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A pena do degredo nas Ordenações do Reino

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01/10/2001 às 00:00
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"Aquele que violenta a lei será violentado por ela"(1)

Em Portugal, no século XV, começa-se a sentir profundamente a necessidade de uma legislação que harmonize e sistematize as diversas leis já existentes no Reino. É preciso determinar o domínio exato do direito canônico e do direito romano e, ao mesmo tempo, definir suas relações com o direito nacional.

No reinado de D. João I (1385-1433), diante das queixas formuladas na Corte em relação ao estado de confusão das leis, o corregedor João Mendes foi encarregado de proceder à desejada reforma. Se na Corte existia a incerteza em relação ao direito em vigor, a falta de precisão era ainda maior no interior do país.

Não estando esta tarefa terminada por ocasião da morte do rei João, D. Duarte, que reinou de 1433 a 1438, decidiu prosseguir a obra iniciada por seu predecessor. João Mendes morreu pouco depois e a preparação da nova legislação foi confiada ao doutor Rui Fernandes, outro magistrado do Conselho Real. A brevidade do reinado de D. Duarte não lhe permitiu acabar esse "difícil trabalho". D. Pedro, que mal acabava de ser nomeado regente em 1438, pediu a Rui Fernandes para continuar "a dita obra". O rei recomendava ao doutor engajar-se seriamente nesse encargo e nom alçasse della maao, ataaa que com de DEOS posesse em boa perfeiçom.(2) De fato, Rui Fernandes concluiu a obra em julho de 1446, depois que D. Pedro ordenou que "...as ditas Hordenações e compilacom fossem revistas, e examinada per elle dito Doutor Lopo Vaasques Corregedor da Cidade de Lixboa, e per Luiz Martins, e Fernão Rodrigues do Desembargo do dito Senhor Rey, as quaes per elles forom vistas, e examinadas, e em algumas partes reformadas".(3) Esse corpo legislativo é conhecido sob o nome de Ordenações Afonsinas, em homenagem ao rei Afonso V que, em 1446, havia alcançado sua maioridade.(4)

A compilação das Ordenações Afonsinas relaciona-se aos direitos romano e canônico. Aplica-se o direito romano em matéria temporal, desde que não tenha nenhuma vinculação com qualquer espécie de pecado. O direito canônico, fundado sobre a obediência ao papa e à Igreja, aplica-se aos aspectos espirituais, e também aos temporais quando o direito romano não se pronuncia ou quando sua observância ocasione algum tipo de pecado. Além disso, recorre-se às compilações da Glosa de Acúrsio, quando não há norma aplicável no direito romano nem no direito canônico(5). Finalmente, apela-se para a decisão do rei no caso de insuficiência de uma ou de outra das fontes citadas acima. Como é notório, a dispersão das leis exigia um aperfeiçoamento urgente no procedimento judiciário. De fato, era imperativamente necessário estabelecer um compêndio das fontes legislativas com uma certa hierarquização.

As Ordenações Afonsinas realizaram, de uma certa maneira, a sistematização que os tribunais portugueses desejavam, mas o modo de assegurar seu efetivo conhecimento em todo o país necessitava ainda ser compreendido. A quantidade de leis, distribuídas em cinco volumes, tornava sua cópia lenta e onerosa: sério obstáculo a sua difusão em todas as cortes de justiça do Reino. O original permaneceu, provavelmente, na Chancelaria e as primeiras cópias foram enviadas aos tribunais superiores: a Casa da Suplicação e a Casa do Cível. Elas foram reproduzidas pouco a pouco. Foram os conselhos municipais mais ricos, como os do Porto e de Santarém, ou os monastérios mais poderosos, como o de Alcobaça(6), que produziram as primeiras cópias.

Durante o reinado de D. Manuel (1495-1521) novamente, o problema da divulgação das Ordenações no Reino foi mais uma vez levantado. A solução se acelerou com a invenção da imprensa que, provavelmente, fez sua aparição em Portugal em 1487. D. Manuel pessoalmente, através de uma carta de 20 de fevereiro de 1508, manifestou seu entusiasmo diante das vantagens da imprensa: "quam necessária é a nobre arte da imprensam... pera o bom governo, porque com mais facilidade e menos despesa, os ministros da justiça possam usar de nossas leis e ordenações e os sacerdotes possam administrar os sacramentos da madre Santa Igreja"(7).

Mais de 50 anos se passaram depois da compilação das Ordenações Afonsinas. Muitas e novas leis foram decretadas nesse espaço de tempo, o que levou o rei D. Manuel a pedir uma revisão dos textos legislativos. No prólogo do novo código, o monarca justifica a compilação fazendo observar "a confusão e repugnância de algumas ordenações por reis nossos antecessores feitas, assi das que estavam encorporadas como das Extravagantes, donde recresciam aos julgadores muitas dúvidas e debates"(8). Para remediar esses inconvenientes, D. Manuel ordenou "reformar estas ordenações e fazer nova compilação, tirando todo o sobejo e supérfluo, e adendo no minguado, suprimindo os defeitos, concordando as contrariedades, declarando o escuro e difícil de maneira que assim dos letrados como de todos se possa bem perfeitamente entender"(9).

Ele encarregou Rui Boto, o chanceler- mor do Reino, de efetuar este estudo. Em dezembro de 1512, saiu o Livro I do novo corpo legislativo. Em 1513, apareceu o Livro II e, mais tarde, entre março e dezembro de 1514, foi feita uma edição completa dos cinco livros que, em conjunto, foram chamados de Ordenações Manuelinas(10).

Aos 15 de março de 1521, o mesmo rei ordenou que "dentro de três meses, qualquer pessoa que tiver as hordenações da imprensam velha a rompa e desfaça de maneira que nam se possa ler". Todo juiz que utilizasse a antiga legislação seria condenado à uma multa de « 100 cruzados ». Além disso, aquele que desobedecesse este decreto tornava-se um criminoso público, merecendo pelo menos um "degredo de 2 anos no além-mar". A carta real impunha ainda à todos os Conselhos Municipais a aquisição de uma cópia das novas ordenações(11).

No que se refere ao sistema, é o mesmo que o das Ordenações Afonsinas. São cinco livros divididos em títulos e cada título é composto de parágrafos. A matéria contida nos livros é reagrupada segundo os critérios das Ordenações precedentes. De toda forma, uma modificação importante foi feita: os judeus tendo sido expulsos do Reino em 1496, todas as leis que lhes dizia respeito foram abolidas. Ao contrário das Afonsinas, a legislação de D. Manuel não constitui uma simples compilação das leis anteriores, transcritas com o título de origem e a indicação do rei que as tinha ordenado. As Ordenações Manuelinas, de maneira geral, são redigidas sob a forma de decretos como se se tratasse de novas leis, ainda que, freqüentemente, este fosse simplesmente um método utilizado para renovar as leis já existentes(12).

Apesar da enorme quantidade de leis compiladas nas Ordenações Manuelinas, um grande número de novos decretos foram editados e publicados após sua impressão. Em geral, conhecemos somente uma pequena parte da impressionante quantidade de regulamentos que, ao longo dos dias, multiplicaram-se infinitamente. Os juízes consultavam, portanto, além das Ordenações Manuelinas, todas estas leis Extravagantes que completavam a compilação de D. Manuel.

De acordo com a significação do vocábulo, as Extravagantes são as leis que tratam de matérias que foram objeto de compilação ou de codificação oficial, mas que não haviam sido incorporadas ao texto das Ordenações. Essas leis foram postas em vigor, mas permaneceram "fora" do texto principal. Havia um tal estado de confusão, engendrado pela volumosa quantidade de leis Extravagantes não compiladas, que o jurista Duarte Nunes do Leão, procurador da Casa da Suplicação, foi encarregado de reunir todas as leis Extravagantes e todas as decisões utilizadas até o momento, e, de fazer um apanhado da substância de cada uma, agrupando-as por títulos, organizados de tal forma que cada título seja capaz de respeitar o conteúdo original. Para cumprir sua missão, Duarte Nunes do Leão compilou as leis que se encontravam nas várias instituições do Reino, especialmente na Casa da Suplicação, na Casa do Cível e na Chancelaria-mor, e além disso, todas as leis contidas nos livros da Fazenda, dos Contos do Reino, do Conselho de Lisboa, da Torre do Tombo e todos os decretos dos "Capítulos da Corte". Enfim, o trabalho do jurista era, portanto, recolher e organizar num único volume as múltiplas leis que não estavam inseridas nas Ordenações Manuelinas. A compilação de Duarte Nunes do Leão foi aprovada por um decreto de 14 de fevereiro de 1569. As duas principais características dessas leis foram:

ao contrário do que era normal no procedimento legislativo de então, elas não eram copiadas integralmente - "de verbo a verbo" - mas fazia-se uma síntese, uma espécie de resumo de sua substância.

ainda que elas não fossem introduzidas nos textos das ordenações principais, estas leis eram consideradas como uma compilação oficial, tendo legítimo valor de fonte de direito.

Por um decreto de 1569, foi estabelecido, de fato, "que a todas as ditas extravagantes e determinações escritas no dito livro, se dê aquela fé e crédito, e tenham a mesma autoridade que tem as próprias leis, determinações e provisões originais a que se referem, como se de verbo a verbo fossem escritas no dito livro, por quanto se achou na relação que nele se faz das ditas leis e determinações, não faltava cousa alguma do que toca a decisão e substância delas"(13).

Vários são os decretos e alvarás que se referem ao degredo no Brasil. Eles foram recolhidos nas leis Extravagantes de Duarte Nunes do Leão. A carta de 31 de maio de 1535, por exemplo, ordenou a transferência do degredo da ilha de São Thomé para o Brasil(14).

Encontra-se também nas Extravagantes o decreto de 7 de agosto de 1547, que ordena « que não partam navios para o Brasil sem o saber o Governador da casa do civel, para lhe ordenar os degredados que cada navio devia levar ». O "senhorio, capitão, mestre ou piloto dos ditos navios que partissem para as ditas terras sem lho fazerem saber, encorreriam em pena de 50 cruzados, a metade para quem os acusasse, e a outra metade para os presos pobres". O governador da Casa do Cível daria aos capitães dos navios os certificados autorizando a partida somente quando fosse feita uma lista dos prisioneiros(15).

Dois anos mais tarde, um alvará de 5 de outubro de 1549 ordenou « que dehi em diante se não condenasse pessoa algua na casa da supplicação em degredo para a ilha do Príncipe. E que aquelles que por suas culpas, segundo as ordenações, haviao de ser condenados em degredo para a dita ilha, fossem degredados para o Brasil »(16).

Nessa época, as autoridades procuravam de todas as maneiras « alimpar » a cidade e « ordenou o dito Senhor, que os moços vadios de Lisboa, que andão na ribeira a furtar bolsas, e fazer outros delictos, a primeira vez que fossem presos, se depois de soltos tornassem outra vez ser presos pelos semelhantes casos, que qualquer degredo que lhes houvessem de ser dado fosse para o Brasil. O qual degredo eles irão cumprir presos, sem serem soltos... ». Rezou o alvará de 6 de maio de 1536(17).

As Extravagantes, além de compilar as leis esparsas nas instituições civis, reuniram também as leis referentes aos tribunais religiosos, como por exemplo, o decreto de 28 de julho de 1541. Elas ordenavam que todos os condenados ao degredo pela justiça eclesiástica do arcebispado de Lisboa deveriam ser enviados aos pilotos dos navios que eram "obrigados a trazer certificados autênticos dos capitães ou dos oficiais de justiça do lugar do degredo" explicando como foram « entregues e como ficaram servindo seus degredos »(18).

Ao final do século XVI, o número elevado de leis que existia fora das Ordenações Manuelinas e da compilação das Extravagantes de Duarte Nunes do Leão começava, novamente, a dificultar o trabalho dos juristas. Por decisão de Felipe II, uma nova compilação foi ordenada e, em 1595, precisamente aos 5 de junho, foi aprovada pelo rei. O novo código, batizado de Ordenações Filipinas, não chegou, a princípio, a ser imposto, por não ser suficientemente completo para substituir as Manuelinas. Somente mais tarde, por novo decreto real de 11 de janeiro de 1603, elas entraram em vigor. Ainda que as Ordenações Filipinas pertençam a uma época em que a cultura jurídica sofreu uma crise devido à irrupção do pensamento humanista no direito romano(19), elas não são inovadoras. Mais que uma jurisdição liberal, sua maior preocupação é de reunir num só texto as Ordenações Manuelinas, a compilação de Duarte Nunes do Leão e as novas leis que foram ordenadas depois das Extravagantes. Este corpo legislativo conserva o velho esquema tradicional com um sistema de divisão em cinco livros, e estes em títulos e parágrafos, método aliás similar ao utilizado nas « Decretais » de Gregório IX(20). Trata-se de um reagrupamento das ordenações portuguesas precedentes e não de uma legislação "castilhizante" como poder-se-ia supor, dada a nacionalidade do novo rei e a situação política de Portugal. O próprio Felipe II foi atento em não ferir as susceptibilidades dos novos súditos. Ele não quis tocar nem na estrutura nem no conteúdo das ordenações: provavelmente, uma política que o rei utilizou para mostrar seu respeito pelas instituições portuguesas.

Mesmo com a revolução de 1640, que pôs fim à dominação de Castela sobre Portugal, a validade das Ordenações Filipinas continuou por muito tempo e João IV de Bragança, que sucedeu Felipe IV da Espanha, confirmou, de maneira geral, todas as leis que haviam sido promulgadas sob a dominação de Castela. Aos 29 de janeiro de 1643, João IV prescreveu "confirmar, promulgar e ordenar que dos ditos cinco livros das Ordenações sejam postos em prática e que se lhes obedeça, como se tivessem sido por mim mesmo feitos, ordenados, promulgados e estabelecidos"(21).

Os legisladores inspiraram-se no Direito Imperial, isto é, no Código de Justiniano e em outros textos integrados no Corpus Juris Civilis, e no Direito Canônico que manifesta sua influência em numerosos trechos. Violar a lei quer dizer não somente desobedecer o rei, mas também, em numerosos casos, profanar a ordem divina. Era então um pecado grave contra Deus e contra a Igreja. Ainda que as sanções fossem extremamente rigorosas e com a ameaça freqüente da pena de morte, sua prática variava segundo a categoria social de cada um: para um mesmo tipo de crime, um "fidalgo honrado" e uma "pessoa vil" sofriam penas diferentes. Não se podia açoitar os nobres e, às vezes, são eles isentos de torturas. Em geral, uma pessoa condenada ao degredo e mesmo castigada com uma pena pecuniária, uma multa por exemplo, torna-se desonrada aos olhos da sociedade, quer dizer que ela não pode mais exercer cargos públicos até que seja reabilitada pelo rei(22).

Nas Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, o célebre Livro V é dedicado ao direito penal. É lá que estão enumeradas as penas a serem aplicadas aos condenados segundo o grau de seus delitos. Normalmente as penalidades previstas são severas. A expressão que designa a pena de morte - morra por ello - é freqüente. Mas a sentença morra por ello, bem como a morra por isso, não significa unicamente a morte física, mas pode às vezes significar a morte civil, a qual excluia o condenado de seu meio social por uma condenação ao degredo(23).

Nas Filipinas, a mutilação, a marca à ferro ardente e as "penas atrozes" são mais raras, no entanto as torturas continuam a ser amplamente aplicadas: uma herança do direito romano. A aplicação da pena do açoite aparece em quase todas as condenações, mas é reservada às pessoas comuns. Os "homens de qualidade" de diferentes níveis de nobreza beneficiam-se de alguns privilégios e, nos milhares de processos inquisitoriais, constatamos claramente a desigualdade social. De fato, eles têm "uma posição extremamente invejável que ajuda a explicar o desejo de enobrecimento do português dos anos de 1600 e 1700, característica acentuada pela literatura e pelos cronistas da época". O célebre poeta Gil Vicente diz na Farsa dos Almocreves: "Cedo não haverá vilão. Todos del-rei, todos del-rei"(24).

É verdade que, nas ordenações, os nobres têm certos privilégios e o mais importante é a exclusão da pena do açoite que, por causa do seu caráter público, desonra os condenados. O açoite era considerado como uma pena vil e humilhante a qual todos queriam escapar e, mesmo alguns condenados, que até o momento da condenação eram considerados comuns, os então chamados « peões », procuravam de todas as maneiras encontrar um vínculo com a nobreza: a única condição para evitar a pena infamante. Nas Filipinas, há um título assim formulado: "Das pessoas que são escusas de haver pena vil". Lá se encontra a lista das profissões e dos títulos nobres que "devem ser relevados de haver pena de açoutes, ou degredo com baraço e pregão, por razão de privilégios, ou linhagem"(25). São estes: « os escudeiros dos prelados e dos fidalgos, os ecudeiros à cavalo, os moços da estribeira do rei ou da rainha, os príncipes e os infantes, os duques, os marqueses, os prelados, os condes ou qualquer pessoa do Conselho Real, e os pajens dos fidalgos ». Todos esses nobres deviam ser registrados nos livros reais. Os "juízes, os procuradores, os pilotos de navios e outros" completam a lista daqueles que não mereciam o açoite(26). A lei era bastante clara, como ilustra o exemplo seguinte: "E qualquer pessoa, que der consentimento a sua filha, que tenha parte com algum homem para com ella dormir, posto que não seja virgem, seja açoutada com baraço e pregão pela Vila, e degredada para sempre para o Brazil, e perca seus bens. E sendo de qualidade, em que não caibão açoutes, haverá somente a dita pena do Brazil"(27).

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O fato é que, mesmo se encontramos centenas de nobres, ou aqueles que se diziam nobres, que souberam evitar o açoite, na realidade o título de nobreza não podia impedir a condenação. De uma maneira ou de outra, nobres e pessoas comuns, todos foram punidos. É verdade que os fidalgos escapavam do açoite, mas eles raramente conseguiram evitar o degredo. Às vezes se esquivavam também da cerimônia pública do auto-de-fé onde os inquisidores faziam os penitentes desfilar em procissão solene os penitentes nas principais ruas da cidade. Para alguns, a solenidade da leitura da sentença era secreta, unicamente diante dos juízes, na sala do tribunal. A humilhação pública sempre foi reservada às pessoas comuns, deixando neles os estigmas da vergonha. O procedimento judiciário para os nobres foi portanto suavizado pela legislação que lhes reservava certos privilégios.

A guisa de ilustração cito aqui somente um exemplo, muito sumário mas interessante, sobre a maneira pela qual os fidalgos procuravam evitar a pena ignóbil do açoite. Em 28 de julho de 1682, acusada de falso misticismo, Suzana Andrade foi presa no calabouço da Inquisição de Lisboa. Os juízes condenaram-na "à pena do açoite nas ruas públicas desta cidade" e ao degredo de « 5 anos no Estado do Brasil ». Uma semana depois, Suzana explicou aos inquisidores que ela era filha do capitão Cristóvão Andrade de Siqueira, um homem que tinha algumas gotas de nobreza em seu sangue. Além disso, a suplicante provou que ela "havia amamentado Dona Inês Francisca de Távora, filha de D. Diogo de Menezes". Como ela se enquadrava na disposição legal que dispensava os açoites às pessoas pertencentes à nobreza, o Conselho Geral decidiu retirar a pena. Em compensação, Suzana viu adicionar um ano ao seu degredo no Brasil(28). Ela preferiu prolongar o tempo de seu banimento a ser açoitada nas ruas da cidade.

É impossível estudar a pena de degredo sem consultar as Ordenações Filipinas, que constituem uma fonte jurídica de primeira ordem. No célebre Livro V, com seus 21 títulos sobre direito e procedimento penal, encontramos numerosos casos em que, de maneira explícita, é indicada a condenação ao degredo. Ademais, havia a possibilidade de comutar em exílio a pena de morte, ou ainda, uma falta aparentemente de pequena importância podia ser agravada pelas circunstâncias e tornar-se passível de degredo(29). O banimento para o Brasil era uma das penalidades mais severas da época. Aparecia imediatamente depois da pena de morte e das galés.

Ora, se a justiça secular já punia com o degredo os crimes que serão reinvindicados pelo Santo Ofício, por que foram estabelecidos estes novos tribunais inquisitoriais à partir do século XVI ? Na realidade existiam na sociedade portuguesa diferentes jurisdições para os delitos contra a Igreja católica. Em geral, cabiam aos tribunais eclesiásticos examinar e julgar os casos em que a religião estava em causa. O conhecimento do crime de heresia dizia respeito, portanto, aos juízes da Igreja. Somente ela podia discernir as verdadeiras das falsas doutrinas, diferenciando os fiéis autênticos dos heréticos(30). No entanto, alguns desses delitos dependiam dos juízes seculares. "Dos Heréticos e dos Apóstatas", tal é a primeira matéria do Livro V das Ordenações Filipinas que definiu o crime de heresia como sendo o ato de dizer, de crer e de afirmar proposições que são contra Deus e a « Santa Madre Igreja ». O herético era portanto a pessoa que crê ou sustenta com tenacidade um sentimento declarado errôneo, contra a Igreja. O herético, nas Ordenações, é aquele que, sendo batizado, afasta-se da ortodoxia católica(31).

Quando os heréticos eram condenados à morte, a "execução de sangue", a Igreja não podia aplicar esta sentença. Na verdade, Ecclesia abhorret sanguinem. Ela transferia esta execução ao braço secular, solicitando sua colaboração. Nesse caso, o tribunal eclesiástico enviava o condenado ao rei, acompanhado de seu processo. Este fazia rever as peças do processo pelos juízes da Corte Suprema, para que eles executassem as condenações segundo o direito. A execução era somente autorizada após ter-se verificado sua conformidade com o Direito Real. A obrigação dos reis de ajudar a justiça eclesiástica é definida com mais precisão numa lei de D. Fernando, que foi transcrita e confirmada no terceiro parágrafo do título 27 do Livro V das Ordenações Afonsinas: "Porque a todo Rei católico, como braço da Santa Igreja, pertence fazer e mandar cumprir e guardar as suas sentenças que diretamente são dadas e fazer que os seus sujeitos sejam obedientes a elas nos casos que são da sua jurisdição, para serem eles guardados da sanha de Deus e dos muitos danos e perigos em que caem por essas sentenças, especialmente por sentença de excomunhão de que a Santa Igreja toma espada espiritual e corta a alma que é a melhor e mais nobre parte do corpo"(32). Nessa passagem, transparece a influência da doutrina medieval sobre as relações entre o poder espiritual e o poder temporal. A Igreja tem então dois braços: o espiritual, ou seja, o corpo eclesiástico, e o secular, as autoridades civis. Estes poderes são simbolizados por dois gládios: o gládio espiritual que "corta a alma" e o temporal que mata ou fere o corpo(33).

O crime de heresia, como revela o Santo Ofício, é aprofundado nos Regimentos inquisitoriais que se ocupavam das diversas modalidades de crimes contra a Igreja. De toda forma, encontra-se nas ordenações reais punições contra os heréticos, os apóstatas, os feiticeiros e os blasfemadores.

Mas, com relação aos crimes contra a religião, o combate principal dos tribunais inquisitoriais era contra o judaísmo, particularmente contra os cristãos-novos, que as Filipinas tinham o direito de condenar. O quarto parágrafo do título I chega a esta conclusão: "E se tal caso for, que elle se torne à Fé, ahi fica aos Juízes Ecclesiasticos darem-lhe suas penitencias espirituais"(34). Os Regimentos inquisitoriais ocupam-se mais em profundidade dos heterodoxos e apóstatas, como veremos mais adiante.

A matéria legislativa que se refere aos crimes contra o rei existia desde a antigüidade. As Ordenações Afonsinas aprofundaram estas leis, apoiando-se em textos já existentes dos glossadores e comentaristas do Direito Imperial Romano. O segundo título do Livro V desenvolve minuciosamente a definição dos crimes contra o rei. A lei chama de lesa-majestade "uma traição contra a pessoa do rei"(35). Esta traição podia manifestar-se por três "vícios" contrários à lealdade: torto (infidelidade), vileza e mentira(36).

Este "crime grave e abominável", como é designado pelas Ordenações Filipinas(37), era comparado pelos antigos « sabedores »(38) à lepra: "Assim como esta enfermidade enche o corpo, sem nunca mais poder curar e empece ainda aos descendentes de quem a tem... assim o erro da traição condena quem a comete e empece e infama os que de sua linha descende..."(39).

Existem dois graus de classificação do crime de lesa-majestade: os de primeira cabeça e os de segunda cabeça. Os primeiros são aqueles que ofendem a pessoa do rei por uma traição. Tais delitos são punidos com o confisco de todos os bens e com uma "morte cruel". Nesta categoria entram todos aqueles que "tratam da morte do rei, da rainha sua mulher ou de algum descendente ou ascendente, por linha reta do monarca, irmão deste, tio, primo co-irmão ou sobrinho, filho de irmão do rei". Aquele que "matar ou ferir de propósito, na presença do rei, algum homem ou mulher que estivesse na companhia dele" ; aquele que "tratar da morte de conselheiros do rei" ; aquele que "bandear-se com inimigo, em tempo de guerra, para combater contra o Reino" ; aquele que "corresponder-se com inimigo do rei ou do seu Real Estado" ; aquele que "conspirar com outros contra o rei ou seu Real Estado" ; e, finalmente, aquele que "quebrar ou derribar, com intenção de desprezo, imagem do rei posta nalgum lugar"(40).

Os crimes considerados como menos graves, mas comportando uma falta de respeito para com a pessoa real, são os delitos de lesa-majestade de segunda cabeça. Tais crimes não são punidos com a pena de morte, mas por castigos corporais determinados segundo "a condição social das pessoas, a qualidade do crime e as prescrições do Direito"(41). Estes crimes são numerosos. Cito apenas alguns passíveis do degredo: "quebrar ou violar de qualquer modo a segurança real" ; "matar, ferir ou ofender reféns em poder do rei, sabendo que o eram, e sem justa razão, ou ajudá-los a fugir desse poder" ; "ajudar preso acusado de traição ou dar-lhe fuga" ; tirar do cárcere algum preso condenado ou confesso, para evitar que se fizesse justiça" ; "matar ou ferir, por vingança, inimigo que já esteja preso em prisão régia para se dele fazer cumprimento de justiça" ; "matar ou ferir juiz ou oficial de justiça por fato relativo ao exercício das suas funções" ; "falsificar ou mandar falsificar o sinal de algum desembargador, ouvidor, corregedor ou qualquer outro julgador, ou algum selo autêntico que faça fé, com propósito e intenção de causar dano ou de colher proveito". Todos esses delitos eram punidos com o degredo em Ceuta(42) ou na ilha de São Thomé(43) ou no Brasil(44). O degredo destinado ao território brasileiro é também o castigo daqueles que "resistem ou desobedecem aos oficiais da justiça ou lhes dirige palavras injuriosas"(45).

Os falsos moedeiros são culpáveis de crime de lesa-majestade. As Ordenações Afonsinas definem, desta maneira, a moeda falsa: "Toda moeda que não é feita por nosso mandado em qualquer lugar que seja feita, ainda que seja feita daquela forma e matéria de que é feita a nossa verdadeira moeda que se faz por nosso mandado no lugar para ello deputado, porque segundo direito e razão ao Rei ou Príncipe da terra é somente outorgado fazer moeda e não a algum outro de qualquer dignidade e preeminência que seja"(46). Portanto, a moeda posta em circulação sem consentimento régio é falsa. A sentença para os falsos moedeiros, segundo as Afonsinas, é a "morte de fogo" e a confiscação de todos os bens em proveito da Coroa(47). As Manuelinas previam também a "morte de fogo", mas se o crime for menos grave, os culpados podem ser banidos para sempre na Ilha de São Thomé ou por 10 anos "num dos lugares de África"(48). Para o mesmo crime, as Filipinas acrescentam o degredo "para sempre no Brasil", confiscando todos os bens do condenado, dos quais "haverá a metade quem o accusar"(49).

Limar as bordas das moedas de ouro ou de prata a fim de obter o metal precioso em pó, diminuindo assim o peso que dá o valor à moeda, é um crime que condena o seu autor não somente ao açoite, mas também a "dois anos de degredo fora do Reino"(50). As Filipinas condenam essa extração de metal precioso pelo degredo perpétuo no Brasil e o confisco do patrimônio, repartido "metade para a Câmara Municipal e a outra metade para quem o acusa"(51).

O não cumprimento do degredo é também considerado como um crime de lesa-majestade. De fato, isso significa uma falta de respeito para com as ordens reais. O rei Afonso V puniu severamente aqueles que não respeitavam as sentenças dos tribunais. Ele dobrou a pena dos contraventores que eram degredados por um período inferior a 10 anos e que não haviam ainda partido para o exílio. Se o degredado deixa o lugar do degredo antes do tempo determinado pela justiça, dever cumprir o dobro do tempo que lhe restava. Se for degredado por 10 anos ou mais e interromper o seu degredo antes do tempo determinado pela justiça, será condenado à perpetuidade. Se for banido à perpetuidade, a infração será punida com a pena de morte(52).

As Filipinas, no título 143 do Livro V, adiciona que "se algum degredado for achado fora do lugar para onde foi degredado, sem mostrar certidão pública, per que se possa saber que tem cumprido o degredo, seja logo preso, e o tempo que ainda lhe ficar por servir, posto que para sempre fosse degredado, se era degredado para o couto de Castro Marim, seja mudado, e vá cumprir e servir à África. E se era para a África, vão cumprir ao Brasil, e se era degredado para o Brazil, se por tempo, dobre-se o degredo que tiver por cumprir. E se era para sempre, morra por isso, não cumprindo o dito degredo. E fugindo do navio em que estiver embarcado para ser levado para o Brazil para sempre, morra por isso"(53).

É claramente perceptível que o degredo no Brasil representava um grau elevado de punição. Na realidade, segundo o exemplo que acabei de citar, era a última possibilidade do condenado antes da sentença de "morra por isso". Segundo essa citação, depois da pena de degredo à perpetuidade no Brasil, restava somente a pena capital. Na realidade, de maneira geral, a condenação às galés era considerada como uma pena ainda mais pesada que o degredo no Brasil ou na África.

Se passarmos aos crimes contra a moralidade, veremos que eles sempre foram punidos com grande severidade. Vários títulos do Livro V das Ordenações Afonsinas tratam dessa questão. A pena de morte sempre sanciona os crimes julgados mais terríveis, como por exemplo aquele que "violentando-a, dormia com uma mulher casada, ou uma religiosa, ou uma moça virgem, ou uma viúva que vivia honestamente". A pena capital era, ainda, a condenação prevista para todo aquele que aconselha ou ajuda um outro a cometer tal crime. Mesmo se o criminoso propusesse casar-se com a "mulher violada" ou mesmo se ela lhe perdoasse, a pena não podia ser comutada, salvo se o rei decidisse conceder ao criminoso "uma graça especial"(54). As Manuelinas e as Filipinas degredam para a África o homem que "por violência" dorme "com qualquer mulher"(55).

Uma lei de Afonso IV, no título 9 do Livro V, considera um crime a sedução de uma virgem. O sedutor, neste caso, será preso e, se pagar uma soma cuja quantidade possa ser razoavelmente suficiente segundo a qualidade das pessoas, ele poderá esperar o julgamento em liberdade. Dormir "com moça virgem ou viúva honesta por sua vontade, ou entrar em casa doutrém para com elas dormir", valerá ao acusado a pena de degredo na África continental ou na ilha de São Thomé ou além-mar"(56).

No que concerne ao adultério, as Afonsinas, no título 18, sempre no Livro V, ordenam que seja degredado o marido ultrajado que encontra sua mulher em flagrante delito de pecado com um nobre e o mata. Mas, se este que comete o adultério for um "vilão ou homem de pequena qualidade", o assassino será somente açoitado. Se, por acaso, o marido traído tiver o título de cavaleiro ou de fidalgo de solar, ele poderá matar os amantes sem ser punido pela justiça(57): este é um outro privilégio da nobreza.

Os casos de adultério eram em teoria punidos com a morte, mas se o marido perdoasse a mulher e denunciasse o adúltero à justiça, este não morreria, e era punido com um degredo « para sempre » no Brasil. Se o marido perdoasse também à mulher e seu amante, este teria uma pena menos rigorosa: 7 anos de degredo na África. E se fosse provado que um homem consentiu que sua mulher cometesse adultério, ambos seriam açoitados publicamente « com senhas de capela de cornos », isto é, cada um deveria trazer na cabeça uma guirlanda de chifres e, além disso, seriam degredados para o Brasil(58). Neste caso, o homem adúltero era também punido: degredo perpétuo na África(59). O adúltero era sempre punido mesmo se a mulher fosse "casada de fato e não de direito", é o que se chama um casamento putativo. Neste caso, os amantes "serão degredados dez annos para o Brazil para diferentes capitanias..."(60).

Nas propriedades da Corte, o homem que possuisse uma « barregã », quer dizer, uma concubina, seria degredado. A sentença seria a mesma para a amante(61). Se o barregueiro fosse casado, além de uma pena pecuniária, seria degredado por três anos numa colônia de além-mar(62).

Uma luta obstinada foi conduzida contra as « barregãs dos clérigos ». Em 1401, D. João I promulgou uma lei, em seguida incorporada às Ordenações Afonsinas, que explicava "que muitos Clérigos e Religiosos tinham barregãs em suas casas a olhos e face dos Prelados, e de todo o Povo, e as trazem vestidas e guarnidas tão bem, e melhor, que os leigos trazem as suas mulheres, pola qual razão muitas mulheres leixam de tomar maridos lidemos, que poderiam aver pera viverem na ordem primeira, que Deos no mundo estabeleceu (...) e ajuntam-se com Clérigos e Frades, e com Freires, e com outras pessoas Religiosas, e vivem com eles por suas barregãs em pecado mortal"(63).

No início do século XVI, várias penas de excomunhão foram aplicadas aos clérigos concubinos, mas os prelados responderam ao rei que, com este tipo de punição, não se conseguiria eliminar o pecado, pois - continuam os prelados - "quaisquer que sejam as penas impostas aos padres para que não tenham amantes, estes não cessariam de tê-las". Os bispos e os superiores das ordens religiosas propuseram ao rei que não punisse unicamente os clérigos mas de castigasse igualmente as mulheres que "pecavam" com eles(64).

As sanções atingiram assim também as mulheres. Foi-lhes proibido viver "em concubinagem" com os clérigos e os irmãos religiosos. Elas teriam penas de prisão, multas e condenações ao degredo. A lei ordenou "que pola primeira vez, que no dito peccado for convencida per cada hum dos modos sobreditos, pague dous mil réis, e sejam degredadas por hum anno fora da Cidade, ou Villa, e seus termos, onde esteve por manceba". Pela segunda vez "paguem a dita pena em dinheiro, e sejam degredadas fora de todo o Bispado até nossa mercê". Pela terceira vez, "sejam publicamente açoutadas e degredadas para fora do Reino até nosso perdão". A pena máxima para essas barregãs era o degredo "para sempre para o Brazil, no caso de serem surpresas em flagrante delito pela quarta vez"(65). Quanto ao "frade que for achado com alguma mulher", a vindita seria bem menos pesada: ele não seria preso, "a menos que isso fosse pedido pelo prelado ou vigário ou seus superiores". Os "Frades que forem achados fora do Mosteiro com alguma mulher, mandamos que os tomem, e tornem logo ao Mosteiro, e os entreguem a seus Superiores, sem mais irem à Cadeia"(66), ordena o título XXXI do Livro V das Ordenações Filipinas.

A amante de um clérigo poderia ser perseguida somente quando ela fosse encontrada em flagrante delito em companhia do padre e num lugar suspeito, ou se contra ela houver uma queixa levada diante do juiz. Os eclesiásticos de mais de 60 anos podiam ter, em suas casa, "mulheres honestas de mais de 50 anos", mas unicamente, e nada mais, "para servi-los em suas dores e enfermidades"(67).

A punição para a « rufiagem » é prevista nas três ordenações. As Afonsinas conceitualizam claramente a significação do termo: o rufião é o sedutor que incita as mulheres, seduzidas e tiradas de sua família, "em concubinagens hospedando-as em albergues para dormir publicamente com homens de passagem e tendo o alcoviteiro todo o dinheiro que elas ganham no dito pecado". Às vezes os alcoviteiros levavam-nas "às vilas e cidades mais célebres para que elas pudessem ganhar mais dinheiro e eles ficavam com tudo que elas ganhavam impudicamente". Ambos, o rufião e a manceba, eram publicamente açoitados e condenados ao degredo(68). As Filipinas indicavam os lugares: "...e elle será degredado para a África, e ella para o Couto de Castro Marim"(69).

Degredavam-se também "aqueles que dormem com suas parentas", ou seja, "sua tia, irmão de seu pai, ou mãe, ou com sua prima co-irmã, ou com outra parenta no segundo grau, contado segundo o Direito Canônico". Neste caso, o homem seria degredado por dez anos na África e a mulher por 5 anos no Brasil, "e se dormir com sua cunhada no primeiro grau de afinidade", o degredo seria para ambos de "10 anos no Brasil", em diferentes capitanias, naturalmente(70). Degredo perpétuo no Brasil igualmente para aqueles "que dormem com mulheres órfãs, ou menores que estão a seu cargo"(71). Perpetuamente degredado no Brasil: "aquele que dorme com parenta, criada, ou escrava branca"(72).

O homem que entra no mosteiro ou "ou dorme com ela ou a recolhe em sua casa" terá a pena de morte, mas se ele for de "grande qualidade", um "fidalgo" de reputação, escapará da pena capital e será degredado perpetuamente no Brasil(73).

Finalmente, punia-se com o degredo em terras brasileiras "qualquer pessoa, homem ou mulher" que facilitasse os encontros galantes de uma mulher para "fazer mal de seu corpo". O degredo será perpétuo no caso em que a pessoa alcovitada seja "uma freira professa, moça virgem, ou viúva honesta ou filha do alcoviteiro"(74).

Rígida era a pena para a sodomia, considerada "entre todos os pecados o mais "indigno, sujo e obsceno" e, como conseqüência, "todo homem que cometer tal pecado, por qualquer motivo que seja, será queimado e feito per fogo em pó, por tal que já nunca de seu corpo e sepultura possa ser ouvida memória"(75). No caso de obscenidades, "as pessoas, que com outras do mesmo sexo commeterem o pecado de molícia, serão castigadas gravemente com degredo de galés e outras penas extraordinárias, segundo o modo e perseverancia do pecado". Aquele que tiver conhecimento de algum culpado deste pecado e não o denunciar aos tribunais seria degredado "para sempre" fora do Reino(76). Teoricamente, a pena para a sodomia era muito severa, mas, na prática penal, constatamos que os sodomitas eram quase todos condenados ao degredo, como veremos adiante. Poucos dentre eles foram condenados à fogueira.

O que dizer dos crimes contra a pessoa, sua honra e sua reputação ? As Ordenações Afonsinas condenam à pena de morte as pessoas que comentem um homicídio "sem porque", qualquer que seja o estado e a condição do assassino. No entanto, elas atenuam a pena quando o ato somente causa ferimentos. Nesta circunstância, a punição não seria a morte, mas uma outra sentença estabelecida conforme o direito e a qualidade do fato(77). À pena decidida pelo juiz, juntam-se a prisão e a multa quando o homicídio ou o ferimento for cometido na corte ou em seus arredores(78). Se o ato for cometido em território da corte, a punição será mais rigorosa. Nas Ordenações Manuelinas, a pessoa que mata ou fere qualquer outro, ou mesmo « tira arma na Corte », pode ser punida pela morte, sempre considerando a qualidade da vítima. Nesta circunstância, a pena menos severa que a morte é o degredo por 10 anos na ilha de São Thomé, ou 10 anos também, com "baraço e pregão", num dos lugares da África(79).

Aquele que brande armas na igreja ou numa procissão, será degredado no Brasil "para sempre". Pouco importa a qualidade e a condição da pessoa, se "dentro da igreja, ou mosteiro, arrancar espada ou punhal para ferir outrem, ou em procissão, ou outro lugar, onde o Corpo do Senhor for ou estiver". A sentença tornava-se menos severa se fizesse "o dito arrancamento em procissão, onde não vá o Corpo do Senhor, seja degredado dez anos para o Brazil"(80).

Se um escravo ou um filho brandir arma contra seu senhor ou seu pai, se tal ato causar a morte, o culpado teria as duas mãos cortadas e, em seguida, enforcado. No caso em que não houver ferida, "que seja açoitado publicamente com baraço e pregão pela Villa, e seja-lhe decepada huma mão"(81).

A injúria e a difamação constituem sérios crimes contra a pessoa e sua honra. As Ordenações Afonsinas empregam o termo "injúria" no sentido de uma ação contrária ao direito; o culpado era passível de multa ou de penas corporais(82).

As Filipinas ampliam o leque de punições para os insultadores. No Livro V, título 49: "Dos que resistem, ou desobedecem aos Officiaes da Justiça, ou lhes dizem palavras injuriosas", o acusado poderia ser levado à morte ou o degredo no Brasil ou na África(83).

Dar falso testemunho conduz o culpado ao açoite público e "sua língua será cortada na praça do pelourinho": esta é a punição determinada pelas Afonsinas. Mas, segundo as Manuelinas e as Filipinas, a pena é menos cruel: o condenado é punido com o degredo na África, na Ilha de São Thomé(84) ou no Brasil(85).

Muitos outros crimes contra a pessoa, sua honra e sua reputação, expõem os culpados ao degredo no Brasil. Eis apenas alguns exemplos: ferir, em tumulto, com armas de fogo(86) ; lançar desafios e trazer escritos ou mensagens de desafio(87) ; entrar numa casa quebrando as portas ou insultar uma pessoa em sua casa(88). A mulher « que fingir ser prenhe sem o ser e ter parto alheio ao seu, seja degredada para sempre no Brazil e perca todos os seus bens para nossa Coroa »(89). Nesse caso, a mulher falsamente grávida cometia um delito contra a verdade e, portanto, incorria na pena reservada ao falso testemunho.

Finalmente, vejamos os crimes contra o patrimônio que as ordenações portuguesas puniam com o degredo. As Afonsinas condenam todos aqueles que, com má intenção e com o propósito de enganar os proprietários, "arrancavam os marcos sem o consentimento das partes e sem autoridade da justiça". No mesmo título, pune-se também aquele "de qualquer estado e condição que seja" que, sem permissão da justiça, destróem as cercas construídas entre "as vinhas, as oliveiras, as macieiras, as colheitas ou qualquer outra coisa de um proprietário nobre e distinto". Se o culpado for um homem de "pequena condição", será açoitado publicamente na cidade ou no lugar onde tivesse acontecido o delito. Ademais, é degredado por dois anos em Ceuta, e se for um vassalo ou se tiver um título nobiliário mais elevado, é dispensado do açoite ; em compensação, terá quatro anos de degredo igualmente em Ceuta(90). Para o mesmo tipo de crime, as Ordenações Filipinas acrescentam o degredo na África(91). Degredo também para qualquer um que entrasse na casa de outrem "com a intenção de roubar" e "não prove que nada roubou na dita casa"(92). Proteger e dar ajuda "a escravos prisioneiros para que fujam"(93) e vender propriedades de outrem, são também crimes que expõem os culpados ao degredo no Brasil(94).

A legislação era complexa. Haviam inúmeras matizes nos castigos incorridos para um mesmo tipo de crime, como pode-se ver no exemplo seguinte. O degredo na colônia brasileira punia os delitos que havia causado grandes prejuízos e danos à propriedade de outrem. Assim, aquele que corta árvores frutíferas deve pagar ao proprietário uma soma igual a três vezes o preço da árvore e é degredado na África, se o dano causado for inferior a 4 mil réis. Mas se for igual ou superior a 30 cruzados, será degredado no Brasil(95). Aquele que matasse animais pertencentes a uma outra pessoa, pagaria o triplo do valor estimado dos mesmos, e se o prejuízo ultrapassasse 30 cruzados, seria também degredado para o Brasil(96).

Vários outros crimes contribuíram para o aumento do número dos degredados no Brasil. É o caso daqueles que fazem agrupamentos tumultuosos(97), ou dos comerciantes que rompem acordos e daqueles que roubam a mercadoria dos outros(98). Nesse caso, os criminosos eram considerados "ladrões públicos". O degredo punia igualmente os oficiais do rei que, "por malícia", roubavam e dilapidavam o patrimônio real(99), aqueles que faziam falsas escrituras ou as utilizavam(100), aqueles que "falsificavam mercadorias"(101); aqueles que "medem ou pesam com falsas medidas ou falsos pesos"(102), aqueles que "molham ou colocam terra no trigo" para fazer aumentar o peso(103). Neste caso, o degredo no Brasil "para sempre" seria pronunciado unicamente quando o montante da mercadoria fosse igual ou inferior a 10 mil réis. Se fosse superior, a sentença seria a pena de morte.

Os oficiais do rei que aceitavam ser subornados e as pessoas que os pagavam, se o valor do suborno ultrapassava 1 cruzado, eram degredados perpetuamente no Brasil(104). O mesmo ocorria para: aqueles que vendiam aos mouros coisas proibidas, como armas, material de construção de navios "ou qualquer outro instrumento que os infiéis pudessem utilizar em ato de guerra"(105); aqueles que iam ao território dos mouros sem a permissão do rei, ou aqueles que, "sem a obrigatória licença real", levavam para fora do Reino trigo, cevada, farinha ou qualquer cereal, peles de cabras e "outras peles"(106). Quando o prejuízo material era muito grande, a pena de morte era sempre considerada nas ordenações, mas ela podia ser sempre comutada em degredo no Brasil(107). Com todas essas possibilidades, a justiça da época aproveitou amplamente desta margem legalmente concebida para multiplicar o degredo, sobretudo porque a coroa queria povoar as novas terras e essa era a maneira mais simples de fazê-lo(108).

Quanto à pena de morte que, numa lei de D. Dinis (morto em 1325), punia o jogo com dados falsos ou com dados chumbados, as Afonsinas substituíram-na pelo açoite público e pelo degredo nas ilhas da costa atlântica da África. Elas acrescentaram uma multa igual a três vezes o "que se havia ganhado com esses dados" e se o jogador fosse uma pessoa que não pudesse receber o açoite, devido a sua condição de nobre, era degredado em Ceuta por tempo indeterminado(109). Para esse mesmo crime, as Filipinas estenderam as possibilidades de degredo: um ano na África ou, se a circunstância exigisse uma pena mais rigorosa: o réu iria para o o Brasil, perpetuamente ou por 10 anos, segundo a qualidade social dos acusados(110).

Todos os condenados ao degredo, qualquer que fosse seu crime, deviam ser enviados para o Brasil, África, Índia e para o interior de Portugal, especialmente a Castro Marim. Segundo a gravidade do delito, o degredo podia ser perpetuamente ou por um prazo que não ultrapassasse 10 anos. Às vezes o degredo devia durar "até o perdão do Príncipe". Com efeito, quando a sentença não determinava a duração da pena, isso significava ser perpétuo, salvo se o soberano decidisse comutá-la ou perdoar o criminoso. Se este era enviado a um dos lugares no interior de Portugal, como Castro Marim, Miranda, Guarda ou Viseu, ele era liberado depois de jurar cumprir seu degredo(111). A ordenações concediam-lhe um prazo de 30 dias antes de partir e, às vezes, este prazo podia ser prolongado até por dois meses. O condenado enviado ao Brasil o era por um mínimo de 5 anos(112) e quando o crime não merecia tal punição, era enviado para a África, Castro Marim ou uma outra região de Portugal. Ainda que esta cláusula encontre-se nas Filipinas, na realidade pode-se constatar que os tribunais inquisitoriais condenaram ao degredo no Brasil numerosas pessoas por um prazo inferior a 5 anos.

Nos processos do Santo Ofício que estudamos, um grande número de condenados foram degredados somente por 3 anos. É verdade que na maioria dos casos, a condenação era por 5 anos e quando a falta era muito grave mas não merecia a perpetuidade, o degredo atingia no máximo 10 anos. Aliás, diferentemente da justiça secular, os tribunais inquisitoriais raramente pronunciaram um degredo "por toda a vida". Além disso, em certas condições, a sentença podia ser amenizada. Quando um condenado às galés pleiteava ser escudeiro ou que possuía um outro título nobiliário, e se tivesse menos de 16 anos ou mais de 55 anos, ou se sofresse de alguma enfermidade que o impedisse de servir nas galés, ele podia ter sua pena comutada em degredo no Brasil. Para obter esta comutação, ele devia provar aos juízes que ele preenchia uma dessas condições. Nesse caso, "um ano de galé era comutado em dois anos de degredo no Brasil"(113). Todos os capitães de navios eram obrigados, pela lei, a transportar os degredados. No caso em que "os Senhorios, Capitães, Mestres, e Pilotos dos Navios" desobedecessem, eram punidos com "pena de 50 cruzados, a metade para quem os accusar, e a outra metade aos presos pobres".(114)

Os nobres condenados ao degredo tinham ainda privilégios no que concerne à maneira que são transportados: "serão eles levados aos navios, quando forem cumprir seus degredos, com cadeia no pé e não com colares ao pescoço, como os outros, que não tem a dita qualidade"(115).

Como acabamos de ver, as causas dos degredos eram múltiplas. As Ordenações Filipinas de 1603 apresentam cerca de 90 tipos de crimes punidos com o degredo no Brasil, punição escolhida pela justiça portuguesa para os crimes mais graves. Efetivamente, centenas de pessoas foram enviadas ao Brasil durante os três séculos do período colonial, isto é, desde a chegada dos portugueses em 1500 até a independência em 1822. De fato, todas essas pessoas estando nas prisões acarretariam enormes despesas à administração real. Por que não aproveitar deste contingente, transformando-o em agente da colonização e do povoamento das imensas terras de além-mar? Esta constatação vale para o Brasil, bem como para as outras colônias do império português, e até mesmo para as regiões despovoadas de Portugal.

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Sobre o autor
Geraldo Pieroni

doutor em História pela Université Paris-Sorbonne (Paris IV)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIERONI, Geraldo. A pena do degredo nas Ordenações do Reino. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2125. Acesso em: 19 mar. 2024.

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