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A lei brasileira da arbitragem de justiça privada e a realidade constitucional de sua aplicação no sistema do direito positivo vigente

01/07/2002 às 00:00
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O artigo pretende demonstrar com clareza a realidade histórica e atual da nova lei de arbitragem, como alternativa constitucionalmente válida de aplicação da justiça nos litígios. Para tanto, faz um estudo bastante aprofundado de suas implicações constitucionais relativamente ao acesso e à efetividade da justiça privada no sistema da administração da justiça pública. Os fundamentos da nova lei de arbitragem, com base na negociação e no acordo, permitem compreender que a distinção entre justiça pública e justiça privada não é dicotômica, mas de natureza complementar para a satisfação dos direitos dos cidadãos.


Unitermos

: justiça privada, compromisso arbitral, cláusula arbitral, decisão arbitral.

1. A promulgação da Lei n. 9307/96 veio consolidar contornos legislativos definitivos à instituição da arbitragem de justiça privada no Brasil. O sistema jurídico brasileiro de administração da justiça consagrou uma nova modalidade de acesso à justiça e de solução dos litígios na ordem jurídica interna ao estatizar a arbitragem privada como alternativa válida para a decisão de determinados tipos de demandas em que prevalece o princípio da disponibilidade da vontade das partes sobre a justiça material dos seus bens. A institucionalização na ordem política de novos mecanismos extrajudiciais para a composição das controvérsias jurídicas revalorizou a autonomia da vontade das partes, sujeitos diretos à disponibilidade negociadora da justiça privada de seus bens jurídicos; com isso, conferiu-se aos cidadãos o direito de escolher um tertius a quem se atribui o poder de solucionar o litígio pela arbitragem. O exercício da arbitragem extrajudicial passa diretamente pelo exercício da mediação, condição necessária para que o árbitro proceda à negociação do mérito da justiça material das partes.

2. O árbitro não pode impor a sua vontade nem antecipar a justiça do direito das partes, uma vez que a arbitragem privada que a lei regula passa pelo processo da mediação dos interesses em jogo, na busca de um equilíbrio entre os direitos opostos. Certamente, a obtenção pelo árbitro de um resultado de eqüidade, mediante o acertamento do justo humano reivindicado pelos conflitantes, constitui a condição básica do processo negociador entre as partes e o árbitro. A formalização e a validade do termo de arbitragem garantem que os direitos das partes foram reciprocamente discutidos com base no acordo de eqüidade que se caracteriza pelos princípios da paridade, de quem adere, de forma igual, ao sistema de justiça privada, e da confiabilidade, de quem opta pela negociação e aceita o poder da solução de arbitragem de outrem, diferente do poder judiciário (Strenger, 1998).

3. É fácil verificar que a lei da arbitragem brasileira consagrou um sistema de justiça privada que, absolutamente, não interfere na constitucionalidade do acesso à administração da justiça pública. A prática histórica da arbitragem, como solução nacional ou internacional, pública ou privada, sempre apresentou o caráter da imparcialidade de quem arbitra os interesses das partes em relação à justiça material dos litígios; é necessário mesmo enfatizar que o princípio da imparcialidade da arbitragem tem origem anterior à estatização da jurisdição atribuída aos órgãos da administração da justiça pública.

4. A Lei n. 9307/96 veio resgatar a história da legitimidade social e a efetividade jurídica da instituição da arbitragem, dando ênfase, na era contemporânea, à sua aplicação como instrumento garantidor da justiça privada. A lei de arbitragem de justiça privada revogou todos os artigos do Código de Processo Civil que regulavam um instituto de arbitragem sui generis que exigia a homologação judicial dos órgãos da justiça pública para que o acordo arbitral pudesse tem validade e eficácia entre as partes. Procura-se, nas constituições e nas legislações vigentes, dar prevalência ao acordo de vontade das partes e, por conseqüência, transferir a responsabilidade da solução do litígio para terceiros, por meio da mediação negocial e conciliadora de eqüidade. A lei da arbitragem brasileira prestigiou a autonomia da justiça privada das partes, inclusive no tocante à disponibilidade de seus bens e, dessa forma, permitiu-lhes, não somente regular o mérito da justiça material do procedimento arbitral, mas também estabelecer condições de imparcialidade ditadas pela confiança que depositam na pessoa do árbitro; em suma, da escolha mútua e consensual da arbitragem são inferidas normas com as quais as partes e o árbitro negociam as questões e atingem, de comum acordo, os objetivos de uma solução imparcial (De Tena, 1988).

5. A realidade prática demonstra que a administração da justiça pública não pode conhecer nem cabe a ela resolver a justiça material de todas as controvérsias jurídicas. É consabido que ao poder jurisdicional do Estado serão encaminhadas as demandas que não puderem ser solucionadas por meio de acordo da justiça privada das partes. Na realidade prática, o poder judiciário precisa ser desafogado das soluções arbitrais que, em princípio, são de pequeno valor, mesmo porque o poder estatal é incapaz de decidir todos os conflitos jurídicos de justiça privada; aliás, força é reconhecer que o atual atendimento da justiça pública do Estado não condiz com as exigências decorrentes das transformações da justiça privada na sociedade. Ora, o próprio poder estatal vê-se na contingência de criar mecanismos internos, constitucionais e processuais de acesso à justiça a fim de atender um maior número possível de pleitos de justiça privada.

6. A recente história da ordem jurídica brasileira comprova a criação dos juizados especiais de pequenas causa cíveis e criminais no sentido de agilizar o direito de ingresso à justiça pública, com, procedimentos menos formais. Por sua vez, a Lei 9307/96 avançou em matéria de acessibilidade e de julgamento de determinados litígios disponíveis de justiça privada. Não se trata de abertura pura e simples do sistema de publicidade do direito positivo, mas de viabilizar a privatização e a solução de todos os conflitos em que existem interesses jurídicos privados inter partes. A jurisdição continua sendo função constitucional do direito do Estado, que, em si, na concepção sistemática do juspositivismo, não está sujeita a um processo generalizado de privatização da justiça.

7. No plano da realidade prática, a lei de arbitragem promulgada no Brasil criou condições legais para institucionalizar um sistema de justiça privada, dentro do sistema de justiça pública, que envolve litígios jurídicos e em que prevalece o princípio da disponibilidade dos direitos das partes. Não se trata de sistema único, autônomo ou superador do sistema da justiça pública; ao contrário, a arbitragem de justiça privada funciona ao lado da jurisdição estatal, como equivalente jurisdicional à solução de casos concretos estritamente previstos na lei. Além disso, a arbitragem, como instrumento de acordo e de mediação negocial das partes, permite que o árbitro aplique regras escolhidas pelos próprios litigantes; com efeito, as regras de mediação e de conciliação servem de suporte básico à solução do litígio jurídico, objeto da arbitragem (Figueira Júnior, 1999).

8. Na realidade prática, não existe diferença fundamental entre a matéria jurídica que o árbitro negocia inter partes e, em seguida, formaliza a conciliação no termo do acordo. É claro que em si mediação e conciliação são institutos diferentes; no entanto, são diferenças teóricas que não influem no resultado final da arbitragem nem impedem a sua efetividade prática. Certamente, por sua natureza mediadora, compositiva e conciliadora, a solução da arbitragem de justiça privada, em sentido lato, encerra um conteúdo de natureza jurisdicional à semelhança do julgamento da justiça pública, uma vez que o árbitro ao final obriga-se perante as partes a decidir o mérito da justiça material discutida e aceita consensualmente por elas.

9. Sem o processo da mediação e sem a estratégia da conciliação, o árbitro veria inviabilizada a sua tarefa jurisdicional de apresentar uma solução jurídica de mérito ao caso; a institucionalização da arbitragem de justiça privada, em conseqüência, veio abrir um novo canal de acesso efetivo e de conhecimento seguro às pretensões jurídicas. Fundamental é que a solução arbitral resgata o verdadeiro conhecimento histórico da justiça construída e decidida por cada ser humano; por outro lado, evita que as partes e o árbitro se subordinem ao formalismo de uma decisão jurídica histórica que a concepção juspositivista preestabeleceu no processo da administração de justiça pública, como conditio sine qua non da interpretação e da aplicação jurisdicional a que se sujeitam o juiz, o advogado e as partes, dentro de princípio da vis coativa do legalismo.

10. É inegável que o instituto da mediação, como forma de diálogo permanente, é instrumento útil em si mesmo para a produção de resultados menos polêmicos e abertos à conciliação de partes contraditórias. Não é sem razão que o instituto da conciliação vem sendo mais empregado no processo vigente da administração da justiça pública na área civil e trabalhista. Existe, nas sociedades contemporâneas, uma clara tendência que incentiva os sujeitos processuais à busca de solução dos litígios com base no princípio da conciliação das partes. Exatamente, mediação e conciliação são os fundamentos que a lei da arbitragem de justiça privada procurou consagrar. Nas sociedades globalizadas do futuro, nas quais haverá de prevalecer a livre iniciativa da justiça das pessoas e dos grupos sociais, a prática real da mediação e da conciliação aparecerá priorizada na solução da arbitragem de justiça privada.

11. Na atualidade, o sistema estatal da administração da justiça pública utiliza, com freqüência, a conciliação como medida de emergência e, em regra, com objetivo de antecipação do mérito do litígio; visa-se, portanto, adotar um instrumento mais célere e seguro que supere a grave crise judicial do contraditório que afeta profundamente a credibilidade dos serviços da decisão, do acesso e da efetividade da justiça pública. No futuro, sem dúvida, a mediação, a conciliação e a arbitragem de justiça privada sinalizam para a adoção e o funcionamento de um sistema processual, permanente e prioritário de distribuição da justiça em que se atenda com maior agilidade e segurança o justo humano das controvérsias jurídicas. Somente assim, a sociedade política, aliada à sociedade civil, haverá de promover e garantir melhor justiça para todos os cidadãos e os grupos sociais. O reconhecimento legislativo da arbitragem de justiça privada já faz prenunciar o advento de uma nova alternativa de solução mais eficaz dos litígios jurídicos em que se dará ênfase à legitimidade da vontade consensual e da justiça privada das pessoas (Cafferata, 1996).

12. O que se objetiva na distribuição da justiça do futuro é um conteúdo de maior certeza, celeridade e efetividade ao justo humano das relações jurídicas. Ora, a arbitragem de justiça privada, com os limites competenciais a que a legislação vigente determinou, já é meio caminho andado à concretização negociadora da justiça privada na ordem social; é preciso incrementar, de modo mais geral e abrangente, os institutos da negociação, da mediação e da conciliação sob o signo da vontade consensual, primeiro passo para a solução dos litígios.

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13. É certo que a mediação dos direitos em litígio é uma técnica antiga, mas sempre nova de resolução alternativa e extrajudicial de disputas jurídicas; por meio dela a civilização humana sempre encontrou canal eficiente de comunicação direta entre pessoas juridicamente interessadas numa solução consensual e justa. A humanidade sempre viu com bons olhos a entrega do julgamento dos seus direitos a uma pessoa confiável, imparcial e radicada em seu próprio meio social; a figura de um árbitro, de um terceiro desinteressado, exercendo a função de mediador entre as partes, revela condições pessoais, morais e profissionais que lhe permite agir com neutralidade e com conhecimento de causa.

14. Trata-se, na verdade, de uma técnica histórica e empiricamente testada no âmbito nacional e internacional que nenhum sistema jurídico poderá ignorar; a realidade de sua prática, na vida social e política dos povos, melhora a qualidade e a quantidade da distribuição da justiça nas relações conflitivas e, por outro lado, revitaliza a renovação jurídica da administração da justiça pública que se vê impelida a incentivar a introdução de novos procedimentos de prevenção e de antecipação do mérito e da justiça conflitante a fim de evitar os inconvenientes do contraditório e da imposição contenciosa de decisões repressivas.

15. Mediar é sempre melhor do que contrariar interesses opostos e impor decisões em favor de um e contra o outro. Mediar significa negociar abertamente o próprio conflito com o objetivo pacifista de fazer com que as partes, sujeitos da justiça privada, concordem voluntária e consensualmente com a solução dada à justiça do litígio que elas próprias construíram e decidiram. A função jurídica do mediador apresenta sempre um conteúdo multidisciplinar, uma vez que as partes, com sua presença atuante, concorre, de modo decisivo, para que elas próprias atinjam todas as coordenadas psicológicas, éticas, morais e jurídicas da solução de direito que lhes convém reciprocamente. O desejo de ouvir e de ser ouvido integra o sentido da natureza humana que, ao natural, condiciona espaços para que a racionalidade e a vontade encontrem uma vocação transacional para o problema. Toda pessoa humana, no seu íntimo, tem uma tendência dialógica e prática que a incentiva a resolver com prudência, celeridade e segurança o problema de justiça subjetiva que a aflige. A busca de uma mediação negociada do conflito, sem complexidade formal e com a simplicidade da manifestação de sua própria vontade, permite às partes um diálogo frutífero e uma solução razoável e antidogmática da justiça dos seus direitos.

16. O posicionamento dialógico da mediação constitui a característica de quem escolhe e aceita a arbitragem, mesmo porque a conduta belicosa de quem se serve do contraditório do processo judicial gera no espírito contencioso dos litigantes um estado crônico de litigância de má-fé. O sistema de arbitragem de justiça privada, que garante confiança, agilidade, informalidade e mediação ao acesso e ao procedimento processual das demandas, incorpora ao princípio da boa-fé a essência solidária da prestação dos serviços da justiça aos cidadãos, ao povo (Cafferata, 1996).

17. A realidade prática comprova que, em muitos países do mundo contemporâneo, o sistema de arbitragem de justiça privada, bem aplicado, afasta as pessoas do contencioso dos tribunais, do processo moroso da justiça pública, e antecipa aos consumidores do direito na ordem social uma resposta positiva mais atualizada aos valores do justo humano dos conflitos em que prevalecem interesses privados. A forma institucionalizada de justiça privada pela via mediadora da arbitragem, apesar da limitação legal de competência a casos jurídicos disponíveis, consagra o princípio fundamental da dialogicidade em que se permite a manifestação da vontade consensual em defesa dos seus direitos e sem prejuízo da justiça subjetiva de cada pessoa. O diálogo negociado e mediado quebra o rigor formal do dogmatismo da justiça pública, quase sempre acusador e imposto pelas malhas traiçoeiras da burocracia de uma interpretação estrita (Aroca, 1990).

18. É necessário que, na atualidade, se ampliem os canais de abrangência legal da arbitragem de justiça privada. A realidade social e jurídica evidencia que a prática reguladora da arbitragem para qualquer tipo de litígio beneficiará a distribuição da justiça com maior eqüidade. Mediação e arbitragem constituem a melhor saída para minorar os malefícios da cultura do contraditório e do contencioso das decisões judiciais, quase sempre muito danosas aos direitos materiais e historicamente procrastinadoras da justiça das partes. A possibilidade legal de resolver problemas jurídicos da realidade psicossocial de pessoas, que necessitam de justiça imediata e pronta para os conflitos de natureza disponível, leva a acreditar seriamente na eficácia do sistema de arbitragem privada para todos os litígios de maior importância jurídica e gravidade social. Os cidadãos e o povo confiam mais na solução de sua própria justiça privada, quando a lei lhes permite dialogar e negociar os seus direitos na presença física de um árbitro, do que na vontade unilateral de um juiz que dita a sentença de justiça pública com base em interesses e direitos permanentemente contraditórios. É mais fácil e menos penoso aceitar a solução que as partes desejam cumprir do que a decisão jurisdicional de um juiz ou tribunal que impõe de cima para baixo a execução da justiça positiva de um direito e que, em princípio, não concilia ninguém (Strenger, 1998; Figueira Júnior, 1999; Aroca, 1990).

19. Não é demasiado insistir que a vida jurídica dos homens, na ordem social, é construída à base dos valores legítimos de justiça privada; a arbitragem pela mediação das partes é a metodologia mais natural que se usa na sociedade civil, e é capaz de harmonizar direitos opostos e contraditórios por meio de uma solução consensual. É muito complicado exigir que a interpretação positiva do poder estatal resolva o problema da norma-caso como se fosse sempre possível individualizar o justo jurídico da experiência histórica de justiça privada. Ora, as normas positivas são abstratas e genéricas; por isso mesmo, constituem paradigmas de validade formal e científica para o conhecimento do direito vivo, casuístico. O resultado da justiça pública, obtido por meio da interpretação estrita extraída do abstrato da norma positiva e aplicável ao real do caso, traduz a expectativa de uma decisão ética e jurídica, montada pela problemática hermenêutica de um sistema predeterminado (Pedroso, 1998).

20. Não se pode crer, em sã consciência, que a tipificação dogmática da justiça material com base em normas positivas seja critério universal de validade histórica definitiva de justiça privada. O justo histórico que o legislador preceitua garante, apenas, a segurança de uma série de casos individualizados aparentemente similares. Para o juspositivismo, o direito é uma ciência de tipos jurídicos consolidados que descreve ações típicas e regula normas genéricas, paradigmas que presumem interpretar e conhecer a justiça privada de casos individualizados por meio da aplicação de leis historicamente desatualizadas. A generalização tipificadora, interpretadora e aplicadora possui natureza prospectiva ad futurum, já que tem a pretensão axiológica da compreensão histórica, por antecipação, da justiça privada do caso futuro.

21. Contrariamente aos objetivos históricos pretendidos pela arbitragem de justiça privada, a justiça pública do direito positivo é incapaz de fornecer ao intérprete todos os dados éticos e axiológicos que legitimaram a justiça e a construção do caso e da norma que cada ser humano individualizou. A justiça das normas positivas não passa de dado pronto, fonte que pretende conhecer a justiça do caso, somente se essa tiver correspondência com aquela. A atividade hermenêutica do sistema juspositivista exige que o intérprete obedeça à justiça do dado científico e, com ele, fotografe o construído do justo humano da realidade, como se a fotografia da vida pudesse ser revelada com antecipação pela realidade da ciência. A ciência do direito positivo não tem o poder de resolver o problema norma-caso, por antecipação dogmática, nem da norma ao caso nem do caso à norma, porquanto uma e outro são construções históricas independentes do valor do justo humano, no espaço e no tempo, que o direito positivo estatal determina.

22. Com efeito, o processo hermenêutico da administração da justiça pública revela valores éticos e jurídicos que o intérprete deverá atualizar na realidade prática sob pena de incidir em erro histórico e axiológico que o legislador não pôde evitar nem prever na regulação da norma positiva. Não cabe, como princípio científico, ao prudente arbítrio do intérprete afastar-se formal e tecnicamente dos dogmas que a ciência do direito positivo lhe impõe. A observância do conteúdo genérico abstrato, contudo, não pode apresentar-se superador da justiça privada do caso, mesmo porque não lhe cabe ferir o conteúdo específico da experiência real; somente o juízo prudente, vinculado à historicidade do justo humano, autorizará o operador ou o árbitro a construir uma solução de eqüidade, como ratio decidendi do caso. Sem dúvida, o intérprete que age com prudência poderá completar e reconhecer a construção histórica da justiça privada do caso, mesmo quando ausente ou inexistente da história axiológica da norma positiva do legislador (Bastos, 1997, e Pedroso, 1998).

23. Vale insistir que toda norma da ciência positiva constitui parte integrante de um sistema fechado em que se pretende ver inserido o princípio histórico da justiça, fundamento da construção axiológica da ordem jurídica e da administração da justiça pública. No entanto, a essência da concepção científica do direito positivo e do ato hermenêutico da interpretação da justiça dos casos individualizados deve assentar-se, antes de tudo, no justo humano construído na eqüidade das relações jurídicas. É verdade que as normas do sistema e do direito positivo possuem origem histórica legítima na justiça privada, já que incidem sempre no justo humano. O problema da norma positiva como valor universal da sociedade política reside no fato de que as decisões da justiça pública podem contrariar as soluções da arbitragem negociadora da justiça privada, dentro do processo contínuo e histórico da interpretação crítica da vontade humana, na realidade social.

24. Uma derradeira questão de ordem política e técnico-jurídica merece atenção e, em conseqüência, uma resposta fundamentada; trata-se do problema da inconstitucionalidade levantado contra a Lei n. 9307/96. Logo que a lei da arbitragem brasileira de justiça privada foi promulgada, parte da comunidade jurídica do Brasil manifestou-se contrária à nova legislação, alegando grave lesão a princípios constitucionais vigentes no sistema do direito positivo pátrio (Strenger, 1998; Gama, 1999; Freitas, 1999).

25. Quais os fundamentos jurídicos em que se apoiaram os arautos da inconstitucionalidade da arbitragem da justiça privada, inclusive com pedido de declaração de inconstitucionalidade junto aos tribunais competentes? Basicamente, a contrariedade dos juristas brasileiros teve por foco a ofensa a três princípios constitucionais fundamentais: o princípio específico da jurisdição estatal; o princípio do controle jurisdicional ou do juiz natural, e o princípio do acesso à justiça pública.

26. A discussão em torno das referidas inconstitucionalidades, hoje, há quase seis anos da promulgação da lei brasileira da arbitragem de justiça privada, torna-se irrelevante em face dos fundamentos universalmente reconhecidos na prática histórica, na teoria da realidade científica e no reconhecimento político e social dos sistemas do direito positivo no mundo contemporâneo, que incentivam a arbitragem de justiça privada como alternativa básica para a composição dos litígios jurídicos, tanto no campo da jurisdição nacional quanto da internacional. (Resek, 1995).

27. A função que os árbitros privados exercem é de natureza jurisdicional em sentido lato, mesmo que a solução arbitral não possua o elemento do poder específico da execução forçada; ora, a execução arbitral depende somente do consenso e do acordo que as partes firmarem sobre a justiça da matéria jurídica a ser solucionada no litígio. O fato de que a arbitragem da justiça privada se caracteriza pela sua forma contratual não desfigura a sua natureza jurisdicional de composição do litígio inter partes e do seu cumprimento consensual (Bastos, 1997).

28. Conseqüentemente, o legislador político da arbitragem brasileira, como pensam os intérpretes desavisados, não criou normas jurídicas e árbitros com meras funções administrativas; ao contrário, reconheceu uma instituição de justiça privada com órgãos próprios para o exercício alternativo da atividade jurisdicional, não, como jurisdição específica de justiça pública, mas como, equivalente jurisdicional inserido na administração da justiça e no sistema do direito positivo.

29. É sabido que a jurisdição, por imperativo constitucional, não é exercida, com exclusividade, pelo poder judiciário; a Constituição brasileira prevê as denominadas justiças de exceção, e ela não proíbe estender a jurisdição a outros órgãos, como está ocorrendo com a lei da arbitragem privada. As normas constitucionais não vedam às partes, aos cidadãos, o direito de escolher a arbitragem privada, de optar pelo compromisso arbitral, ou submeter-se à cláusula compromissória sem ferir os princípios do controle jurisdicional, do juiz natural e da acessibilidade à justiça pública (Falla, 1992). É fácil concluir que a convenção da arbitragem pode ser firmada pela cláusula compromissória pactuada, (no contrato, por exemplo), antes da ocorrência do litígio, e pelo compromisso arbitral, objeto de pactuação inter partes após o surgimento do litígio (Figueira Júnior, 1999)..

30. Ao lado da tutela jurisdicional da justiça pública, o cidadão dispõe da tutela da arbitragem de justiça privada, como alternativa constitucional admitida pelo sistema de direito positivo. Nada existe na Constituição pátria que impeça o exercício de jurisdição especial por um árbitro privado, escolhido pelas partes, e que possua investidura legal diferente da jurisdição do poder estatal. A investidura legal do árbitro efetiva-se pela vontade compromissória das partes, prevista em lei que determina a escolha de pessoa da sociedade onde os litigantes convivem e que possua competência para conhecer e julgar o mérito da demanda.

31. Fica bem claro que o árbitro não ocupa o espaço constitucional da justiça pública, uma vez que a lei lhe conferiu atuação em matéria jurídica limitada, e autoridade competente para o exercício da arbitragem na qual será investido por opção dos litigantes; as partes, no entanto, não são coagidas a pactuar o compromisso arbitral. A ação consensual das partes é cristalinamente livre, voluntária e legal, tanto na cláusula compromissória, quanto no compromisso judicial quando, de comum acordo, decidem discutir e conciliar entre si perante o árbitro os seus interesses opostos e contraditórios. A arbitragem privada constitui, portanto, uma alternativa constitucional que propicia o acesso à justiça desde que adequado à matéria jurídica prevista na lei, a procedimentos informais e à solução do litígio sem o uso do formalismo processual da justiça pública.

32. Por força da lei vigente, as soluções jurídicas proferidas por árbitros privados possuem validade para produzir efeitos de justiça material, idêntica às decisões prolatadas pelos órgãos estatais do poder judiciário. O objetivo primordial da jurisdição de justiça pública e, conseqüentemente, da arbitragem de justiça privada, por imperativo constitucional, é a tutela da justiça dos direitos litigiosos dos cidadãos; são, por isso, instrumentos legais, adequados e idôneos à concretização da justiça material dos litígios.

33. Incorporada constitucionalmente aos princípios de validade e de efetividade do sistema de direito positivo, a arbitragem de justiça privada, no fundo, apresenta um colorido político-jurídico democrático, na medida em que se vincula à liberdade de opção e de livre iniciativa das partes que, sob compromisso arbitral ou contrato compromissório entre si, elegem um árbitro como mediador ou negociador alternativo da solução do litígio; por outro lado, a constitucionalidade do compromisso arbitral das partes implica que o árbitro escolhido por elas aceite o exercício legal da arbitragem e se obrigue a solucionar o litígio.

34. É fácil verificar que a liberdade individual das partes e do árbitro constitui elemento democrático da constitucionalidade preponderante na estrutura do acesso, do conhecimento e da solução da arbitragem de justiça privada. Apesar de sua natureza liberalista, a arbitragem privada, em todos os sistemas contemporâneos, tem se mostrado eficiente, célere e justa para a solução igualitária dos direitos subjetivos que envolvem, não somente interesses individuais, mas também interesses de empresas, pessoas jurídicas ou grupos sociais; naturalmente, isto se torna possível porque a instituição da arbitragem tem, na atividade do exercício do poder de julgar, a própria essência consensual, dialógica e informal do ser humano que vive as relações democráticas da justiça na construção dos seus direitos.

35. Certamente, a liberdade democrática da participação do homem no ato arbitral de distribuir justiça confere segurança qualificada à vontade de cada uma das partes e assegura, por outro lado, à pessoa do árbitro um melhor nível de solidariedade no cumprimento da justiça consensualmente pactuada. Diferentemente ocorre na jurisdição da justiça pública que promete garantia de certeza e estabilidade jurídica às decisões por imposição unilateral e exclusiva do poder estatal de que estão investidos os órgãos titulares da função jurisdicional (Bastos, 1997; Strenger, 1998; Gama, 1999; Freitas, 1999).

36. Parece razoável concluir que a arbitragem de justiça privada, num sistema constitucional de direito positivo, está regido pelo princípio da autonomia da vontade das partes que, livremente, podem escolher o procedimento arbitral e o árbitro de sua plena confiança. Sem dúvida, o compromisso arbitral de pessoas livres constitui expressão legítima da constitucionalidade democrática, uma vez que, por consenso, cabe a um árbitro de confiança mútua resolver a justiça do litígio jurídico inter partes. Em última análise, a cláusula arbitral, o compromisso arbitral e a solução do juízo arbitral são opções que a Constituição e a lei oferecem às partes, sem ferir os princípios constitucionais da jurisdição estatal, da justiça pública, do juiz natural e do acesso à justiça. A arbitragem é alternativa que a lei defere aos cidadãos para a garantia de justiça material, qualificadora de determinados direitos disponíveis previstos em lei. A satisfação jurídica do cidadão, que concretiza pela via da arbitragem de justiça privada a tutela da justiça de seus direitos materiais, deve ser entendida legítima e constitucionalmente consagrada pelo sistema de direito positivo, como o objetivo mais célere da satisfação e da efetividade da justiça privada na ordem social.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AROCA, Juan Montero. Comentário breve a la ley de arbitraje. 1. ed. Madrid: Civitas, 1990.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

CAFFERATA, Fernando José. Mediación y conciliación: Los primeros passos hacia la oralización del processo civil. Córdoba, Argentina: Alveroni, 1996.

DE TENA, Juan G. Lohman Luca. El arbitraje. 2. ed. Biblioteca: para leer el Código Civil. Vol. V. Lima: PUC del Perú, 1988.

FALLA, Fernando Garrido. Privatización y reprivatización. Artigo científico in: Revista del derecho, publicación de la Facultad de derecho de la Pontifícia Universidad Católica del Perú. Ano 3, n. 5, p. 34-40. Lima: Creativa, 1992.

FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Arbitragem, jurisdição e execução: Análise crítica da Lei n. 9307/96. 2. ed. São Paulo: ERT, 1999.

FREITAS, Elizabeth Cristina Campos Martins de. Considerações acerca da arbitragem e sua constitucionalidade. In: Revista Jurídica, da Faculdade de Direito, da Pontifícia Universidade Católica. V. 15, n. 2. Campinas, 1999. p. 90-98.

GAMA, Ricardo Rodrigues. A constitucionalidade da lei de arbitragem. In: Revista Jurídica da Faculdade de Direito, da Pontifícia Universidade Católica. Campinas: 1999. V. 15, n. 2, p. 40-46.

PEDROSO, Antônio Carlos de Campos. Aplicação prudencial dos esquemas normativos. In: Revista de Direito da Faculdade de Direito, da Universidade de São Paulo. V. 93, 1998, p. 291-337.

RESEK, J. F. Direito Internacional Público: Curso elementar. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

STRENGER, Irineu. Comentários à lei brasileira de arbitragem. São Paulo: LTr, 1998.

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Sobre o autor
Benedito Hespanha

professor da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fund, coordenador do Núcleo de atividades complementares e monografia, doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino de Buenos Aires

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HESPANHA, Benedito. A lei brasileira da arbitragem de justiça privada e a realidade constitucional de sua aplicação no sistema do direito positivo vigente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 57, 1 jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2937. Acesso em: 19 abr. 2024.

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