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Principais mudanças relativas ao juiz no anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal

16/06/2010 às 00:00
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1.INTRODUÇÃO

O presente artigo aborda algumas das principais mudanças relativas ao juiz no anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal.

Inicialmente, é analisado o art. 4º do anteprojeto, no qual é definida a estrutura acusatória do sistema processual penal, além de vedar a iniciativa do juiz na fase investigatória e a substituição da acusação para a produção de provas.

A seguir, examina-se a instituição do juiz das garantias, para a tutela imediata e direta das inviolabilidades pessoais do investigado, além do seu impedimento de funcionar no processo.

Por último, é examinada a iniciativa do juiz para a produção de provas durante o processo penal.


2.PRINCIPAIS MUDANÇAS RELATIVAS AO JUIZ

A despeito da divergência existente na doutrina e jurisprudência quanto à definição do sistema processual penal brasileiro, se acusatório, inquisitivo ou misto, o anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal, em seu art. 4º, define a estrutura acusatória do processo penal, restringindo a atuação do magistrado na fase de investigação: "O processo penal terá estrutura acusatória, nos limites definidos neste Código, vedada a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação." [01]

A definição do sistema acusatório, no atual modelo processual penal brasileiro, esbarra nas divergências existentes entre as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Muitas vezes, tais decisões indicam que o sistema é acusatório, porém tem legitimado investigações judiciais, como no caso do art. 33 da Lei Orgânica da Magistratura (LOMAN)  [02] e o art. 43 do Regimento Interno do próprio STF  [03]. Esse dispositivo permite que a investigação criminal seja conduzida pelos próprios juízes. Além disso, segundo Andrade [04], historicamente o Supremo Tribunal Federal vem convalidando outras investigações penais fora da legislação pertinente, como no caso de juízes que decidem fazer sua própria investigação criminal e, posteriormente, participam do julgamento da causa. Para guardar coerência entre as leis especiais e o novo Código de Processo Penal, será necessário alterar aquelas, de modo que não exista nenhuma iniciativa por parte de juízes durante a fase investigatória no sistema de persecussão penal brasileiro.

Uma das grandes inovações no anteprojeto é a instituição do juiz das garantias. Conforme a exposição de motivos do anteprojeto, é necessária a instituição dessa figura no processo penal "para a consolidação de um modelo orientado pelo princípio acusatório" [05]. O juiz das garantias atua durante a fase de investigação criminal e é "responsável pelo exercício das funções jurisdicionais alusivas à tutela imediata e direta das inviolabilidades pessoais" [06]. Busca-se, com essa nova função, a "otimização da atuação jurisdicional criminal, inerente à especialização na matéria e ao gerenciamento do respectivo processo operacional" [07] e "manter o distanciamento do juiz do processo, responsável pela decisão de mérito, em relação aos elementos de convicção produzidos e dirigidos ao órgão da acusação" [08]. A Comissão de Juristas, responsável pela elaboração do anteprojeto, explica que a única razão para ocorrer o controle judicial da investigação é "quando houver risco às liberdades públicas, como ocorre na hipótese de réu preso" [09]. A investigação passa a ser acompanhada, assim, pelo juiz das garantias, para fiscalizar o cumprimento dos prazos legais.

Porém, algumas das competências do juiz das garantias, estabelecidas no art. 15 do anteprojeto, extrapolam a finalidade de proteger os interesses ou direitos do próprio investigado. Conforme o inciso X, o juiz das garantias poderá "requisitar documentos, laudos e informações da autoridade policial sobre o andamento da investigação". Andrade entende que não é necessária, na fase investigatória, a requisição de laudos e documentos para tutelar os interesses e direitos do investigado, havendo uma incongruência em relação ao art. 4º do anteprojeto, que veda a iniciativa do juiz na fase de investigação [10]. A interferência do juiz no inquérito policial vai de encontro à definição do próprio sistema acusatório no processo penal brasileiro, que separa as atividades de juiz, acusador e defensor.

Uma questão importante, introduzida pelo art. 17 do anteprojeto, diz respeito ao impedimento do juiz que atua na fase de investigação, como juiz das garantias, funcionar no processo [11]. Apesar da exposição de motivos do anteprojeto justificar tal impedimento pela otimização da atuação jurisdicional criminal e pelo distanciamento do juiz responsável pela decisão de mérito, existem situações que podem tornar tal prática inviável. Andrade cita, como exemplos, as comarcas que possuem somente um juiz e os autos de prisão em flagrante e pedidos urgentes à noite e finais de semana [12].

Em relação à atuação probatória do juiz, o art. 162 do anteprojeto, em seu parágrafo único, estabelece que "Será facultado ao juiz, antes de proferir a sentença, esclarecer dúvida sobre a prova produzida, observado o disposto no art. 4º". A vedação do art. 4º diz respeito à substituição da atuação probatória do órgão de acusação. Significa que o juiz não pode atuar na produção de prova quando for contrária ao réu, mas apenas em sua defesa, já que a substituição da atuação probatória da defesa não está vedada no anteprojeto. Isso cria a figura de um juiz defensor, nas palavras de Andrade [13], que assim o denomina por poder atuar apenas de um lado na relação processual, lembrando que tal figura, tanto em âmbito histórico como na atualidade, jamais fez parte da história do sistema acusatório. Ao contrário, a história mostra que, no sistema inquisitivo, o juiz podia buscar elementos para a defesa do acusado. Muitas vezes, essa atuação deveria ser de ofício, quando o réu não conseguisse se defender. Isso pode ser encontrado nas instruções de Tomás de Torquemada [14], onde o juiz só podia buscar outras testemunhas quando precisasse demonstrar que o depoimento da testemunha da acusação tinha o objetivo de prejudicar o réu, ou seja, o juiz tentaria neutralizar tal depoimento. Andrade sugere que seja alterada, no anteprojeto, a previsão do juiz defensor, de modo que seja feita a opção entre a figura do juiz que pode atuar pra os dois lados da relação processual, ou pela figura do juiz inerte, que não pode produzir provas para nenhum dos lados [15]. É importante observar que, no atual Código de Processo Penal, não existe restrição à iniciativa do juiz para a produção de provas, podendo ser favoráveis a qualquer das partes, conforme estabelece o art. 130: "Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias". Essa previsão no atual código visa tornar o conhecimento, no qual será fundada a decisão do juiz, o mais amplo possível.

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A doutrina justifica a possibilidade do juiz atuar somente a favor de um lado da relação e não do outro porque um deles (Ministério Público) é mais forte. Assim, busca-se a preservação do "status libertatis" do réu, que é fundamentada pelo princípio do "favor rei" no processo. Porém, a aplicação desse princípio não tem caráter compensatório, mas apenas a concessão de mais poderes, ou mais armas ao réu, como um simples favor, para que ele possa preservar sua liberdade. O princípio do "favor rei" não equivale à busca da igualdade material com acusação. Portanto, o juiz acaba tornando-se uma arma a favor da defesa, quando lhe é permitido atuar apenas daquele lado da relação processual para a produção de provas [16].


3.CONCLUSÃO

O anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal define, em seu art. 4º, o sistema acusatório no processo penal brasileiro, esbarrando em divergências da doutrina, jurisprudência e leis especiais.

Uma das grandes inovações no anteprojeto é a instituição do juiz das garantias, para, segundo a Comissão de Juristas responsável pela sua elaboração, consolidar um modelo orientado pelo princípio acusatório. O juiz das garantias atua durante a fase de investigação criminal, garantindo a tutela imediata e direta das inviolabilidades pessoais, de modo a buscar a otimização da atuação jurisdicional criminal e o distanciamento do juiz do processo em relação ao inquérito produzido para servir ao órgão da acusação. Porém, algumas das competências do juiz das garantias, estabelecidas no art. 15 do anteprojeto, extrapolam a finalidade de proteger os interesses ou direitos do próprio investigado, como a requisição de documentos, laudos e informações da autoridade policial sobre o andamento da investigação. A interferência do juiz no inquérito policial vai de encontro à definição do próprio sistema acusatório no processo penal brasileiro, que separa as atividades de juiz, acusador, defensor. Além disso, o juiz que atua na fase de investigação, como juiz das garantias, está impedido de funcionar no processo, conforme o art. 17 do anteprojeto. Apesar da exposição de motivos justificar tal impedimento pela otimização da atuação jurisdicional criminal e pelo distanciamento do juiz responsável pela decisão de mérito, há situações que podem tornar tal prática inviável, como a existência de apenas um juiz na comarca e a ocorrência de autos de prisão em flagrante e pedidos urgentes à noite e finais de semana.

Finalmente, o art. 162 do anteprojeto, em seu parágrafo único, estabelece que o juiz só pode atuar na produção de prova quando for favorável à defesa, nunca a favor da acusação, já que a substituição da atuação probatória da defesa não está vedada no anteprojeto. A figura de um juiz defensor jamais fez parte da história do sistema acusatório, tanto em âmbito histórico como na atualidade. No atual Código de Processo Penal, não existe restrição à iniciativa do juiz para a produção de provas, podendo ser favoráveis a qualquer das partes, conforme estabelece seu art. 130. A doutrina justifica a possibilidade do juiz atuar somente a favor de um lado da relação porque um deles (Ministério Público) é mais forte. Busca-se a preservação do "status libertatis" do réu, fundamentada pelo princípio do "favor rei" no processo. Porém, a aplicação desse princípio não tem caráter compensatório, mas apenas a concessão de mais poderes, ou mais armas ao réu, como um simples favor, para que ele possa preservar sua liberdade. Portanto, o juiz acaba tornando-se uma arma a favor da defesa.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

.ANDRADE, Mauro Fonseca. Sujeitos Processuais Penais. 2009. Palestra apresentada ao Seminário "Anteprojeto de um Novo Código de Processo Penal. Avanços e Retrocessos", Porto Alegre, 2009. Não publicado.

BRASIL. Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979. Dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/ LCP/Lcp35.htm>. Acesso em: 9 jul. 2009.

BRASIL. Senado. Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal. Brasília: Senado Federal, 2009.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Regimento Interno: [atualizado até março de 2009]. Brasília: STF, 2009. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/ legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF_mar_2009.pdf>. Acesso em: 9 jul. 2009.

BRASIL. Senado. Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal. Brasília: Senado Federal, 2009.


Notas

  1. BRASIL. Senado. Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal. Brasília: Senado Federal, 2009.
  2. BRASIL. Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979. Dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/LCP/Lcp35.htm>. Acesso em: 9 jul. 2009. Art. 33, Parágrafo único: "Quando, no curso de investigação, houver indício da prática de crime por parte do magistrado, a autoridade policial, civil ou militar, remeterá os respectivos autos ao Tribunal ou órgão especial competente para o julgamento, a fim de que prossiga na investigação".
  3. BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Regimento Interno: [atualizado até março de 2009]. Brasília: STF, 2009. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF_mar_ 2009.pdf>. Acesso em: 9 jul. 2009. Art. 43: "Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro."
  4. ANDRADE, Mauro Fonseca. Sujeitos Processuais Penais. 2009. Palestra apresentada ao Seminário "Anteprojeto de um Novo Código de Processo Penal. Avanços e Retrocessos", Porto Alegre, 2009. Não publicado.
  5. BRASIL. Senado. Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal, op. cit.
  6. Ibid.
  7. Ibid.
  8. Ibid.
  9. Ibid.
  10. ANDRADE, Mauro Fonseca, op. cit.
  11. BRASIL. Senado. Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal, op. cit. Art. 17: "O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências do art. 15 ficará impedido de funcionar no processo".
  12. ANDRADE, Mauro Fonseca, op. cit.
  13. ANDRADE, Mauro Fonseca, op. cit.
  14. Ibid.
  15. Ibid.
  16. Ibid.
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Sobre a autora
Cristina Fleig Mayer

Engenheira militar, acadêmica do curso de Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público(FMP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAYER, Cristina Fleig. Principais mudanças relativas ao juiz no anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2541, 16 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15043. Acesso em: 24 abr. 2024.

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