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Castração química de pedófilos: Polônia e Brasil

02/10/2009 às 00:00
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Recentemente, a Lower House (Sejm) do Parlamento da Polônia aprovou uma lei que, alterando seu Código Penal, prevê a "castração química" de condenados por crimes de estupro de menores de 15 anos (pedofilia) e incesto. Para entrar em vigor, ainda há necessidade de aprovação pelo Senado (Upper House, ou Senat).

A opinião pública vinha pressionando seus representantes a realizar essa alteração, especialmente após a prisão, na cidade de Grodzisk, de um homem de 45 anos, que abusou sexualmente de sua própria filha durante 6 anos. Assim, no dia da votação, quatrocentos deputados se manifestaram favoravelmente à aprovação, com somente um voto contrário, e duas abstenções. Porém, dentro do país o tema é polêmico, havendo quem sustente haver violação de direitos fundamentais assegurados pela Constituição e por tratados internacionais, como a vedação à punição corporal. Exemplificando, o art 39, da Constituição polonesa em vigor (de 1997) prevê que "ninguém deve ser submetido a experiências científicas, inclusive experiências médicas, sem o seu consentimento voluntário". Ainda, conforme seu art. 40, "ninguém pode ser submetido a tortura ou a tratamento cruel, desumano ou degradante, ou a punição. A aplicação de castigos corporais deve ser proibida" [01].

Se a norma vier a ser aprovada pelo Senado e entrar em vigor, será o primeiro país da União Europeia a adotar essa medida de forma compulsória, porém, não automática: nos seis meses anteriores à extinção da pena, o tribunal pode ordenar a medida. Em outros países europeus há medidas semelhantes, com o oferecimento de tratamento com medicamentos e terapia, desde que o condenado voluntariamente o requeira, como na Alemanha, Dinamarca, Suécia, Suíça e Reino Unido. Alguns Estados dos EUA também possuem ou já instituíram essa penalidade, como Florida, Texas, Louisiana, Montana, Georgia e Califórnia (neste último, na primeira condenação o tratamento é facultativo, mas se torna compulsório na segunda condenação por crime sexual).

A castração química consiste na realização de tratamento médico, que reduz a libido do paciente para níveis considerados "normais". Produz efeitos temporários, com o uso de medicamentos (antidepressivos, antiandróginos, ou mesmo remédios usados para tratamento de câncer de próstata) e, preferencialmente, com acompanhamento psicológico. Desse modo, apesar da denominação agressiva, não necessariamente há uma "castração" do paciente, que só pode ocorrer com intervenção cirúrgica, que produz efeitos definitivos.

No Brasil, há um projeto de lei em tramitação no Senado (de nº 552/2007), que prevê o acréscimo, ao Código Penal, do art. 216-B, com a seguinte redação, inicialmente sugerida pelo relator:

Nas hipóteses em que o autor dos crimes tipificados nos arts. 213, 214, 218 e 224 for considerado pedófilo, conforme o Código Internacional de Doenças, fica cominada a pena de castração química.

Os crimes referidos no tipo penal, que justificariam a aplicação da pena de castração química, são, respectivamente, os de estupro, atentado violento ao pudor (revogado pela Lei nº 12.015/2009), corrupção de menores e a presunção de violência nesses crimes (dispositivo igualmente revogado pela citada lei, que modificou e acrescentou outros dispositivos ao CP).

O relator do PL assim justifica a alteração legal:

A pedofilia é uma doença reconhecida pela comunidade científica internacional, que a descreve em seu Código de Doenças, cujas consequências para a sociedade têm sido das mais gravosas

Menores são psicológica e fisicamente torturados por indivíduos cuja formação psíquica apresenta tal deformidade a ponto de os impedirem de reabilitar-se perante a sociedade, mesmo se submetidos aos mais modernos e refinados tratamentos clínicos. Não é por outro motivo que mesmo em países cujo sistema carcerário apresenta o que há de melhor em termos de estrutura física e de assistência médica já se propõe que tais indivíduos sejam, finalmente, castrados, visando a impedir a reincidência do crime, tida por certa, em face das lastimosas estatísticas.

O projeto em tela visa a debelar essa mazela social em sua origem, com a máxima objetividade e o necessário vigor, em prol da sociedade.

Peço aos nobres Pares que considerem o Projeto em tela com o mesmo destemor com que o apresento, isolando os receios nos impeçam de dar à sociedade a proteção que ela espera do Estado.

Não se trata da primeira proposta contendo essa espécie de pena no Brasil. Em 2002, repercutiu na imprensa a apresentação do PL nº 7.021, na Câmara dos Deputados, prevendo exclusivamente a castração química como penalidade para os crimes de estupro e atentado violento ao pudor. Porém, esse projeto de lei foi arquivado em janeiro de 2003.

Voltando à proposta mais recente, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, o relator designado para apreciar o PL nº 552/2007 sugeriu emendas à proposta inicial, com a seguinte redação:

Art. 226-A. Quando os crimes tipificados nos arts. 213, 214 e 218 forem praticados contra pessoa com idade menor ou igual a quatorze anos, observar-se-á o seguinte:

§ 1º. O condenado poderá se submeter, voluntariamente, sem prejuízo da pena aplicada, a tratamento químico hormonal de contenção da libido, durante o período de livramento condicional, que não poderá ser inferior ao prazo indicado para o tratamento.

§ 2º. O condenado que voluntariamente se submeter a intervenção cirúrgica de efeitos permanentes para a contenção da libido não se submeterá ao tratamento químico de que trata o § 1º, e poderá, a critério do juiz, ter extinta a sua punibilidade.

§ 3º. A Comissão Técnica de Classificação, na elaboração do programa individualizador da pena, especificará tratamento de efeitos análogos ao § 4º. O condenado referido no § 1º deste artigo que se submeter voluntariamente ao tratamento químico hormonal de contenção da libido, após os resultados insatisfatórios obtidos com o tratamento de que trata o §3º, terá a sua pena reduzida em um terço.

§ 5º. O condenado reincidente em qualquer dos crimes referidos no caput deste artigo que já tiver se submetido, em cumprimento anterior de pena, ao tratamento de que trata o § 4º deste artigo, não se submeterá a ele novamente.

§ 6º. O tratamento químico hormonal de contenção da libido antecederá o livramento condicional em prazo necessário à produção de seus efeitos e continuará até a Comissão Técnica de Classificação demonstrar ao Ministério Público e ao juiz de execução que o tratamento não é mais necessário.

Portanto, destacam-se as seguintes diferenças: a) há uma especificação da idade da vítima (menor ou igual a quatorze anos), que não existia na redação original, que se limitava a mencionar genericamente o agente do crime como pedófilo (cuja definição e interpretação do CID, certamente, causaria discussão – e absolvições ou não-aplicação da pena – nos tribunais), ou seja, é norma penal em branco; b) no texto originário, a pena de castração química é obrigatória, sendo o agente pedófilo e tendo cometido um dos crimes nele listado, enquanto na proposta de emenda o tratamento é facultativo, e pode importar na redução da pena em um terço (tratamento químico hormonal) ou na extinção da punibilidade (intervenção cirúrgica de efeitos permanentes); c) a primeira redação não especifica o que seja castração química, enquanto a segunda prevê tanto esta (§ 1º) quanto a castração cirúrgica (§ 2º), diferenciando-as ainda quanto aos efeitos sobre a pena (redução e extinção, respectivamente).

Assim como os debates que ocorrem na Polônia, a mesma pergunta deve ser feita ao projeto de lei em tramitação no Brasil: a proposta de "castração química" viola – ou não – a Constituição? Ainda, essa mudança pode ser feita por meio de lei ordinária, ou é exigida Emenda Constitucional?

Relembra-se, de início, que, nos termos do art. 22, I, da Constituição, que a União tem competência privativa para legislar sobre direito penal. Assim, ainda que se admita o estabelecimento em lei, essa pena de castração química para crimes praticados por pedófilo somente pode ser estabelecida por meio de lei federal.

Ademais, a necessidade de inclusão da pena por meio de Emenda Constitucional importaria em (ainda que tacitamente) reconhecer que se trata de uma limitação a direito individual (por não poder ser estabelecida por lei infraconstitucional). Logo, essa emenda seria inconstitucional, tendo em vista que violaria uma cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV), a menos que a própria norma que tutele a garantia ou o direito individual preveja a possibilidade de limitação (norma de eficácia contida, na classificação de José Afonso da Silva).

Em busca da resposta à primeira questão, salienta-se que o art. 5º, XLVII da Constituição brasileira prevê que não pode haver penas cruéis. O Bill of Rights inglês de 1689 já afastava essa espécie de pena, ao dispor que "não devem ser exigidas fianças excessivas, nem impostas multas elevadas, nem infligidas penalidades cruéis ou incomuns" [02]. A primeira Constituição do Brasil, de 1824, também possuía dispositivo similar ao atual: "Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis" (art. 179, XIX).

No direito internacional, a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, tratado da ONU de 1984 internalizado no Brasil por meio do Decreto nº 40/1991, preceitua em seu artigo 16:

Cada Estado-parte se comprometerá a proibir, em qualquer território sob a sua jurisdição, outros atos que constituam tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes que não constituam tortura tal como definida no artigo 1, quando tais atos forem cometidos por funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Aplicar-se-ão, em particular, as obrigações mencionadas nos artigos 10, 11, 12 e 13, com a substituição das referências a outras formas de tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes [03].

A doutrina constitucional associa o conceito de penas cruéis à vedação da tortura e do tratamento desumano ou degradante, igualmente um direito individual garantido pela Constituição de 1988 (art. 5º, III), bem como à dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos republicanos (art. 1º, III). Para Alexandre de Moraes, "(...) dentro da noção de penas cruéis deve estar compreendido o conceito de tortura ou de tratamentos desumanos ou degradantes, que são, em seu significado jurídico, noções graduadas de uma mesma escala que, em todos os seus ramos, acarretam padecimentos físicos ou psíquicos ilícitos e infligidos de modo vexatório para quem os sofre" [04]. Como exemplos de penas cruéis, Uadi Lammêgo Bulos cita as de marcar o corpo do condenado e de amarrar os seus pés com barras de ferro, previstas nas Ordenações Filipinas [05].

Já a citada Convenção da ONU adota um conceito residual: a) a tortura constitui o ato de intencionalmente infligir dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais a uma pessoa, a fim de obter informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido (ou seja suspeita de ter praticado); de intimidar ou coagir pessoa por motivo baseado em discriminação; e quando qualquer um desses atos for praticado por um funcionário público (ou outra pessoa no exercício de função pública), ou com seu auxílio; por outro lado, não se considera tortura as dores ou sofrimentos decorrentes exclusivamente de sanções legítimas (artigo 1º); b) já as penas cruéis, desumanas ou degradantes são quaisquer atos que causem sofrimento, humilhem ou imponham esforços físicos ou morais desarrazoados ou excessivos à pessoa, não enquadráveis na definição de tortura, e praticados por funcionário público (ou pessoa no desempenho de função pública), ou com seu auxílio (artigo 16).

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Além disso, nos EUA questiona-se essa pena diante da contrariedade a diversos direitos, entre os quais estão o de recusar tratamento médico (no Brasil, os arts. 13/15 do Código Civil impõem restrições às intervenções médicas), o direito à privacidade (direito individual assegurado pelo art. 5º, X, de nossa Constituição), o devido processo legal (inciso LIV do art. 5º) e a imposição de penalidade dupla [06].

Afora isso, também podem ser elencadas como obstáculos à modificação legal o art. 5º, XLIX, da Constituição, que tutela o respeito à integridade física e moral dos presos, além do art. 38 do Código Penal e do art. 40 da Lei de Execução Penal, que também protegem essa garantia individual.

No Brasil, relembram-se opiniões já manifestadas no Jus Navigandi: a) a castração química é uma alternativa viável ao encarceramento, que não impede que o condenado volte a praticar crimes da mesma natureza [07]; b) pode ser adotada como um "direito" do condenado, ou seja, uma causa de redução de pena, de realização facultativa [08], conforme a citada proposta de emenda ao PL nº 552/2007; c) a incapacitação do ofensor viola direitos fundamentais, logo, é inconstitucional [09]; d) e essa pena pode contrariar o princípio da individualização da pena, por tratar igualmente pessoas com motivações e graus de reprovabilidade distintos [10].

Analisada a abrangência das definições, pergunta-se: a castração química pode ser considerada como uma pena cruel? Ou um tratamento desumano, ou degradante? Ou enquadra-se na exceção prevista na parte final do artigo 1º da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (que ressalva não ser tortura as dores ou sofrimentos decorrentes exclusivamente de sanções legítimas)? Diante de resposta positiva, devem ser proibidos no país os tratamentos licitamente realizados com os mesmos medicamentos (por exemplo, para câncer de próstata e depressão)? Ainda, mesmo que não seja imposta como pena, mas como um tratamento facultativo que possa importar na redução da pena ou na extinção da punibilidade, será uma norma constitucional?

Outras questões devem ser previamente definidas, na hipótese de aprovação do PL, tais como a responsabilidade pela aquisição dos medicamentos (o SUS fornecerá, ou o condenado deve comprá-los?) e a forma de acompanhamento do tratamento.

Tais questões deverão ser enfrentadas e debatidas no Congresso Nacional, e espera-se que efetivamente haja abertura para a discussão pública e um estudo aprofundado sobre a constitucionalidade – ou não – dessa pena, e que não seja mais uma lei aprovada às pressas após a exploração exaustiva e rumorosa de algum caso de abuso sexual pela imprensa.


Notas

  1. Disponível em: <http://www.sejm.gov.pl/prawo/konst/angielski/kon1.htm>. Acesso em 29 set. 2009.
  2. Disponível em: <http://www.constitution.org/eng/eng_bor.htm>. Acesso em 29 set. 2009.
  3. Essa Convenção possui ainda um Protocolo Facultativo, de 18/12/2002, internalizado no Brasil por meio do Decreto nº 6.085/2007, e possui a finalidade principal de criar um sistema de visitas regulares, por entidades nacionais e internacionais independentes, lugares onde pessoas são privadas de sua liberdade, com a intenção de prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.
  4. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 338.
  5. BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 225.
  6. Sobre o assunto: SPALDING, Larry Helm. Florida’s 1997 chemical castration law: a return to the dark ages. Disponível em: <http://www.law.fsu.edu/journals/lawreview/frames/252/spalfram.html>. Acesso em: 30 set. 2009.
  7. HEIDE, Márcio Pecego. Castração química para autores de crimes sexuais e o caso brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1400, 2 maio 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9823>. Acesso em: 30 set. 2009. O citado autor, em suas conclusões, lista argumentos contrários e favoráveis à pena.
  8. AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. O "direito" do condenado à castração química. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1593, 11 nov. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10613>. Acesso em: 30 set. 2009. Salienta-se que a alternativa proposta no artigo citado é anterior à emenda ao projeto de lei.
  9. SGARBOSSA, Luís Fernando; JENSEN, Geziela. Projeto de Lei SF nº 552/07 (castração química) e a (im)possibilidade de recepção do princípio da incapacitação do infrator no direito brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1566, 15 out. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10523>. Acesso em: 30 set. 2009.
  10. HEIDE, Márcio Pecego. Castração química para autores de crimes sexuais e o caso brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1400, 2 maio 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9823>. Acesso em: 30 set. 2009.
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Sobre o autor
Oscar Valente Cardoso

Professor, Doutor em Direito, Diretor Geral da Escola da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul, Coordenador do Comitê Gestor de Proteção de Dados do TRF da 4a Região, Palestrante, Autor de Livros e Artigos, e Juiz Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Oscar Valente. Castração química de pedófilos: Polônia e Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2284, 2 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13606. Acesso em: 28 mar. 2024.

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