Artigo Destaque dos editores

Responsabilidade civil dos notários e registradores

Exibindo página 1 de 2
01/04/2002 às 00:00
Leia nesta página:

Sumário: 1. Introdução; 2. Da Responsabilidade Civil; 3. Teorias da Responsabilidade Civil, 3.1. Da Responsabilidade Subjetiva, 3.2. Da Responsabilidade Objetiva; 4. Da Responsabilidade do Estado; 5. Da Responsabilidade Civil das Pessoas Jurídicas de Direito Privado Prestadoras de Serviço Público; 6. Da Natureza Jurídica dos Notários e Registradores; 7. Da Responsabilidade Civil dos Notários e Registradores; 8. Conclusão


1. Introdução

A nova Ordem Constitucional inaugurada com a promulgação da Carta Magna de 1988 trouxe grandes progressos e inovações no tocante ao relacionamento entre o Estado e os seus administrados.

Várias foram as mudanças, mas uma das grandes preocupações do Constituinte foi com relação à valorização dos princípios da moralidade, publicidade, legalidade e impessoalidade na Administração Pública. Esta tendência se refletiu em muitos dos dispositivos da referida Carta, como, por exemplo, nos que se referem ao concurso público como a forma normal e preponderante de ingresso no serviço público e nos relativos à limitação do acúmulo de cargos públicos, de forma a evitar o surgimento dos "marajás", entre outros.

Dez anos mais tarde, já em 1998, foi aprovada a emenda constitucional número 19, que veio acrescentar a estes princípios o da eficiência. Reconhece então o legislador que não basta à Administração desempenhar seus serviços de forma legal, moral, impessoal e pública. É preciso mais. É preciso que o serviço público seja realizado com presteza, perfeição, cordialidade e, principalmente, com rendimento funcional, de forma a produzir resultados positivos aos seus usuários.

Em consonância e perfeita harmonia com os princípios supra referidos, vem a Constituição Federal em seu artigo 236, determinar que "os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público", e logo em seguida, em seu parágrafo 3º, estatuir que "O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou remoção, por mais de seis meses".

Esta importante disposição, felizmente não ignorada pelos nossos Constituintes, vem extinguir o privilégio - tão antigo como o próprio Estado brasileiro - e concedido somente às famílias bem relacionadas, de exercer a prestação dos serviços notariais e registrais. Tão amplo era o privilégio que, mesmo após a morte do titular do serviço, permanecia com sua família o direito de explorá-lo, o que fazia com que seus descendentes acabassem por "herdar" o seu cartório, como se a serventia fizesse parte do patrimônio do de cujus.

O fim deste regime absurdo e com ranços absolutistas causou uma verdadeira revolução no direito brasileiro. Foi inaugurada uma nova ordem, na qual passa a prevalecer o princípio da isonomia, já que a partir de então fica estabelecido que o ingresso na atividade notarial é feito via concurso público. Esta mudança representa um grande avanço para o direito brasileiro, na medida em que visa ao atendimento dos princípios básicos acima referidos, além de significar um fortalecimento do regime democrático, que cresce sempre que prevalece o princípio da igualdade.

Entretanto, como toda novidade vem acompanhada de dúvidas e incertezas, não foi diferente com o artigo 236. Os doutrinadores então passaram a se dedicar à tarefa de estudar e discutir o seu conteúdo, buscando ali as soluções para as questões que iam surgindo. O advento da lei 8.935 em 1994 que regulamentou o referido artigo esclareceu muitas destas dúvidas, pondo fim a algumas divergências doutrinárias e jurisprudenciais. Outras questões, porém, não foram satisfatoriamente resolvidas e até hoje geram desencontros na doutrina. É o caso do sistema de responsabilidade civil dos notários e registradores.

O tema, que ainda está sendo discutido e sobre o qual não se tem farta jurisprudência, será objeto do presente trabalho, no qual buscaremos discutir as alterações promovidas pelo artigo 236 e seus efeitos sobre a responsabilização dos titulares das serventias que têm a seu cargo, afinal, a prestação de um serviço público.

Para completa compreensão do tema, porém, torna-se necessária a abordagem de alguns conceitos que servirão de base para o bom desenvolvimento do assunto em pauta.


2. Da responsabilidade Civil

A origem etmológica da responsabilidade civil se encontra no termo latino respondere, que por sua vez vem de spondeo, que era o meio utilizado pelo devedor nos contratos antigos para garantir que ele responderia pelo cumprimento da obrigação assumida. Significa, pois, a necessidade de se responsabilizar todo aquele que pratique um ato que cause dano a alguém.É a obrigação que tem o agente de responder por seus atos, positivos ou negativos, assumindo, assim, as suas conseqüências.

Trata-se de um instituto que vem se desenvolvendo e evoluindo gradativamente ao longo dos tempos. Desde de o início, o homem já entendia que o dano deveria ser reparado. Entretanto, dado o caráter rudimentar da cultura humana, tal reparação era feita na base da retribuição, ou seja, devolvia-se ao causador do dano o mesmo prejuízo que seu ato havia provocado. Exemplo clássico desta fase era o da pena de Talião – olho por olho, dente por dente.

O desenvolvimento da sociedade, porém, fez com que o homem chegasse à conclusão de que a reparação do mal com o mal era ineficiente, pois em vez de se ressarcir o dano original, acabava por gerar duplo dano e conseqüentemente, dupla vítima.

A partir do momento em que o Estado toma para si o poder-dever da repressão dos atos ilícitos, tem-se o fim da era do "quem com ferro fere, com ferro será ferido" e instaura-se a noção de reparação do dano através da imposição de uma pena pecuniária. Tal noção tem como marco inicial a famosa Lei Aquilia, que substituiu a vingança do ofendido, pelo pagamento de quantia em dinheiro, como forma de o agente reparar o prejuízo que, por culpa, causou a outrem. É a primeira vez que surge o elemento culpa como essencial para a responsabilização do agente. Ausente a culpa do agente, não há que se falar em reparação do dano.

Modernamente a responsabilidade civil é vista como o princípio da estabilidade social, pois está ligada à própria noção de justiça, já que traz para todos o dever de não causar prejuízo ao outro. Um sistema eficiente de responsabilização garante o equilíbrio das relações em sociedade e satisfaz as aspirações de segurança do homem moderno.


3. Das Teorias da Responsabilidade Civil

3.1. Da Responsabilidade Subjetiva

A base jurídica erigida pelo Direito Romano através da Lex Aquilia foi bastante consistente, visto que, não obstante a evolução do instituto da responsabilidade civil desde então, ainda hoje o mundo permanece fiel à idéia de culpa. Assim, para que surja a obrigação de reparar o dano, é necessário que na conduta do agente tenha ocorrido uma falha; falha esta que se possa enquadrar no conceito jurídico de culpa em alguma de suas modalidades: imprudência, negligência, imperícia ou dolo.

Pela Teoria Subjetiva fica vinculada a obrigação reparatória à presença da culpa latu sensu na ação ou omissão do agente. A prova da culpa do agente é essencial para a verificação da existência ou não do dever de reparar o dano. Mas não é suficiente. Na realidade, na etiologia da Teoria Subjetivista são três os elementos que devem estar presentes: o primeiro seria a ocorrência do ato danoso que ofenda uma norma ou um erro de conduta; o segundo seria o dano, o prejuízo e o terceiro seria o nexo causal que liga a conduta do agente ao prejuízo da vítima.

Uma conduta ofensiva que não cause dano não enseja a responsabilização do agente na esfera civil. O mesmo ocorre quando a conduta, apesar de injurídica, não tenha relação com o dano ou quando, mesmo havendo o prejuízo e o nexo causal, a conduta do agente se desenvolva dentro da normalidade, isto é, não seja injurídica.

O Código Civil brasileiro adotou a Teoria Subjetiva em seu art 15 como preceito geral, aplicável às relações ocorridas no âmbito do direito privado. Faz o referido Código uma distinção entre a responsabilidade contratual e a extracontratual, regulando-as em diferentes partes do seu corpo.

Culpa contratual é aquela decorrente da violação de um dever estipulado pelas partes em um contrato. A sua verificação fica vinculada à existência de um contrato que deixa de ser cumprido por um de seus signatários.

A culpa extracontratual, também chamada aquiliana, é mais ampla, pois decorre da violação de um dever geral, imposto a todos genericamente, como o respeito ao próximo e aos seus bens. Não depende ela da autonomia da vontade. Decorre da ofensa a um dever que cabe a todos cumprir. O seu reconhecimento representou grande evolução na reparação do dano, pois ampliou consideravelmente a gama de prejuízos que poderiam ser ressarcidos.

Atualmente a distinção acima referida tem importância secundária e vem sendo combatida pela melhor doutrina, visto que uma e outra decorrem da violação de uma obrigação e têm a culpa como seu fundamento. Suas diferenças se limitam a questões acidentais, como as referentes à prova e aos seus efeitos. A culpa, verdadeiro cerne da questão, é a mesma para ambas.

3.2. Da Responsabilidade Objetiva

Durante o século passado, devido à pressão exercida pelas céleres mudanças da sociedade moderna sobre a ciência jurídica, o instituto da responsabilidade civil foi o que mais se desenvolveu, tendo sido bastante discutido e analisado pela doutrina de vários países. Esta rápida evolução acarretou a revisão de muitas das concepções originais acerca do assunto e hoje, no início do século XXI, a responsabilidade civil alcança espaços e abrange situações inimagináveis no limiar do século XX.

Ocorre que diante de tantas inovações, não só tecnológicas, mas também sociais, a teoria subjetiva da responsabilidade deixou de ser suficiente para abranger todos os casos de reparação de dano. Verificou-se que em muitas situações a vítima, apesar de lesada, tinha dificuldade em fazer prova da culpa do agente. Conforme nota PEREIRA (1993), se no campo da responsabilidade contratual é fácil a prova da culpa, o mesmo não ocorre no campo da responsabilidade aquiliana. Ademais, a própria legislação reconhecia a responsabilidade sem culpa em determinadas situações, como nos casos de acidentes do trabalho.

A insatisfação com a aplicação da teoria subjetiva, que deixava sem solução grande parte dos casos de dano, faz surgir um movimento defensor da ampliação do instituto da responsabilidade, de modo a se excluir a prova da culpa e assim beneficiar um maior número de casos de dano, que de outra forma, ficariam sem reparação. Nasce aí a Teoria da Responsabilidade Objetiva.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Para os objetivistas, a obrigação de reparar o dano surge exclusivamente da ocorrência do fato danoso contrário ao direito. Não se cogita a idéia de culpa, sendo devida a reparação a partir do momento em que a conduta gera um prejuízo. Parte-se do princípio de que, havendo ou não conduta culposa, desde que haja o dano, alguém deve responder por ele. O que não se admite é que a vítima, uma vez lesada, arque com um prejuízo ao qual não deu causa.

À medida que a nova teoria conquista mais adeptos, aumenta-se a pressão para que se abandone de vez a teoria original fundada na culpa. Mas esta última conta com competentes e fiéis seguidores, que permanecem na sua defesa. A melhor doutrina, entre nós representada por Caio Mário, contudo, defende a tese de que não se deve adotar qualquer das referidas teorias com exclusividade. No entender de PEREIRA (1993), para um sistema de responsabilização justo e eficiente é necessária a convivência harmônica de ambas as teses, sendo que como regra geral vigoraria a responsabilidade baseada na culpa e, via de exceção, para os casos especiais legalmente previstos, aplicar-se-ia a responsabilidade objetiva.

Foi este o regime adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro. A legislação civil estabelece, para a esfera privada, o princípio geral da responsabilidade fundamentada na culpa do agente. Não obstante, o próprio direito civil vai permitir que em alguns setores se admita a responsabilidade sem culpa, como é o caso dos acidentes de trabalho e dos transportes em geral.

Já no tocante ao regime das pessoas de direito público, a responsabilidade objetiva foi admitida pela Constituição Federal de 1946, eliminando definitivamente o princípio da culpa admitido pelo art 15 do Código Civil. Desde então prevalece no direito brasileiro a teoria objetiva, consagrada pelo artigo 37 da Carta Magna de 1988.


4. Da Responsabilidade do Estado

Ao longo da história a responsabilidade civil do Estado se desenvolveu gradativamente, partindo da noção primitiva da irresponsabilidade total do Estado. Nesta fase, predominante durante o período absolutista, fortaleceu-se a máxima "The King do not wrong" ou "o rei não erra". O Estado então se resumia ao próprio rei e como este não errava, o Estado também não e por isso não era obrigado a reparar o dano.

Somente no século XIX esta teoria foi superada, sendo então substituída pela noção de responsabilidade nos moldes do direito privado, fundamentada na idéia de culpa. Num primeiro momento, o tratamento dado ao Estado era o mesmo destinado ao particular, a quem cabia o ônus da prova da culpa daquele em uma eventual demanda. Num segundo momento esta exigência foi abandonada, invertendo-se então o ônus da prova, que é transferido ao Estado: é a fase da culpa presumida. O Código Civil de 1916 acolheu a doutrina subjetiva em seu artigo 15, que estatuía: "as pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos de seus representantes que nesta qualidade causem dano a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano".

Numa terceira etapa de sua evolução, já às portas do século XX, temos a fase publicista, na qual a responsabilidade do Estado é desvinculada dos moldes do Direito Civil e passa a ser tratada em nível de direito público. A responsabilidade passa a ser objetiva e a vítima de um ato do Estado não tem mais a obrigação de provar a culpa do agente estatal. No Brasil, a responsabilidade do Estado é transferida do âmbito civil para o constitucional, onde a matéria passa a ser regulada. A Constituição de 1946 inaugura esta fase e todas as demais seguem a mesma orientação. A Carta de 1988 conserva a tradição em seu artigo 37 quando dispõe: "As pessoas jurídicas de direito público e as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa".

Três são os caminhos trilhados pelos doutrinadores para se chegar à responsabilidade objetiva do Estado. O primeiro deles, denominado Teoria da Culpa Administrativa defende a idéia de desvinculação da responsabilidade do Estado da culpa do servidor, analisando somente o aspecto do serviço em si, isto é, se o serviço público não funcionou, atrasou ou funcionou mal. A obrigação de indenizar surge da falha no serviço. O segundo caminho, denominado Teoria do Risco Administrativo, prega a obrigação de indenizar independentemente da perquirição sobre a falta do serviço, desde que se constate o prejuízo causado à vítima. A vítima se desobriga de provar a culpa do funcionário do Estado, mas este tem o direito de provar a culpa concorrente ou exclusiva daquela, caso em que haverá a inversão do ônus da prova. O terceiro caminho, conhecido como Teoria do Risco Integral, defende a tese de que o Estado responde pelo dano em qualquer circunstância, mesmo que o evento tenha sido causado por culpa da vítima. Parte-se do princípio de que aquele que sofre o prejuízo não tem culpa.

A teoria adotada pelo artigo 37, muito acertadamente, é a do risco administrativo, pois é ponto pacífico na doutrina e jurisprudência pátrias, que o Estado não pode ser responsabilizado por um dano gerado exclusivamente por culpa da vítima. Da mesma forma, havendo culpa concorrente, entende-se que a indenização será reduzida pela metade. Assim, o prejudicado é dispensado de fazer a prova da culpa ou do dolo, cumprindo tão somente provar o nexo de causalidade ligando o dano a alguma ação do Estado.

É importante notar que em se tratando de responsabilidade objetiva, não cabe indagar se o ato causador do dano é lícito ou ilícito, pois em qualquer caso deve a Administração por ele responder. O que se analisa, in casu, não é a conduta do agente, mas sim o prejuízo da vítima. Assim, sob a ótica da responsabilidade objetiva, cumpre observar se o prejuízo sofrido pela vítima foi ilegítimo, ou não. Transfere-se o prisma de observação do pólo ativo para o pólo passivo da relação. Assim, mesmo sendo lícita a conduta do agente estatal, desde que alguém tenha sofrido um dano injusto, cabe ao Estado promover a devida indenização.

Junto com a responsabilidade objetiva do Estado, o artigo 37 estabelece a responsabilidade subjetiva do agente público, quando prevê a possibilidade de ação regressiva do primeiro contra o segundo, se este houver agido com culpa ou dolo. Note-se que o funcionário público só vai responder civilmente pelo dano, se o prejudicado conseguir fazer a prova da sua negligência, imprudência, imperícia ou dolo.


5. Da Responsabilidade Civil das Pessoas Jurídicas de Direito Privado Prestadoras de Serviço Público.

A grande inovação trazida pela CF/88 no que tange à responsabilidade do Estado está justamente na previsão expressa de que também as pessoas jurídicas de direito privado são objetivamente responsáveis, desde que estejam prestando um serviço público que, a priori, caberia ao Estado prestar. É a primeira vez no Brasil, que uma norma constitucional determina que pessoas jurídicas de direito privado respondam pelos danos que seus agentes causem a terceiros, desde que estejam atuando na prestação de um serviço público. Na sistemática anterior, a responsabilidade objetiva só alcançava as pessoas jurídicas de direito público: entidades públicas e autarquias.

Este dispositivo consagra o entendimento da maioria da doutrina no sentido de que não é a forma de constituição da pessoa jurídica, se de natureza pública ou privada, que define a responsabilidade objetiva. O que se deve ter em mente, na realidade, é a natureza do serviço por ela prestado. Se o serviço é de natureza pública, competindo ao Estado a sua prestação, mas este a delega a um particular – através de concessão ou permissão - para que o realize, aquele que o presta será objetivamente responsável pelos atos de seus agentes. Como bem nota o ilustre professor Yussef Cahali ( 1996, p.115) "a responsabilidade objetiva gravita em torno do trinômio: pessoa jurídica de direito público/pessoa jurídica de direito privado/serviço público".

É importante notar que não só as pessoas jurídicas de direito privado, mas também as pessoas físicas estão sujeitas à incidência da responsabilidade objetiva. Para isso basta que estejam exercendo função de natureza pública delegada pelo Estado. É aí que se enquadram os notários e os registradores.


6. Da Natureza Jurídica dos Notários e Registradores

A definição do sistema de responsabilização civil dos titulares de serventias extrajudiciais passa, necessariamente pela compreensão da natureza jurídica do vínculo que os liga ao Estado. É grande a discussão na doutrina acerca desta natureza. A pergunta que se faz é: tabeliães e oficiais de registro são servidores públicos ou profissionais do direito que exercem atividade pública em caráter privado? A resposta a esta pergunta se faz necessária para a definição da responsabilidade civil dos mesmos, posto que, conforme visto, a Constituição de 88 estabelece sistemas diferentes de responsabilização para o funcionário público e para o particular que presta serviço publico através de delegação.

Na sistemática do nosso direito anterior, as serventias eram oficializadas, ou seja, faziam parte da estrutura do Estado e, dessa forma, os seus titulares eram funcionários públicos. Nesta condição, eram submetidos às normas administrativas próprias dos servidores estatais, se sujeitando a um estatuto e a todos os privilégios e restrições comuns à categoria, como, por exemplo, sanções disciplinares, aposentadoria compulsória aos setenta anos e percepção de proventos integrais.

A nova disciplina constitucional dos serviços notariais e de registro, como já dito, representou grande evolução para o ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto, devido à complexidade da matéria e a uma certa imprecisão do legislador, muitas dúvidas foram suscitadas pela doutrina acerca do tema.

Estabelece o artigo 236 que "os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público e submetidos à fiscalização do Poder Judiciário". Ao mesmo tempo, define que "o ingresso na atividade notarial e de registro depende de aprovação em concurso público de provas e títulos".

Os defensores da tese de que os notários e registradores não são funcionários públicos, alegam que a intenção do constituinte de 88 foi a de privatizar a prestação dos serviços notariais ao dispor que os mesmos seriam exercidos em caráter privado. A expressão caráter privado conduziria os notários e registradores da seara do direito público para a do direito privado. Eles deixariam de integrar a estrutura do Estado, passando a ser colaboradores do Poder Público, atuando em recinto particular e contratando seus empregados sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho.

A lei 8935 de 1994, que regulamenta o artigo 236 da CF/88, reforça este entendimento ao dispor, em seu artigo 3º que os notários e registradores são "profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro". Outra determinação neste sentido se encontra no artigo 50 quando diz que os delegados nomeados a partir da sua vigência, passam a se sujeitar ao Regime Geral da Previdência Social, que é o regime próprio da iniciativa privada, diferente daquele aplicado aos funcionários públicos.

Alegam ainda os adeptos desta corrente que, muito embora a atividade por eles exercida tenha caráter eminentemente público, não é somente o funcionário público que presta serviços desta natureza. Há no direito brasileiro, inúmeros exemplos de serviços públicos que não são exercidos por servidores, como é o caso dos leiloeiros, tradutores, intérpretes e dos permissionários e concessionários. Por esta razão é que o Estado lhes concede a Delegação, para que eles, enquanto particulares, possam exercer uma função típica dos entes de direito público. Fossem os notários e registradores funcionários, não haveria necessidade de se outorgar a delegação.

Em sentido contrário, há aqueles que defendem a idéia de que os titulares de serventias extrajudiciais são, sim, funcionários públicos. Argumentam estes estudiosos que o ingresso na atividade notarial se dá somente via concurso público, que é o meio próprio para a admissão no serviço público. A delegação de serviço público, é sabido, não se dá via concurso, mas através de processo de licitação, onde se habilitam os que desejam prestá-lo.

Seriam, pois, os tabeliães e oficiais de registro, agentes estatais ocupantes de cargos públicos, criados por lei, em número certo, com denominação própria e remunerados à custa de receita pública - emolumentos fixados por lei. Reforçando este entendimento, a lei 8935/94 determina em seu artigo 25 a proibição de acumulação do exercício da atividade notarial com a ocupação de qualquer cargo público.

Afirmam ainda os adeptos desta tese, que as atividades das serventias são investidas de um caráter de autoridade, concedido pelo Estado, que confere fé pública aos atos ali praticados, caracterizando assim, o traço essencialmente público dos referidos serviços. Até por isso, as atividades notariais e registrais concernentes ao Registro Civil das Pessoas Naturais no exterior são praticadas pelos Cônsules do Brasil, já que se trata do exercício de parcela da autoridade do Estado, o que acentua ainda mais a oficialidade de tais serviços.

Esta segunda corrente foi brindada com uma decisão do pleno do Supremo Tribunal Federal, em que atuou como relator o Ministro Otávio Gallotti, que considerou o notário e o registrador funcionários públicos. Diz a ementa: "sendo ocupantes de cargo público criado por lei, submetido à permanente fiscalização do Estado e diretamente remunerado à conta de receita pública (custas e emolumentos fixados por lei), bem como provido por concurso público – estão os serventuários de notas e registros sujeitos à aposentadoria por implemento de idade". É este o entendimento que vem prevalecendo desde então.

A par da discussão patrocinada pela doutrina e pela jurisprudência, a falta de técnica do constituinte e do legislador ordinário acabaram por criar uma figura jurídica híbrida, inexistente no direito pátrio.

Não pode ser definida como delegação, posto que esta é uma forma de o Estado passar ao particular a titularidade de um serviço através de um contrato, sempre precedido de procedimento licitatório. O particular interessado em prestar um serviço delegado deve, pois, se sujeitar a uma licitação, que na lição de MEIRELLES (1997, p. 225), é o "procedimento administrativo mediante o qual a Administração Pública seleciona a proposta mais vantajosa para o contrato de seu interesse". Além disso, por se tratar de contrato administrativo, a delegação de serviço público pode a qualquer tempo ser revogada, desde que o interesse público assim o exija.

Também não se pode pura e simplesmente classificar o exercente de atividade notarial ou registral como funcionário público porque o seu ingresso se deu via concurso público, já que a própria constituição faz questão de ressaltar o cunho privatista da delegação. Ademais, a lei 8935, ao definir o Regime Geral da Previdência |Social como o próprio da categoria, pretendeu dar mais um sinal de que notários e registradores não são funcionários públicos em sentido estrito, posto que estes se submetem a regime especial.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Ana Cristina de Souza Maia

advogada em Mariana (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAIA, Ana Cristina Souza. Responsabilidade civil dos notários e registradores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 56, 1 abr. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2890. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos