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Legalidade e legitimidade

01/03/2003 às 00:00
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A relação entre legalidade e legitimidade é muito estreita, a ponto de alguns autores as confundirem. O termo legitimidade interessa precipuamente à ciência política, mas também é importante a todas as ciências humanas.

A palavra pode designar uma série de situações. Desde a autenticidade de alguma coisa até a justificação com a vontade geral, por meio da lei. Acquaviva explica:

"Atributo daquilo que se mostra conforme a razão e a natureza. Legalidade é termo de significado muito mais estrito, tem mais particular uso na jurisprudência positiva e parece referir-se a tudo que se faz ou obra segundo o que está determinado nas leis humanas, isto é, guardando as solenidades, formalidades ou condições que elas prescrevem. Em física é legítimo ouro, legítima prata, legítimo diamante o que tem a própria natureza destas substâncias, o que não é contra-feito nem adulterado. Em lógica, é legítimo o raciocínio quando os princípios são verdadeiros e a conseqüência deduzida segundo as regras. Em moral, são legítimas as ações que conformam com a razão, a equidade e a justiça universal. E finalmente, em jurisprudência são legítimas todas as ações ou omissões que as leis ordenam, etc. Um título é legítimo quando está autenticamente na forma da lei: um testamento é legal quando foi feito com as solenidades da lei, uma prova é legal quando nela se acham verificadas todas as condições que a lei requer, etc." (Marcus Cláudio Acquaviva, Dicionário Jurídico Brasileiro Acquaviva, 9ª edição, Editora Jurídica Brasileira, página 768).

Correntemente se diz legítimo aquilo que se faz de acordo com as regras da sociedade, o que transportando para o Direito, temos que é legítimo tudo que está na conformidade da lei. Por este viés seria legal aquilo que é feito por determinação da lei, o que em Direito se conhece por vinculação à lei.

Uma outra relação que é comumente feita é a da legitimidade com o poder. Legitimidade é uma qualidade do poder, enquanto legalidade se refere ao exercício do mesmo. Bobbio ensina:

"Na linguagem política, entende-se por legalidade um atributo e um requisito do poder, daí dizer-se que um poder é legal ou age legalmente ou tem o timbre da legalidade quando é exercido no âmbito ou de conformidade com leis estabelecidas ou pelo menos aceitas. Embora nem sempre se faça distinção, no uso comum e muitas vezes até no uso técnico, entre legalidade e legitimidade, costuma-se falar em legalidade quando se trata do exercício do poder e em legitimidade quando se trata de sua qualidade legal: o poder legítimo é um poder cuja titulação se encontra alicerçada juridicamente; o poder legal é um poder que está sendo exercido de conformidade com as leis. O contrário de um poder legítimo é um poder de fato; o contrário de um poder legal é um poder arbitrário" (Norberto Bobbio, Dicionário de Política, V.2, Editora UNB, Página 674).

Bem visível que há aí a proposição de uma identidade entre legitimidade e juridicidade, em função de o Direito ser sempre, na democracia, uma expressão da vontade geral, a que toda atividade política deve prestar respeito.

É preciso tomar cuidado com esta vinculação da legalidade com a legitimidade, dado que é por aí que se inicia a considerar que a lei jamais deve ser contestada, não obstante sua injustiça, sua inconstitucionalidade e sua antijuridicidade possíveis. Além do que há o problema da legitimidade da própria lei. Realmente são figuras distintas, conquanto bastante ligadas. Ou, com Wolkmer:

"Cumpre ressaltar que a legalidade reflete fundamentalmente o acatamento a uma estrutura normativa posta, vigente e positiva. Compreende a existência de leis, formal e tecnicamente impostas, que serão obedecidas por condutas sociais presentes em determinada situação institucional. Como afirma Angel S. de la Torre, a legalidade projeta-se concretamente ‘como a esfera normativa contida em expressões ou signos expressivos dos deveres e direitos dos sujeitos de atividade social, subjetivamente como fidelidade dos sujeitos sociais ao cumprimento de suas atividades dentro da ordem estabelecida necessariamente no grupo humano a que pertencem" (Antonio Carlos Wolkmer, Uma Nova Conceituação Crítica de Legitimidade, RT Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política 05, página 25).

Muito embora não se confunda com a legalidade, não há como se negar que tudo que é legal é presumivelmente legítimo [1], pelo menos na democracia. Na Administração Pública uma e outra se identificam, dado que a lei é, para o administrador, o veículo que transporta a legitimidade à sua função e aos seus atos. Isto eqüivale a dizer que na administração só é legítimo o que é legal, mas nem tudo que é legal é legítimo. A questão é o alcance dessa legitimidade decorrente de lei. Certamente não á absoluta, como pretendem os defensores da idéia de que o Estado é o produtor único, racional e isento do Direito, uma posição carregada de ideologia. Neste sentido, Luis Fernando Coelho:

"Com efeito, a imagem ideológica, ou mito, de um direito único elaborado ou cooptado pelo Estado – legislador absoluto e neutro em sua racionalidade – é exigência também racional para que esse direito seja considerado legítimo" (Luiz Fernando Coelho, Teoria Crítica do Direito, 2ª edição, Editora Sergio Antonio Fabris, página 352).

A legitimidade decorre de um consenso social. Não obstante o enorme valor da lei, o Direito não pode pretender a confusão dos dois institutos, como proposto por Kelsen, para o qual não há que se falar em legitimidade, mas apenas em legalidade, já que Estado e Direito se confundem. Nesta época, a questão era de menor interesse. Assim temos as palavras de Ricardo Lobo Torres:

"Dessa afirmativa não se deve concluir que antes o problema não fosse discutido. Só que o seu conceito derivava de duas posições básicas e antagônicas, ambas de cunho positivista, que serviam para justificar o próprio autoritarismo e que empolgaram o nosso direito público nas últimas décadas. De um lado a concepção de Max Weber que pretendia chegar à legitimidade pela via empírica e não normativamente, passando dos problemas da eficácia formal do poder para o da dominação-racional (= legal), tradicional ou carismática – na qual prepondera o aspecto da obediência espontânea na legitimidade. De outra parte a doutrina de Kelsen, que procurava superar as ‘ideologias da legitimidade’ identificando o Estado com o Direito, entendido como ordenamento coercitivo da conduta humana, sobre o qual a moral e a justiça nada têm a dizer, com o que restringia o Princípio da Legitimidade à questão da competência dos órgãos ou da validade das normas, sempre dependentes de uma norma superior do ordenamento" (Ricardo Lobo Torres, A Legitimidade Democrática e o Tribunal de Contas, Revista de Direito Administrativo 194, página 31).

Em verdade o Princípio da Legalidade significa antes de tudo um respeito ao Direito, às instituições socialmente consignadas como válidas por meio do instrumento legislativo, o qual, em regra, é elaborado por pessoas autorizadas a tanto, e formulado através de um processo previamente estabelecido. Em outras palavras, importa dizer que o respeito ao Princípio da Legalidade é antes de tudo respeito ao Direito na medida em que este é fruto da vontade geral e a ela se destina, ou como diz Wolkmer:

"Numa cultura jurídica pluralista, democrática e participativa a legitimidade não se funda na legalidade positiva, mas resulta da consensualidade das práticas sociais instituintes e das necessidades reconhecidas como ‘reais’, ‘justas’ e ‘éticas" (Antonio Carlos Wolkmer, Uma Nova Conceituação Crítica de Legitimidade, RT Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política 05, página 31).

De fato, a idéia de que a legitimidade se produz pelo consenso social ganha cada vez mais corpo, afastando a postura legalista, produzindo um novo conceito. "Hoje, ele [ o conceito de legitimidade ] significa a convicção, realmente, da legitimidade do direito, da obrigatoriedade de determinadas normas ou decisões, ou do valor dos princípios que as justificam. Mas apesar de tudo isso só se conseguiu chegar a uma pergunta: como é possível a convicção rela da legalidade ou da força compulsiva desta decisão quando só alguns é que decidem?" (Niklas Luhman, Legitimação Pelo Procedimento, Editora UNB, página 29). Uma pergunta difícil de ser respondida. Para este autor isto se dá pelo procedimento, cujo conceito se aproxima do que em Direito é conhecido como Devido Processo Legal. Mas mesmo assim pode a pergunta subsistir, e até é bom que isso ocorra, pelo menos enquanto não se puder ter a certeza inarredável de que há responsabilidade social por parte dos que fazem as leis e dos que as aplicam.

A dificuldade está em se certificar deste consenso, ainda mais que é bastante discutível se nos vários sistemas sociais o silêncio pode ser interpretado, tal qual no Direito Privado, como manifestação da vontade. Os mecanismos eleitorais (plebiscitos, referendo, recall, eleição, etc.), em razão de sua previsão normativa, normalmente constitucional, são uma maneira de se perceber qual é a vontade geral. No entanto, por questões de ordem prática e material, os mesmos não são eficientes para todos os problemas que surgem. Neste ponto é que a legitimidade fica menos visível, menos evidente. Para a solução desta questão pode-se socorrer em análises históricas, sociológicas, filosóficas, muito embora aí surja um círculo vicioso, já que esta análise poderá ser ilegítima e também porque dificilmente obrigará ao agente político, ainda que correta. Entretanto, a legitimidade pode ser constatada por uma investigação científica, já que as condições em que surgiu este ou aquele instituto são passíveis de verificação. A vontade geral não se altera da noite para o dia, por isso é que manter-se fiel aos ideais políticos positivados numa constituição é sempre uma boa técnica de preservação e criação da legitimidade, ainda que esta não se confunda com a lei, dado que modernamente as constituições apresentam, em si mesmas, uma forte conotação política.

Não se pode reduzir a legitimidade à legalidade, mas a dificuldade em se obter um juízo de certeza quanto ao consenso social e dado que a lei, presumivelmente, decorre da vontade geral, é correto propor que a legalidade é um pressuposto da legitimidade. Esta proposição, bem evidente, é de uma presunção relativa de legitimidade, já que se houver dúvidas quanto à legitimidade da própria lei esta se afastará.

Como se percebe até agora, a relação entre legitimidade e legalidade é circular. O que se impõe, e livra a análise do círculo vicioso, é que uma investigação empírica pode fornecer elementos suficientes para se estabelecer ou perceber o consenso social.

Ocorre que o próprio consenso social pode ter sua legitimidade questionada. Isto se percebe facilmente com a constatação do poder da mídia moderna. E isto complica muito a questão já que se o próprio consenso social não for legítimo, nada que nele se embase o será. "Legitimidade então pressupõe consenso mais ou menos generalizado, e legitimação é a tecnologia da obtenção desse consenso dos membros do grupo; considerando-se a sociedade dividida em classes e a existência de um grupo microssocial hegemônico, a legitimidade articula-se com o poder e a dominação" (Luiz Fernando coelho, Teoria Crítica do Direito, 2ª edição, Editora Sergio Antonio Fabris, página 360). É justamente essa vinculação com o poder e a dominação que tornam tormentosa a tarefa de se verificar a legitimidade do consenso social.

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Só que questionar a legitimidade, a validade, do consenso social é sempre uma atitude perigosa, pois pode advir daí um discurso de incapacidade de o povo se autogovernar, o que justificaria um regime totalitário. O convencimento por força de argumentos não ilegitima o consenso social, o que o faz é o apelo fácil do sensacionalismo e do sentimentalismo e mais ainda a informação parcial e tendenciosa.

Há um campo em que é possível a chegada a uma legitimidade primeira: a ética. Com efeito, é a ética, por assim dizer, a ciência do bem e do mal, do bom e do mau, do justo e do injusto [2]. Tudo o que é ético é conveniente à sociedade, logo é legítimo.

Desta feita o consenso social será legítimo quando alcançado por um convencimento ético, e, de outro lado, será ilegítimo quando atingido por manobras políticas de baixo nível, pela manipulação e ocultação de informações, pelo sensacionalismo, pelas chamadas à emotividade [3].

Assim, por lógica, temos que se o consenso social é ético, é legítimo, daí as leis são legítimas e, por fim, as condutas calcadas ou impostas pela lei são legítimas.

Por fim a relação entre o Direito e a legitimidade pode ser tanto externa, vale dizer, quando está em consonância com o consenso social, ponto em que a principiologia jurídica se mostra assaz importante, dado que, como visto, são os princípios o veículo próprio para levar até o Direito aspectos sociais; como interna, quando se diz que é legítima a regra produzida em conformidade com o próprio Direito, em especial a Constituição. Neste ponto uma incursão pela chamada Teoria Crítica do Direito pode ser útil, dado que é a corrente jusfilosófica que mais se ocupou do problema da legitimidade do Direito.

Pois bem, por esta corrente, a legitimidade do Direito é de ser vista por dois aspectos, a saber, a positividade e a juridicidade.

Pelo viés da positividade tem-se que todo Direito que se torna prevalecente em um dado tempo tem a pretensão de ser legítimo, o que significa dizer que pretende realizar um ideal de perfeição cujo conteúdo é produzido pela ideologia. Em outros termos, o Direito pretende-se legítimo pelo fato de ser positivo.

No aspecto da juridicidade todo o Direito anterior torna-se ilegítimo. Como fundamento dessa legitimidade exclusiva surgem dois aspectos: o interno e o externo.

O interno, chamado intrajurídico por Luiz Fernando Coelho, pressupõe que ordenamento estabelece critérios de legitimidade, os quais estão consagrados hoje na teoria da norma fundamental de Kelsen, a qual vem ancorada na lógica kantiana da validade lógica-transcedental de uma primeira proposição, o que em Direito se traduz na Constituição.

O aspecto externo, batizado por aquele professor de meta-jurídico, é a coerência entre as normas e os princípios e valores que, inseridos ou não no ordenamento, se consideram superiores, de validade independente do reconhecimento expresso, vale dizer, da sua transformação em lei [4]. Por fim esta teoria pretende que a legitimidade é a qualidade ética do Direito, como diz o já citado Luiz Fernando Coelho:

"A legitimidade é a qualidade ética do direito, a maior ou menor potencialidade para que o direito positivo e os direitos não positivos alcancem um ideal de perfeição. Esse ideal, espaço privilegiado da ideologia, pode ser provisoriamente identificado com a justiça, ou certos valores que representam conquistas da humanidade, principalmente os direitos humanos (..) embora tais critérios se apliquem a qualquer ordem jurídica, vale dizer, tanto ao direito positivo quanto aos direitos plurais, a ideologia os concentra na legitimidade do direito estatal. É que a herança positivista alijou do âmbito da teoria do direito, inclusive da filosofia do direito, a investigação acerca da validade e legitimidade dos direitos não positivos, confinando tal estudo ao âmbito da sociologia. Trata-se de uma redução incorreta dos estudos jusfilosóficos, com uma preocupação ideológica evidente: o que se cumpre enfatizar é a legitimidade do direito oficial, que se apresenta à compreeensão da comunidade como uno, estatal, racional e legítimo. E assim, aos pressupostos ideológicos da unicidade , estatalidade e racionalidade do direito positivo, veio somar-se o princípio da legitimidade" (Teoria Crítica do Direito, 2ª edição, Editora Sergio Antonio Fabris, página 358 e 360).

Disto tudo uma constatação se impõe: a legitimidade absoluta não existe, mas, tal qual a objetividade em ciência, deve ser buscada sempre. Daí Lúcio Levi dizer:

"Podemos dizer que a legitimidade do Estado é uma situação nunca plenamente concretizada na história, a não ser como aspiração, e que um Estado será mais ou menos legítimo na medida em que torna rela o valor de um consenso livremente manifestado por parte de uma comunidade de homens autônomos e conscientes, isto é, na medida em que consegue se aproximar à idéia-limite da eliminação do poder e da ideologia nas relações sociais" (in, Dicionário de Política, Norberto Bobbio, V.2, verbete legitimidade, página 679).

Também aqui se vislumbra que a legitimidade está ligada à vontade geral (consenso), com a ressalva de que esta deve ser livre, não condicionada ao poder e ao seu discurso.


Notas

01. E até mesmo presumivelmente justo, já que ninguém fará uma lei contra si mesmo, conforme ensina Rousseau.

02. Em verdade a Ética é a filosofia prática. Usamos a expressão ciência por ela trazer as idéias de reflexão, conhecimento, atividade racional, etc.

03. Como aconteceu na formação dos estados nazista e fascista, com o auxílio poderoso, no primeiro caso, da propaganda de Goebbels.

04. Sobre isto veja-se Luiz Fernando Coelho, Teoria Crítica do Direito, páginas 351 e segs.

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Sobre o autor
Alexandre Rezende da Silva

advogado em Londrina (PR), especialista em Direito Empresarial

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Alexandre Rezende. Legalidade e legitimidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3814. Acesso em: 29 mar. 2024.

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