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O devido processo legal e o bafômetro

21/04/1998 às 00:00
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O Código Brasileiro de Trânsito, instituído pela Lei nº 9.053 de 23 de setembro de 1997, objetivando um trânsito em condições seguras, estabelece em seu artigo 165 multa de mais de R$800,00 - cumulativa a uma pena restritiva de direito (suspensão do direito de dirigir) -  para o cidadão que dirigir sob a influência de álcool, em nível superior a 6 (seis) decigramas por litro de sangue, ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica. Esse limite de concentração de álcool no sangue, segundo o artigo 276 do referido diploma legal, comprova que o condutor se acha impedido de dirigir veículo automotor. Assim, o artigo seguinte estatui que “todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de haver excedido os limites previstos no artigo anterior, será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia, ou outro exame que por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado”.

Entretanto, bem sabemos que todos os brasileiros submetidos ao novo Código de Trânsito não reagem ao álcool da mesma maneira. Se alguns permanecem em boas condições com o nível de concentração de álcool no sangue acima dos 0,6g/l, outros podem ficar embriagados e, portanto, sem condições de dirigir mesmo sem atingir o limite estabelecido pela lei. Apesar disso, as autoridades de trânsito elegeram o bafômetro como o meio de aferir a capacidade de dirigir veículos automotores dos nossos motoristas, obrigando os suspeitos a soprar no tal dispositivo. Desta forma, além de não assegurar que todos os que beberam abaixo do limite fixado podem dirigir com segurança, a autoridade - sob o pretexto dessa segurança - viola os mais fundamentais direitos e garantias constitucionais do cidadão.

A Constituição brasileira de 1988 consagra o Devido Processo Legal (due process) em seu artigo 5º, inciso LIV. Esse importante princípio constitucional americano - que teve sua origem na Magna Carta de 1215 - refere-se às garantias de natureza processual propriamente ditas, entre elas a vedação da auto incriminação forçada (self incrimination) e o direito à ampla defesa e ao contraditório. Também por inspiração americana, a Constituição Federal adota no inciso LVI do artigo supracitado o princípio da invalidade no processo das provas obtidas por meios ilícitos, consagrando assim, no nosso sistema constitucional, a famosa doutrina constitucional americana sintetizada na expressão “frutos da árvore proibida” (fruits of the poison’s tree), observada em alguns casos pelo Supremo Tribunal Federal.

O princípio do devido processo legal nos Estados Unidos tem também sido aplicado em muitos casos pela jurisprudência - especialmente da Suprema Corte - para limitar a ação administrativa do Estado na esfera individual e o poder de polícia, garantindo aos cidadãos a proteção contra abusos e a violação de garantias procedimentais e os direitos fundamentais. Não que o que seja bom para os Estados Unidos seja bom para o Brasil, mas já sofremos muito tempo em nome da “segurança nacional” e, portanto, não podemos tolerar qualquer restrição aos nossos direitos como cidadãos mesmo que seja em nome da “segurança no trânsito”.

Portanto, quem fizer uso de bebida alcóolica e, ainda assim, se achar em plenas condições de dirigir seu veículo, ao ser flagrado nas situações estabelecidas no artigo 277 do Código de Trânsito, pode perfeitamente se recusar a soprar no bafômetro. Neste caso, o cidadão estaria tão somente evitando produzir prova contra si próprio. Se, por ventura, a autoridade - sob qualquer pretexto - constranger esse motorista a fazer tal coisa, na apelação o indivíduo pode alegar que a prova foi produzida por meios ilícitos e, portanto, invalidá-la. Verificamos, então, que a maneira apropriada para constatação da incapacidade de dirigir de qualquer cidadão deve ser feita por intermédio de exame clínico. Este, ao considerar a individualidade de cada um, é a maneira mais correta de se estabelecer se um motorista pode ou não exercer o seu direito de dirigir sem atropelar a sua liberdade como cidadão.

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Sobre o autor
Alexandre Pouchain de Moraes

advogado no Rio de Janeiro, especialista em Direito do Consumidor pela PUC/RJ, piloto de linha aérea, investigador de acidentes aeronáuticos formado pelo CENIPA, conselheiro fiscal do Sindicato Nacional dos Aeronautas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Alexandre Pouchain. O devido processo legal e o bafômetro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 24, 21 abr. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1748. Acesso em: 19 abr. 2024.

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