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Notas sobre o direito da criança

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01/01/2003 às 00:00
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O início do século XX

Havia uma preocupação permanente na cidade de São Paulo em fins do século XIX: a elevada quantidade de menores criminosos que desafiavam a ordem vigente e "a tranqüilidade das famílias paulistanas". [1]

O soneto "o Vagabundo", de Amélia Rodrigues reflete o temor da sociedade da época com aqueles menores que perambulavam pelas ruas:

O vagabundo

O dia inteiro pelas ruas anda

Enxovalhado, roto indiferente:

Mãos aos bolsos olhar impertinente,

Um machucado chapeuzinho a banda.

Cigarro à boca, modos de quem manda,

Um dandy de misérias alegremente,

A procurar ocasião somente

Em que as tendências bélicas expanda

E tem doze anos só! Uma corola

De flor mal desabrochada! Ao desditoso

Quem faz a grande, e peregrina esmola

De arranca-lo a esse trilho perigoso,

De atira-lo p’ra os bancos de uma escola?!

Do vagabundo faz-se o criminoso!... [2]

No final do século XIX e começo do século XX introduziu-se novos padrões sociais, culturais e econômicos na sociedade brasileira. Impostos pela modernidade, a industrialização, a urbanização e a crescente pauperização das camadas populares foram as suas principais características. Associado a esse processo, "houve um crescimento constante do pequeno comércio, da classe média profissional ou burocrática e uma intensificação da divisão do trabalho". [3]

A sociedade brasileira, até então marcadamente rural, convivia, agora, com uma realidade também marcada pela urbanidade em função do processo de industrialização. Esse novo modelo de organização social e econômica não substituiu o antigo modelo rural calcado na grande propriedade, ao contrário, o processo de industrialização encontrou no desenvolvimento rural enormes possibilidades para se desenvolver. Reconheça-se que, as grandes lavouras de café, impulsionadoras da economia, possuíam mão-de-obra e quadros técnicos capazes de alavancar a incipiente industrialização que se processava, ajudando a consolidar as relações capitalistas de produção [4].

Um fato digno de menção é o estímulo do governo brasileiro à imigração do europeu para o Brasil expressando o entendimento da elite brasileira de que entendia que tais transformações sócio-econômicas deveriam ser acompanhadas da substituição do trabalhador negro pelos "trabalhadores ideais", isto é, o imigrante europeu contribuíram para a formação dessa mão-de-obra.

A cidade [São Paulo] crescia econômica, geográfica e urbanisticamente. Com esse crescimento sem planejamento aconteceu o fenômeno do inchaço da cidade com prejuízos sociais à população já que a saúde, a alimentação, a habitação e as condições de trabalho eram precárias. É assim que "nesse contexto, verifica-se o surgimento ou o agravamento de crises sociais que outrora eram pouco relevantes no cotidiano da cidade". [5] Uma das conseqüências diretas da crise social gerada pela industrialização foi o aumento da ocorrência de crimes, reflexos de uma maior incidência de conflitos urbanos.

O sentimento de insegurança gerado na sociedade brasileira dessa época – manifestado, por exemplo, no soneto O vagabundo, mencionado acima – significou um problema a ser enfrentado pelo Estado brasileiro que, contudo, não tinha um programa de ação para minorar os efeitos sociais oriundos da urbanização e industrialização.

É nesse cotidiano de transformações que se insere o menor brasileiro do início do século XX: por um lado, crescimento econômico, industrial e urbano; por outro, agravamento das crises sociais, proliferação dos cortiços, marginalidade, miséria e criminalidade.

Ante a todas essas situações, o menor recorria à esperteza nas ruas da cidade, "o local perfeito para por em prática as artimanhas que garantiriam sua sobrevivência" [6]. Inúmeros menores se dedicavam a praticar crimes devido à "deterioração das condições sociais, as modificações das formas e modos de relacionamento", além disso, " os diferentes e novos padrões de convívio que a urbanidade impunha a seus habitantes eram ignorados pelo discurso oficial, que estabelecia a oposição entre lazer-trabalho e crime-honestidade". [7]

Como o Estado não tinha um programa de ação para enfrentar as conseqüências sociais advindas da urbanização, recorreu a um discurso moralista [8] que não inquiria as causas reais daquela nova situação, limitando-se a contrapor o valor trabalho à vadiagem. Utilizando-se da hostilidade para lidar com os conflitos sociais, a mentalidade nascente da elite da época, sob a influência de um regime pré-industrial apregoava que: todos aqueles que não se inserissem no processo produtivo - incluindo aí as crianças - estavam condenadas à vadiagem, crimes previstos no art. 399 e 400 do Código Penal de 1890. Vadios eram considerados também aqueles que, rejeitados pelo mercado formal, sobreviviam no mercado informal. Como não podiam provar suas ocupações, eram presos.

Há que se anotar que o trabalho na indústria norteou a vida de inúmeros [9] menores que conviveram em um cotidiano permeado pela violência, seja por acidentes de trabalho, seja por "maus-tratos" efetuados pelos patrões para manter os menores na linha. [10]

Nesse ambiente hostil às classes populares, os menores encontravam nas atividades ilegais a forma de sobreviverem que, muitas vezes, eram realizadas ante a impossibilidade de realização de atividades lícitas. [11] Texto da época revela os contornos dessa situação:

"É extraordinário o número de meninos que vagam pelas ruas. Durante o dia, encobrem o seu verdadeiro mister apregoando jornais, fazendo carretos; uma vez, porém, que anoitece, vão prestar auxílio eficaz aos gatunos adultos que, por esta forma, se julgam mais garantidos contra as malhas policiais." [12]

O comportamento dos menores nas ruas da cidade, transitando entre atividades lícitas e ilícitas, contraria a moral dessa sociedade urbana calcada no valor trabalho/honestidade em oposição a vadiagem/criminalidade. Diante desse quadro, o Estado é chamado a intervir, sempre na perspectiva de reprimir a questão social por ser um problema moral de determinados membros da sociedade. Não parecia relevante ao Estado brasileiro inquirir se todos os setores da sociedade brasileira dispunham de condições de se adequar à essa moral: seria possível que todos os menores freqüentassem escolas?

Evidente que não. Desde muito cedo, os menores oriundos dos setores populares deveriam se preocupar com o sustento familiar. O Estado brasileiro opta por uma política de correção moral a esses menores, encontrando na proliferação dos internatos o modelo perfeito de realização dessa moral. [13] Esse modelo corretivo permitiria que o Estado desenvolvesse nesses menores o valor trabalho: "A correção que o Estado lhes imputava passava necessariamente pela pedagogia do trabalho" [14].

Essa pedagogia do trabalho pretendia introduzir os valores do trabalho nos menores delinqüentes internados nos internatos, visando reintroduzí-los nas frentes de trabalho de uma sociedade que já os rejeitara. [15] O Estado brasileiro tem um papel decisivo para a formação da mão-de-obra na industrialização:

"O país em crescimento dependia de uma população preparada para impulsionar a economia nacional. Era preciso formar e disciplinar os braços da indústria e da agricultura" [16]

Em patronatos ou colônias, menores eram recolhidos pela política e enviados para aprenderem uma profissão, tratando-se

"de uma política voltada para o ordenamento do espaço urbano e de sua população, por meio do afastamento dos indivíduos indesejáveis para transformá-los nos futuros trabalhadores da nação, mas que culminava no uso imediato e oportunista do seu trabalho". [17]

Código Mello Matos

À ocasião da elaboração do Código de Menores de 27 (conhecido como Código Mello Matos), esse novo contexto sócio-econômico foi considerado. Informa-nos Alvim que, os debates que antecederam a elaboração do Código de Menores de 27 - envolvendo principalmente juristas, médicos, industriais, policiais e jornalistas em torno da questão da infância pobre – centraram-se nos temas da delinqüência, da universalização da escolarização, do controle do Estado sobre as famílias e no tema do trabalho.

A questão do trabalho, contudo, pareceu dominar a tônica dos debates, ao se estabelecer a polêmica entre industriais, de um lado, e juristas e médicos de outro. Os primeiros, usando amplamente a força de trabalho do menor (principalmente a industria têxtil), entendiam que a única possibilidade de educação para as classes populares era através do trabalho.

Os juristas e médicos, por seu turno, defendiam a fixação de uma jornada de trabalho de seis horas para os menores e a idade mínima de 14 anos. Isso permitiria

"salvar a ‘raça’, ou seja os menores e possíveis adultos, mesmo que isso custasse a desorganização da industria. Desta forma, a idade biológica permitida para o trabalho, assim como para a punição penal, se constrói de acordo com os interesses e posições dos agentes em disputa. Para os empresários, quanto menos idade tivesse o indivíduo classificado como menor melhor seria para a organização do trabalho em suas industrias. Assim como para a polícia que teria poderes para reprimir e levar ao Juiz de Menores os supostos "delinqüentes", tirando-os das ruas, espaço em que vistos e considerados transeuntes ilegítimos." [18]

O Código de Menores de 27, também conhecido como Código Mello Matos, ao se constituir na primeira legislação específica voltada para esses menores, partia desse contexto social marcado pela criminalidade e pelas longas jornadas de trabalho a que eram submetidos os menores. Verifica-se, aí, os contornos delimitadores do termo menores: apenas determinado grupo de crianças e adolescentes do início do século XX seriam considerados menores, representando um setor específico, identificado com a gerava delinqüência, a marginalidade e o abandono.

É no artigo 26 do Código de Menores e na Lei n.º 5.258, alterada pela Lei n.º 5.439 onde se encontram definidos os destinatários do Código de Menores. Nesses artigos e respectivos incisos, o legislador estabelece o objeto do Código: não qualquer criança entre 0 e 18 anos, mas, aquelas denominadas de " ‘expostos’ (as menores de 7 anos), ‘abandonados’ (as menores de 18 anos), ‘vadios’ (os atuais meninos de rua), ‘mendigos’ (os que pedem esmolas ou vendem coisas nas ruas) e ‘libertinos’ (que freqüentam prostíbulos)." [19]

Consolidando toda a legislação sobre crianças até então emanada por Portugal, pelo Império e pela República, [20] o Código de Menores estabeleceu um sistema de atendimento à criança assentado nos efeitos sociais de um processo de industrialização excludente que agravou os problemas sociais. Não qualquer criança seria objeto de intervenção da Justiça de Menores, mas os filhos das pessoas que moravam em cortiços e subúrbios, crianças mal alimentadas e privadas de escolaridade, vivendo em situações de carências culturais, psíquicas, sociais e econômicas que as impeliam a ganhar a vida nas ruas em contato com a criminalidade tornando-se em pouco tempo delinqüentes". [21] O Código Mello Matos direciona-se àqueles setores sociais excluídos pelo setor produtivo, instalados em subúrbios, privados dos frutos da industrialização, alijados do acesso aos colégios ou de uma política de proteção à família.

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Cinqüenta e dois anos separam o Código Mello Matos do Código de Menores de 1979. Durante esse período, o Código Mello Matos cumpriu seu mister de ser aplicado após a instalação do conflito. Como só os "vadios", "abandonados" ou "delinqüentes", isto é, os desajustados sociais eram objeto de intervenção do poder judiciário, apenas se e quando se enquadrassem em alguma daquelas definições haveria uma ação do poder público através da intervenção do poder judiciário. A ação estatal se efetua por intermédio do Código de Menores, limitando-se aos juízes de menores. Não há a presença do Estado atuando para evitar o conflito, para evitar que tais menores se enquadrassem nas tipologias previstas no Código de Menores. Por outro lado, durante esse período, os juízes de menores tiveram um papel preponderante e exclusivo na gestão do sistema que recebia os menores delinqüentes.

De acordo com a Professora Liliane Capilé, pode-se visualizar esse modelo, sobretudo, nos anos de 1930 à 1964, quando consolidou-se o emprego do Código de Menores, principalmente, para os casos de delinqüência. Nesse período,

"os internatos vivem neste período o seu apogeu com o SAM (Serviço de Assistência ao Menor) fundado em 1940 e tendo como proposta recuperar as crianças e os adolescentes, os menores, ao mesmo tempo que deveria proteger as crianças pobres, ‘abandonadas’ que necessitavam do abrigo do Estado para poderem alimentar-se e estudar. Grande parte dessas crianças tinha família, e eram levadas por elas ao internato até saírem com a maioridade." [22]

Os internatos se adequavam a um modelo de atendimento ao menor pautado no controle social, isto é, o menor seria moldado, corrigido de acordo com as diretrizes estabelecidas pelas entidades de internação. A idéia era de que a responsabilidade pela educação desses menores era de suas famílias, logo, se essas falhassem, seja pela impossibilidade de provê-los material e emocionalmente, seja pela inviabilidade de afastar-lhes da delinqüência e marginalidade, caberia ao Estado, escorado no Código de Menores, a responsabilidade de corrigir esses estados de patologia social mediante a internação dos menores.

Esse modelo calcado no internamento e no SAM começou a sofrer críticas no final dos anos 40 e durante a década de 50 mesmo existindo uma política de assistência e promoção e projetos educativos importantes nos SAM. [23] A razão das críticas ao modelo de internato se devia às denuncias de maus-tratos sofridos pelos internos e a incapacidade desses menores abandonarem a delinqüência, constatadas a partir da publicação na imprensa de nomes de criminosos famosos egressos do SAM. [24] Deveriam existir mudanças para corrigir essa situação, contudo, isso não significava abandonar o modelo de internação, até então ocupando posição central no sistema, já que, apesar de existirem pessoas que já desacreditavam desse modelo como capaz de solucionar a questão do menor, representavam, ainda, parcela minoritária. A tese vencedora é de que deveria se operar uma reforma no modelo SAM, através da criação de uma entidade de caráter nacional que formulasse a política nacional do bem-estar do menor: estava criada a FUNABEM.

A FUNABEM [25] deveria planejar, orientar e coordenar a política e o trabalho das entidades do menor e, também, fiscalizar o cumprimento de convênios e contratos com ela celebrados (art. 7º, V, Lei n.º 4.513/64). A implementação da política assistencial do menor se daria mediante as Comissões Regionais que eram verdadeiros órgãos de execução da FUNABEM. A política era orientada a partir de um centro gestor que irradiava suas diretrizes através de Comissões Regionais. Fato que evidencia isso, é a possibilidade dada às Comissões Regionais de celebrarem convênios, mediante prévia autorização do Conselho Nacional da FUNABEM (art. 14, parág.. único, Lei n.º 4.513/64). Do mesmo modo, o artigo 16 da referida lei obrigava as entidades que recebessem dotações compulsórias, subvenções ou auxílios a planejar suas atividades em obediência às diretrizes traçadas pelo Conselho Nacional.

A questão se coloca dessa maneira: o modelo de internação, característica fundamental estabelecida pelo Código Mello Matos, apresentava sinais de esgotamento ante aos resultados pífios de recuperação de menores e aos inúmeros desvios de finalidade encontrados nessas instituições.

A solução para resolver esses dois problemas centrais não foi a de abandonar o sistema calcado nas internações, ao contrário, ele seria mantido e, inclusive, ampliado mediante a criação das Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor. [26] Porém, a criação da FUNABEM pretendia corrigir as falhas observadas no SAM, já que, como responsável pela formulação de uma Política Nacional do Bem-Estar do Menor, teria subordinada, às suas diretrizes, todas as entidades públicas e particulares que prestassem atendimento à criança e ao adolescente. Financeiramente autônoma, a FUNABEM incorporaria a estrutura do Serviço de Assistência ao Menor existente nos estados, incluindo-se aí, tanto o atendimento aos menores carentes e abandonados quanto aos infratores. [27]

As criações da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, em dezembro de 1964 e das Feben´s estaduais, assim como toda a questão do menor, podem ser entendidas no âmbito da doutrina de Segurança Nacional, cuja matriz brasileira foi a Escola Superior de Guerra e teve como matriz americana o National College War e a sua National Security Act, de 1947. A ditadura militar, iniciada em abril de 1964, concebeu amplas reformas que incluiu, dentre outros, a outorga de uma nova Constituição e, no campo educacional, a reforma do sistema educacional brasileiro a partir dos acordos MEC/USAID e a reforma do ensino universitário em 1968, objetivando constituir barreiras ideológicas, culturais e institucionais à expansão da ideologia marxista. [28] Tal situação caracterizaria o trabalho executado pela Funabem/Febem como sendo escorado nos preceitos do militarismo [29], com ênfase na segurança, na disciplina e na obediência.

Esse parece ser o entendimento também da Prof. Liliane Capilé para quem

"os primeiros ideólogos da FUNABEM não lidavam mais com a perspectiva do menor trabalhador [como à época da formulação do Código Mello Matos de 1927], mas com o "infrator" e o "carente", e acreditavam que para assegurar a ordem, para manter a doutrina da segurança nacional, esses menores deveriam ser "enclausurados". [30]

Observe-se que toda a mudança da política dirigida aos menores, fomentada a partir da criação da FUNABEM em 1964, ocorreu sem que o Código de Mello Matos de 1927 fosse revogado. Evidentemente, surgiram leis que o alteraram (quais leis 4.655/65, 5.258/67 e 4.439/68) [31], contudo, o Código de Menores permaneceu em vigor e aplicável no mundo jurídico.

Como explicitado acima, o Código de Menores de 27 assentou a estrutura de resolução do conflito social, gerado pelo processo de urbanização e industrialização, na justiça de menores. Seria o juiz de menores, o personagem responsável e decisivo para o sucesso na aplicação do Código de Menores, decidindo o destino dos menores e fomentando-lhes a moral apregoada pela industrialização. Contudo, como se viu, esse modelo apresentou resultados pífios evidenciando o seu insucesso. A política de atenção ao menor inaugurada pela FUNABEM parece ter reconhecido problemas comuns já existentes à época da elaboração do Código Mello Matos em 1927 [32], contudo, sob a influência da doutrina da segurança nacional, o raciocínio é de que a centralização da política dirigida ao menor propiciaria a mudança nos resultados dos menores atendidos pelo Estado. A política dirigida ao menor, iniciada durante a ditadura militar, evidencia o executivo federal como promotor e executor de medidas voltadas àquele grupo, em detrimento dos juízes de menores. Essa é a grande iniciativa no panorama da gestão da infância e adolescência compreendida no período de 1927 à 1988. Pode-se dizer até mesmo que, a centralização inaugurada pela FUNABEM pós-64 teria importância prática maior que o novo Código de Menores que fora elaborado em 1979.

Código de Menores de 1979

O Código de Menores iniciou sua tramitação no Congresso Nacional a partir do projeto de Lei n.º 105/74 de autoria do senador Nelson Carneiro que instituía o Código de Menores. Sob certos aspectos inspirado na Declaração Universal dos Direitos das Crianças da ONU de 1959, o projeto do senador Carneiro reconhecia direitos às crianças e aos adolescentes, tais como, o direito à saúde, à educação, à profissão, à recreação e à segurança social (arts. 1º e 2º, projeto n.º 105/74), responsabilizava a família, a comunidade e o Estado pela proteção e assistência social do menor (art. 13) e previa a necessidade de proteção à família, sendo que, só excepcionalmente, o menor poderia ser separado dos pais (artigo 5º). [33]

Apesar de tímida, as inovações do projeto do senador Carneiro podem ser apontadas como precursoras do direito das crianças no legislativo brasileiro - ao menos no que se refira à responsabilização do Estado e da sociedade e a importância desses assegurarem meios para que a família carente pudesse manter seus filhos (art. 23, ECA) -, já que tais proposições são identificadas como constantes dos direitos da criança ao invés de serem de direito do menor.

Ocorre que durante a tramitação do projeto do senador Carneiro, as disposições identificadas como de direitos das crianças foram suprimidas. [34][35] Abandonando a fórmula da enunciação dos direitos das crianças, o Congresso Nacional – acatando projeto elaborado por juízes de menores apresentado pelo relator da matéria na Câmara dos Deputados, Claudino Sales,– optou por substituí-la pelo modelo de tipificação dos casos em que os menores estariam em situação irregular. Desse projeto apresentado na Câmara, aprovou-se o Código de Menores. A justificativa para a substituição seria a de que a Declaração dos Direitos da Criança de 1959 não era um texto legal. Sendo uma declaração, não tinha caráter normativo. Além disso seria injurídico o Código de Menores enunciar direitos como saúde, educação, recreação, já que, ao fazer isso, interferiria na competência de cada Ministério. Ao contrário, seria ideal um código que definisse a situação irregular do menor, seu tratamento e prevenção até mesmo por uma questão de tradição legislativa. Além disso, o Código de Menores traria implícita o reconhecimento da Declaração dos Direitos da Criança de 1959 sem necessidade de explicitação dos direitos: "da Declaração de Direitos da Criança pela ONU, resulta o reconhecimento de que as necessidades básicas de toda criança são aquelas acolhidas pelo Projeto" [36].

Distinção básica entre direitos da criança e direito do menor reconhece que o primeiro pugna pela

"elaboração e efetivação de programas de atuação os mais amplos possíveis, nos quais a preocupação é garantir às populações infantis e jovens as melhores condições de desenvolvimento social e maturação biopsíquica".

Já o Direito do Menor - e o Código de Menores como seu instrumento – restringe-se às situações peculiares em que se encontram certas crianças, a exigirem a prestação jurisdicional. Em suma,

"A pessoa que constitui o sujeito do Direito do Menor não é qualquer criança, mas o menor em estado de patologia social ampla, pois que a solução do problema em que se encontra será dada através de uma decisão judicial, emanada de um processo judicial, fiscalizado pelo Ministério Público". [37]

O fato é que o Código de Menores de 79, na forma com que viria a ser aprovado, propôs-se a ser uma reformulação do antigo Código Mello Matos de 1927. O Parecer n.º 296, de 1975 do senador José Lindoso, quando da primeira votação no Senado reflete esse entendimento:

"em nenhum momento se olvidou imensa contribuição emprestado pelo Decreto n.º 17.493-A, de 12 de outubro de 1927, conhecido como Código Mello Matos e que já naquela época tinha uma filosofia de amparo e proteção, necessitando, entretanto, de adaptações face às profundas transformações sócio-culturais por que passou o país" [38].

Julgando ser necessária a atualização do Código Mello Matos, é certo que o legislador do Código de 79 pretendeu adaptá-lo às novas situações, mantendo o "espírito" do Código de 27. Altera-se a disposição dos artigos, atualiza-se a linguagem jurídica, inova-se sob certos aspectos, mas a estrutura jurídica se alicerça em fundamentos comuns. Um exemplo fundamental que realça essa perspectiva pode ser observada na caracterização das situações irregulares abrangidas por cada Código (27 e 79), pela qual se revelam os destinatários para quem o código é dirigido.

Observa-se que, enquanto no Código de 79, através da situação irregular (art. 2º), são elencados os casos em que os menores são objetos do interesse estatal, no código de 27, é o "menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinqüente, que tiver menos de 18 anos de idade, [o qual} será submetido pela autoridade competente às medidas de assistência e proteção contidas neste Código" (art. 1º). Há, assim, uma continuidade lógico-jurídica que informa ambos os códigos.

O argumento menorista era de que o Código de Menores – apesar de não enunciar direitos – parecia pressupô-los, isto é, já os considerava implicitamente já que atribuía a responsabilidade do bem-estar da criança exclusivamente à família. Na é a mesma coisa. Há uma diferença marcante entre as duas concepções (a menorista e a inaugurada pela Declaração da Criança de 1959). Seguindo-se a orientação adotada pelo Código de Menores de 79, por exemplo, não se conferia às crianças à possibilidade de reivindicar a exigibilidade de um direito, pois, esses não eram enunciados. Assim, se por um lado, a responsabilidade da família para com a criança, garantida juridicamente, conferia-lhe o poder-dever de assegurar o bem-estar da criança, por outro, não garantia à criança ou adolescente a possibilidade de lhe ser assegurada bem-estar em caso de impossibilidade da família em assegurar-lhe. Alçada ao fim último que determinaria o sucesso ou insucesso de um menor, da família se exigia o bem estar da criança sem que necessariamente o Estado se comprometesse a assegurar o bem estar da família. Querendo representar a preocupação da sociedade para o problema da criança, os efeitos pretendidos da legislação menorista mostrar-se-iam irrealistas na medida em que, ao atribuir a responsabilidade exclusivamente à família, expunha a criança, sobretudo por que problemas sociais, tais como, a desagregação familiar, as dificuldades financeiras e a pobreza não são resolvidos apenas no âmbito familiar. O fato é que o cotidiano da família é influenciado diretamente por fatores culturais, econômicos e sociais e tais fatores, em boa parte dos casos, acabam por aumentar o desafio de se criar os filhos. Observar-se que o Estado e a sociedade não possuíam responsabilidades para com o menor, ao menos antes da ocorrência da situação irregular, significa reconhecer o estímulo à ocorrência de situações irregulares sobretudo ante a insuficiência da família em evitar a ocorrência da situação irregular.

O Código de Menores de 79 e a doutrina que o inspirou (situação irregular) parecem desconhecer as limitações da família (inclusive em assegurara integridade física). A idéia fundamental é a seguinte: manifesta-se a necessidade de que a criança e o adolescente tenham bem-estar e vivem em um ambiente harmônico, contudo, tal preocupação não é expressa em forma de direitos às crianças e aos adolescentes o que impossibilita a exigibilidade da concretização de direitos para crianças e adolescentes. Logo, cabe à família assegurar o bem-estar da criança; família essa que tem mostrado dificuldades e limitações para assegurar o bem estar das crianças. É interessante observar que a doutrina da situação irregular - ao responsabilizar a família, unicamente, pelo menor - acaba por situá-la na origem do mal. Liborni Siqueira, então juiz de menores de Duque de Caxias (RJ), declarou no jornal O Globo seu entendimento de que "é a família que está abandonada, desassistida e carente" e que "o problema é evitarmos que o menor chegue a FUNABEM, atendendo à gestante, à nutriz e às crianças de zero a seis anos" (p. 90). Essa visão social do juiz manifestado acerca do art. 2º, I, do Código de Menores parece não ter encontrado amparo no Código no sentido de obrigar o Estado a proteger a família por meio de programas sociais.

Não estando obrigado a efetivar direitos - o que exigiria recursos e investimentos - cabe ao Estado esperar o resultado dessa omissão para agir de forma repressiva. Por tudo isso, a ação do Estado e da sociedade no Código de Menores é negativa no que tange à efetivação de direitos (não chegam a ser reconhecidos). Isso permite, dentre outras coisas, que se justificasse a tragédia da infância brasileira como algo inevitável, já que Estado e Sociedade não possuíam obrigações diante desses casos. Eis aí uma nova finalidade do Código de Menores: ser instrumento de desencargo de consciência de burocratas, políticos e da sociedade brasileira!

Não enunciar direitos significa impossibilitar a reivindicação de sua implementação. Daí a visão caolha da doutrina da situação irregular: ignora-se a necessidade de um sistema de proteção à infância e adolescência sob o argumento de que a família é suficiente para garantir as necessidades dos seus. A discussão então não passará por uma perspectiva dos conflitos existentes na sociedade que geram desigualdades; ao contrário, a questão desloca-se para o campo moral. De outro modo, enunciar direitos significa discutir as políticas específicas de cada área governamental voltada para a família e a criança bem como os limites impostos à sua concretização. Implica a discussão das próprias relações de estrutura do poder, o emprego e a prioridade dos gastos públicos. Em última instância, culmina a possibilidade de acionar o judiciário e exigir direitos.

A aplicação do Código de Menores estava restrita aos casos de patologia social, isto é, o sujeito a quem se destinava a legislação menorista não era qualquer criança mas aquela que tivesse a sua conduta adequada ao seu artigo 2º. Apenas o menor que se adequasse ao tipificado como situação irregular (art. 2º) gozava de "acesso à justiça" já que, nesse caso, houve uma "falha" do menor ou da família que resultou em carência (art. 2º, I a IV) ou em conduta anti-social (art. 2º, V e VI). Percebe-se aí o componente moral acima referido: alguém, a família ou o menor, há que falhar; há que existir um culpado para que se justifique a conduta social e o acesso às medidas judiciais.

O aspecto do "acesso à justiça" (já que apenas os casos de situação irregular estariam legitimados para fazê-lo), realça o caráter do Código Menores de 79 de um instrumento legal limitativo. Primeiro, pois restringe o "acesso à justiça" (se é que se pode falar assim) a casos determinados [39]; segundo e como conseqüência, inviabiliza que interesses da criança gozem de proteção jurídica. Sobressai daí que, hipoteticamente, se à criança fosse negado "condições essenciais à subsistência" como a saúde ou a educação por uma razão que não se constituísse "falta, ação ou omissão" dos pais ou responsáveis, mas sim, por uma omissão estatal ou uma ação de um terceiro, de um grupo de sociedade, esse caso não teria amparo no Código de Menores. Da mesma forma, uma situação que não estivesse prevista como perigo moral (art. 2º, III), maus-tratos (art. 2º) privado de assistência legal (art. 2º, IV), desvio de conduta (art. 5º, V) ou infração penal (art. 6º, VI) estaria impossibilitada de ser conhecida pelo judiciário. É o caso do menor que não tivesse acesso ao lazer, à recreação ou à profissionalização já que não havia qualquer previsão de exigibilidade desses ou de quaisquer outros direitos. Daí advém a conclusão de que o menor não é sujeito de direitos, não os tendo ou podendo reivindica-los nos casos de situação irregular.

Verdadeiramente, há um descompasso no discurso jurídico inserido no Código de Menores e o fim propugnado pelo mesmo código consistindo na assistência, na proteção e na vigilância dos menores. O Estado (e aí inclui-se o judiciário) não se obriga em relação aos menores, contudo, esses se obrigam em relação ao Estado e à sociedade. Afora os casos de vigilância (arts. 48 a 58) e autorização para viagem (art. 62), onde há atuação preventiva do poder público dirigida a todos os menores (parágrafo único, art. 1º), a atuação do Estado era privilegiada para o momento em que o menor viesse a ser considerado em situação irregular.

Por ser taxativa, a doutrina da situação irregular, associada à idéia de patologia social, não abrange nem mesmo o conjunto de hipóteses possíveis de controle social. O art. 2º não abre a possibilidade de adequar a conduta do menor a outros casos que não definidos em seus incisos, ainda que axiologicamente merecessem a mesma proteção dos casos ali elencados. Ante a dinâmica imposta pelos fenômenos sociais, a taxatividade presente nas situações definidoras de situação irregular constituem o código de menores de 79 em um instrumento legal incapaz de regular ou abrir possibilidades de regulação para toda a problemática do menor.

É assim que, não alcançando todas as crianças, o Código de Menores somente possui eficácia jurídica, isto é, produz resultados na órbita jurídica, quando determinada conduta de um menor se adequa a algum dos incisos que caracterizam a situação irregular (art. 2º).

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Sobre o autor
Rinaldo Segundo

bacharel em direito (UFMT), promotor de justiça no MPE/MT e mestre em direito (Harvard Law School), é autor do livro “Desenvolvimento Sustentável da Amazônia: menos desmatamento, desperdício e pobreza, mais preservação, alimentos e riqueza,” Juruá Editora.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEGUNDO, Rinaldo. Notas sobre o direito da criança. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3626. Acesso em: 19 abr. 2024.

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