve ser obrigado a repará-lo, ainda que sua atividade e seu comportamento sejam isentos de culpa. Examina-se a situação, e, se for verificada, objetivamente, a relação de causa e efeito entre o comportamento do agente e o dano experimentado pela vítima, esta tem direito de ser indenizada por aquele."

(Direito Civil, Volume IV, Editora Saraiva, 19ª Edição, São Paulo, 2002, p. 10)

No direito brasileiro a teoria da responsabilidade sem culpa foi ganhando espaço primeiramente em casos específicos, como ocorria no Código das Estradas de Ferro, que em seu artigo 17 previa expressamente o seu acolhimento, valendo ainda a ressalva para a Lei dos Acidentes de Trabalho e o Código Brasileiro do Ar.

Posteriormente, ganha importância e relevo a interpretação extensiva dada ao citado artigo 17 do Código das Estradas de Ferro, no sentido de reconhecer objetiva a responsabilidade em praticamente todos os casos de acidentes envolvendo transportes, sendo que no Código de Defesa do Consumidor o tema veio a ganhar novos contornos, onde passou a ser reconhecida expressamente a responsabilidade independente de culpa do fornecedor de produtos ou serviços (arts. 12 a 17, CDC), baseada na teoria do risco-proveito.

Neste contexto, o novo Código Civil tem relevo indiscutível, pois proporcionou o entendimento de que a teoria da responsabilidade objetiva efetivamente incorporou-se ao direito pátrio, como, aliás, já previa CÁIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA:

"Autores e tribunais, manifestando franca tendência pela doutrina objetiva, reclamam, contudo, contra a ausência de disposição genérica a permitir a afirmação de que ingressou, efetivamente, em nosso direito positivo. No plano puramente teórico, Rodiere observa que o insucesso da doutrina do risco provém da ausência de um texto a sustentá-la, como ainda da "contradição irredutível entre o sentimento que sugere e os resultados que ela propõe.

(...)

O Projeto do Código Civil de 1975 (Projeto 634-B) absorveu a doutrina e estabeleceu, no art. 929, parágrafo único:

Todavia, haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para o direito de outrem.

A tendência manifesta dos dois projetos de reformulação de nosso direito privado faz prever que, de iure condendo, a teoria do risco encontrará abrigo em norma genérica de nosso direito positivo."

(ob. cit., p. 29/31)

Como dantes mencionado, o novo Código Civil traz uma manifesta tendência ao acolhimento da responsabilidade objetiva como regra geral em nossa sistemática, sendo importante a análise dos dispositivos que permitem chegar a essa conclusão.

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Sobre o autor
Gustavo Passarelli da Silva

Advogado e Professor de Direito Civil e Direito Processual Civil na Universidade Federal do Estado de Mato Grosso do Sul - UFMS, Universidade Católica Dom Bosco - UCDB, Universidade para o Desenvolvimento da Região do Pantanal - UNIDERP, em cursos de graduação e pós-graduação, de Direito Civil na Escola Superior do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul e Escola da Magistratura do Estado de Mato Grosso do Sul. Especialista em Direito Processual Civil e Mestre em Direito e Economia pela Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro - UGF/RJ, Doutorando em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires - UBA. Diretor-Geral da Escola Superior de Advocacia/ESA da OAB/MS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Gustavo Passarelli. A responsabilidade objetiva no direito brasileiro como regra geral após o advento do novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4045. Acesso em: 24 abr. 2024.

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