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A proibição de excessos no direito material e processual penal

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1 A doutrina garantista de Ferrajoli

O garantismo penal, em sua acepção ampla, surgiu dentro de um contexto tradicional de arbitrariedades do Estado, com uma proposta de fazer os direitos individuais avançarem sobre os interesses estatais ilegítimos. A construção de sua doutrina foi efetivada no decorrer dos últimos séculos, a passos lentos.

O jurista italiano Luigi Ferrajoli, em sua obra intitulada Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal, que data de 1989, colheu os pensamentos esparsamente sedimentados sobre a matéria no curso da História. Assim, formulou esquema sistemático no sentido de estruturar uma teoria racional que pudesse fornecer suporte legitimador à ação estatal repressora, exigindo, para tanto, que esta se pautasse por estrita obediência à dignidade da pessoa humana e a outros fatores limitadores do ius puniendi.

Logo na introdução de sua obra, Ferrajoli [01] esclarece:

Este livro deseja contribuir com a reflexão sobre a crise de legitimidade que assola os hodiernos sistemas penais, e em particular o italiano, com respeito aos seus fundamentos filosóficos, políticos e jurídicos. Em grande parte, tais fundamentos foram construídos – com o nascimento do Estado moderno como um "Estado de direito" – pelo pensamento jurídico iluminista, que os identificou com uma série complexa de vínculos e de garantias estabelecidas para a tutela do cidadão contra o arbítrio punitivo. Ainda que incorporados a todas as constituições evoluídas, estes vínculos são largamente violados pelas leis ordinárias, e mais ainda pelas práticas nada liberais por elas alimentadas.

O modelo garantista de Ferrajoli, portanto, tem um viés eminentemente negativo (garantismo negativo), ou seja, tem o escopo de fornecer base teórica para um avanço dos direitos individuais sobre o poder estatal, limitando a atuação deste na seara penal; ou seja, funciona como instrumento hábil a barrar os excessos do Estado em face do cidadão.

O termo garantismo, nesse aspecto, ganha uma acepção de modelo normativo, de tal modo que busca influenciar na formulação da legislação penal, se considerarmos um aspecto restrito (visto que o garantismo pode ter alcance mais amplo, abarcando outras ramificações do Direito, pois possui índole constitucional, e os arbítrios estatais não se dão somente na esfera criminal).

Nesse passo afirma Alexandre da Maia, referindo-se ao garantismo [02]:

No aspecto jurídico, percebe-se um dado curioso: o de se criar um sistema de proteção aos direitos dos cidadãos que seria imposto ao Estado. Ou seja, o próprio Estado, que pela dogmática tradicional tem o poder pleno de criar o direito e todo o direito, sofre uma limitação garantista ao seu poder. Assim, mesmo com sua ‘potestade punitiva’, o Estado deve respeitar um elenco sistêmico de garantias que devem por ele ser efetivados. Este é o primeiro passo para a configuração de um verdadeiro Estado Constitucional de direito.

De fato, "o garantismo penal apresenta, segundo FERRAJOLI (2002, p. 683-766), três significados. O primeiro refere-se ao garantismo como um modelo normativo, o segundo como uma teoria jurídica crítica, cujo mote é repugnar a visão contemplativa (passiva) do juiz frente à norma, e o terceiro como uma filosofia política para a justificação externa da intervenção punitiva" [03].

Nesse andar, também afirma Alexandre Wunderlich [04]:

O Garantismo tem sido entendido como parâmetro de racionalidade, de justiça e de legitimidade da intervenção punitiva, apesar de se encontrar amplamente desatendido na prática. Podemos, no entanto, distinguir três acepções da palavra garantismo.

As acepções do garantismo permitem a elaboração de elementos para uma teoria geral do garantismo: (a) o caráter vinculado do poder público no Estado de Direito; (b) a divergência entre validade e vigência; (c) a distinção do ponto de vista externo (ético-político) do interno (jurídico) e a divergência entre justiça e validade.

A doutrina garantista, portanto, não busca unicamente influenciar na atividade legiferante; mas sim estabelecer limitações da atuação estatal em diversos planos (judicial, policial etc.), partindo do pressuposto de que nada valem leis garantistas se os agentes públicos não lhes dão cumprimento. Há, portanto, uma preocupação de Ferrajoli com a efetividade, demonstrando com isso que sua teoria tem a pretensão de não se limitar ao academicismo, mas sim revelar-se empiricamente viável.

E a realidade atual demonstra que o desiderato foi atingido, mesmo que parcialmente, dada a forte influência do garantismo na legislação, práticas administrativas e decisões judiciais hodiernas identificáveis nos Estados democráticos que absorveram os ensinamentos de Ferrajoli.

Anota Alexandre da Maia [05] que a teoria de Ferrajoli, apesar de sua densa formulação, carece de estabelecer um conceito material de direito fundamental, do qual depende toda sua estruturação teórica, considerando que o garantismo se sustenta na defesa dessa categoria de direito. Nesse aspecto, sob uma perspectiva formalista, o garantismo exige que a formulação de uma nova norma esteja em consonância com as preexistentes de hierarquia superior. A sua pretensão de manter a legitimidade do ordenamento jurídico não se limita, contudo, ao aspecto formal, pois exige, ainda, sob um enfoque material (substancial), que a norma esteja em consonância com os direitos fundamentais protegidos. Daí o mesmo autor [06] asseverar que:

A teoria do Prof. Ferrajoli centra-se, neste segundo plano de garantismo, em trazer ao espectro jurídico uma nova forma de observação do fenômeno, ao afirmar a existência de aspectos formais e substanciais no mundo jurídico, sendo o aspecto substancial, ao seu ver, algo novo e que deve ser observado na formação das constituições e respectivos ordenamentos jurídicos.

O aspecto formal do direito – diz Ferrajoli – está no procedimento prévio existente, que funciona como pressuposto de legitimidade do surgimento de uma nova norma estatal. Ou seja, uma norma só será válida e legítima se for composta de acordo com os procedimentos formais traçados previamente pelo ordenamento jurídico. Até então, a idéia de validade colocada pelo Prof. Ferrajoli traz muita similitude com a teoria pura do direito.

[…]

Mas Ferrajoli acrescenta um novo elemento ao conceito de validade. Para ele, uma norma será válida não apenas pelo seu enquadramento formal às normas do ordenamento jurídico que lhe são anteriores e configuram um pressuposto para a sua verificação.

A tal procedimento de validade, eminentemente formalista, acrescenta um dado que constitui exatamente o elemento substancial do universo jurídico. Neste sentido, a validade traz em si também elementos de conteúdo, materiais, como fundamento da norma. Esses elementos seriam os direitos fundamentais.

Destarte, no tocante à incidência do garantismo sobre a construção legislativa, o mesmo faz exigências não somente de cunho formal (obediência ao ordenamento jurídico preexistente), mas também de natureza material (consonância com os direitos fundamentais).

No tocante às normas infraconstitucionais, esses direitos fundamentais devem decorrer da interpretação da Constituição vigente.

Contudo, um grande problema surge se avaliarmos, sob o enfoque garantista, a construção constitucionalista de uma determinada nação, identificando na sua Carta Magna dispositivos que supostamente, na linha de raciocínio garantista, atentassem contra um direito fundamental transcendente; ou ainda, Constituições que permitissem a elaboração de normas de hierarquia inferior que violassem os postulados garantistas sedimentados por Ferrajoli. Nessa ordem de idéias, tem-se a aparência de que a instituição de um ordenamento jurídico garantista pressupõe a vontade política de formulação de uma Constituição de igual status, que agasalhe direitos fundamentais expressos e, ainda, permita se depreender outros implícitos. Solução nesse sentido, contudo, ainda não configura formulação teórica ideal, pois acaba retornando a uma noção formalista de direito fundamental, não conseguindo estabelecer um norteamento substancial, que é idealizado por Ferrajoli ao formular os seus axiomas, segundo se verá no momento oportuno.

Ressalte-se que a intenção de Ferrajoli com sua teoria garantista, consoante transparece nas premissas anteriores, foi propor uma formulação que pudesse servir de base para o próprio Estado de Direito, consoante observou Norberto Bobbio ao prefaciar a obra do mestre italiano [07]:

A aposta é alta: a elaboração de um sistema geral de garantismo ou, se preferir, a construção das vigas-mestras do Estado de direito que tem por fundamento e por escopo a tutela da liberdade do indivíduo contra as várias formas de exercício arbitrário do poder, particularmente odioso do direito penal.

Desse modo, a formulação garantista vai além de uma exigência de obediência à Carta Magna, mas também busca determinar os rumos que esta tomará no tocante à proteção dos direitos individuais fundamentais.

Assim, o garantismo ganha um aspecto não somente jurídico, pretendendo influenciar também nas motivações políticas de elevada ordem que levam à estruturação basilar do próprio Estado.


2 Os dez axiomas garantistas

A teoria garantista sustenta-se em dez axiomas [08] seqüenciais e lógicos (expressos em latim), a seguir elencados [09] com suas respectivas traduções [10]:

A1 Nulla poena sine crimine (não há pena sem crime) – corrresponde ao princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito;

A2 Nullum crimen sine lege (não há crime sem lei) - corresponde ao princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito;

A3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate (não há lei penal sem necessidade) – corresponde ao princípio da necessidade ou da economia do Direito Penal;

A4 Nulla necessitas sine injuria (não há necessidade de lei penal sem lesão) – corresponde ao princípio da lesividade ou da ofensividade do evento;

A5 Nulla injuria sine actione (não há lesão sem conduta) – corresponde ao princípio da materialidade ou da exterioridade da ação;

A6 Nulla actio sine culpa (não há conduta sem dolo e sem culpa) – corresponde ao princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal;

A7 Nulla culpa sine judicio (não há culpa sem o devido processo legal) - corresponde ao princípio da jurisdicionariedade, também no sentido lato ou no sentido estrito;

A8 Nullum judicium sine accusatione (não há processo sem acusação) – corresponde ao princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação;

A9 Nulla accusatio sine probatione (não há acusação sem prova que a fundamente) – corresponde ao princípio do ônus da prova ou da verificação;

A10 Nulla probatio sine defensione (não há prova sem ampla defesa) – corresponde ao princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade.

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Os axiomas enunciados se voltam a responder indagações e estabelecer garantias [11], conforme segue:

AXIOMAS

PERGUNTAS QUE PRENTENDEM RESPONDER

GARANTIAS QUE VISAM ESTABELECER

A1 Nulla poena sine crimine

Quando e como punir?

Relativas à pena

A2 Nullum crimen sine lege

A3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate

A4 Nulla necessitas sine injuria

Quando e como proibir?

Relativas ao delito

A5 Nulla injuria sine actione

A6 Nulla actio sine culpa

A7 Nulla culpa sine judicio

Quando e como julgar?

Relativas ao processo

A8 Nullum judicium sine accusatione

A9 Nulla accusatio sine probatione

A10 Nulla probatio sine defensione

Segundo o dicionário Aurélio [12], axioma consiste em uma "proposição que se admite como verdadeira porque dela se podem deduzir as proposições de uma teoria ou de um sistema lógico ou matemático". Pode-se dizer, portanto, que os axiomas expressam princípios fundamentais de uma teoria.

Os axiomas formulados por Ferrajoli, que estruturam o Sistema Garantista (SG), assim por ele denominado, apresentam-se como proposições deônticas, segundo alerta o próprio autor (FERRAJOLI, 2006, p. 90):

Os axiomas garantistas – formulados pelas implicações entre cada termo da série aqui convencionada e os termos posteriores – não expressam proposições assertivas, mas proposições prescritivas; não descrevem o que ocorre, mas prescrevem o que deva ocorrer; não enunciam as condições que um sistema penal efetivamente satisfaz, mas as que deva satisfazer em adesão aos seus princípios normativos internos e/ou a parâmetros de justificação externa. Trata-se, em outras palavras, de implicações deônticas, normativas ou de dever ser, cuja conjunção nos diversos sistemas, que aqui se tornarão axiomatizados, dará vida a modelos deônticos, normativos ou axiológicos.

Fica claro, pois, que o garantismo não se situa no âmbito do ser, mas do dever-ser, ou seja, idealiza um sistema jurídico-penal que, de acordo com as características de cada ordenamento jurídico, poderá ser absorvido em certa medida. Não trata, portanto, de analisar um sistema preexistente, mas sim de projetar um sistema ideal, onde o reconhecimento e respeito aos direitos fundamentais apareça como viga-mestra.

Nesse ponto, alerta Norberto Bobbio [13]:

O garantismo é um modelo ideal ao qual a realidade pode mais ou menos se aproximar. Como modelo representa uma meta que permanece tal mesmo quando não é alcançada, e não pode ser nunca, de todo, alcançada. Mas para constituir uma meta, o modelo deve ser definido em todos os aspectos. Somente se for bem definido poderá servir também de critério de valoração e de correção do direito existente.

Assim, os axiomas visualizados por Ferrajoli devem ser vistos como propostas de um novo Direito Penal (e Processual Penal; e quiçá de um Direito, em sentido amplo), mais centrado na dignidade da pessoa humana e em outros princípios que lhes são imanentes. Servem, mesmo que isoladamente, como modelos que podem ser adotados em certos níveis de intensidade, de tal modo que pode se visualizar que nunca haverá, concretamente, um sistema integralmente garantista, mas sim com proeminência de características garantistas, cujo nível dependerá de fatores condicionantes de cada realidade em que se inserir.

Os axiomas do SG não são deriváveis entre si, porém são ordenados sistematicamente por Ferrajoli (formando o Sistema Garantista – SG), segundo explica o próprio autor [14]:

Dos dez axiomas de nosso sistema SG – inderiváveis entre si e, não obstante, encadeados de maneira que cada um dos termos implicados implique por sua vez o sucessivo – derivam, mediante silogismos triviais, quarenta e cinco teoremas. […] Ao todo teremos cinquenta e seis teses, das quais dez primitivas e as demais derivadas, que conjuntamente configuram nosso modelo penal garantista e cognitivo.

Para melhor esclarecer o alcance de cada axioma, discorre-se a seguir sobre cada um deles, isoladamente considerados.

2.1 Nulla poena sine crimine (não há pena sem crime) – A1

Conforme já se mencionou, este axioma tem relação com o princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito.

A presente formulação insere-se no contexto da missão de responder à seguinte indagação: quando punir?

A resposta é, aparentemente, simples: somente quando houver crime.

Ferrajoli [15] faz relação desse axioma com o princípio da retributividade, por considerar que a pena, como conseqüência do crime, deve funcionar, em certa medida, como retribuição ao seu autor, o que, por óbvio, somente pode se dar post delictum, e nunca ante delictum, vedando-se, por esta linha, um Direito Penal do autor ou mesmo a antecipação da sanção.

Isso não significa, contudo, que o garantismo admita como principal função da pena a retributividade, mas sim que esta é mais uma das garantias que se insere no contexto do seu sistema matriz, posto que não há como aplicar sanções sem uma relação do fato com a conduta do autor a ser responsabilizado, concretamente considerada.

2.2. Nullum crimen sine lege (não há crime sem lei) – A2

Haverá crime somente se a lei dispuser nesse sentido. Nessa máxima evidencia-se o princípio da legalidade.

A legalidade exigida no garantismo é tanto sob sua acepção ampla quanto estrita [16]. A primeira (legalidade em sentido lato ou mera legalidade) tem um caráter exclusivamente formalista: exige que os pressupostos da punição sejam previamente estabelecidos por um ato legislativo, vinculando o julgador, que somente pode punir diante da existência de uma lei que assim preveja; a segunda acepção (legalidade estrita) ganha contornos substanciais, ao exigir que a norma incriminadora somente pode sancionar condutas que levem a resultados lesivos e também apenas os indivíduos que tiverem vinculação subjetiva com o fato, além de outras condicionantes. Desta sorte, a acepção estrita do princípio da legalidade dirige-se, em regra, ao legislador, que ao criar as leis deve observar se a mesma atende à garantias materiais condizentes com o Estado Democrático de Direito.

Na abordagem que faz do princípio da legalidade, Ferrajoli deixa claro que a sua teoria garantista não pretende fornecer subsídios somente para a formatação do Direito Penal, mas também para estruturar as próprias bases do Estado de direito contemporâneo.

Eis suas palavras [17]:

Estas duas versões do princípio de legalidade, na primeira das quais [legalidade em sentido lato] a lei figura como condicionante e, na segunda [legalidade estrita], como condicionada, no meu entender, não se referem só ao direito penal. Como veremos nos parágrafo 57.1, definem conjuntamente a complexa estrutura da legalidade no Estado de direito. Portanto, são também aplicáveis aos demais setores do ordenamento, nos quais igualmente podemos distinguir entre mera legalidade e estrita legalidade, colocando a primeira em relação com a legitimação jurídica formal subsequente à vigência das normas produzidas e a segunda em relação com a legitimação jurídica material que deriva dos vínculos que condicionam a validade das normas vigentes à tutela dos demais direitos fundamentais incorporados também às Constituições [...].

Está patente, portanto, que a fundamentação teórica do garantismo tem condições de inspirar não somente um Direito Penal mais justo, mas também servir para legitimar práticas estatais adstritas a outras disciplinas jurídicas (Direito Administrativo, Previdenciário, Ambiental etc.).

2.3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate (não há lei penal sem necessidade) – A3

Exterioriza-se a ideia, neste axioma, de que a lei somente deve estabelecer penas estritamente necessárias. Aborda Ferrajoli [18] esta questão como resposta à indagação: como punir?

A doutrina garantista defende, ainda, que as penas que se imponham como necessárias devem obedecer aos contornos do princípio da dignidade da pessoa humana. Quer dizer, não se pode admitir como necessárias penas que agridam a dignidade do condenado.

2.4 Nulla necessitas sine injuria (não há necessidade de lei penal sem lesão) – A4

Corresponde ao princípio da lesividade ou da ofensividade do evento.

Esclarece o professor Luiz Flávio Gomes [19] que: "Por força do princípio da ofensividade não se pode conceber a existência de qualquer crime sem ofensa ao bem jurídico (nullum crimen sine iniuria)". Defendendo, ainda, que tal princípio irradia conseqüências tanto no aspecto da política criminal (devendo incidir sobre a criação das leis) quanto no dogmático-interpretativo e de aplicação da lei penal.

Ferrajoli situa tal princípio essencialmente no plano da criação de leis, visto que correlaciona o mesmo com um dos axiomas entre aqueles que visam responder à pergunta "quando e como proibir?", dentro do contexto das garantias relativas ao delito. Situa a exigência de lesividade, juntamente com a indispensabilidade de necessidade como limitações do poder proibitivo do Estado, conforme segue [20]:

Disso deriva uma dupla limitação ao poder proibitivo do Estado. O primeiro limite vem ditado pelo princípio de necessidade ou de economia das proibições penais, expressado pelo axioma A3, nulla lex poenalis sine necessitate [...].

O segundo limite deriva, por assim impor a secularização do direito e sua separação da moral, da consideração utilitarista da "necessidade penal" como "tutela dos bens fundamentais" não garantizáveis de outra forma. E explicita-se no princípio de lesividade, que constitui o fundamento axiológico do primeiro dos três elementos substanciais ou constitutivos do delito: a natureza lesiva do resultado, isto é, dos efeitos que produz. A absoluta necessidade das leis penais, requerida pelo axioma A3, fica condicionada pela lesividade a terceiros dos fatos proibidos, segundo princípio recolhido no nosso axioma A4 […].

A lesividade, consoante se vê, é visualizável em um contexto de proteção aos bens jurídicos. Por essa linha de raciocínio, não se justifica a criminalização de condutas que não ofendam bens jurídicos penalmente relevantes. Por tal razão, Ferrajoli [21] posiciona-se veementemente contra a tipificação de crimes de perigo abstrato; aceitando, porém, a criminalização de condutas concretamente perigosas (apesar de não chegarem a provocar danos efetivos).

2.5 Nulla injuria sine actione (não há lesão sem conduta) – A5

Também está inserido, como o axioma anterior, na missão de responder à indagação: "quando e como proibir?". Busca responder, mas especificamente, à indagação: "quando proibir?" (e também "o quê proibir?"), assim como o axioma antecedente.

Tem correspondência com o princípio da materialidade. "De acordo com este princípio, nenhum dano, por mais grave que seja, pode-se estimar penalmente relevante, senão como efeito de uma ação" [22].

Se no axioma anterior define-se que não há crime sem a respectiva lesão a um bem jurídico, aqui se estabelece que a lesão incriminável deve decorrer de uma conduta (comportamento humano, portanto).

A presente abordagem relaciona-se à criação da lei penal; não diz respeito a um enfoque inerente à responsabilidade criminal diante de um determinado fato submetido ao Judiciário, mas sim concerne a uma análise do que pode a lei penal proibir. Não pode, por exemplo, o legislador dispor que configura infração penal o simples fato de pensar em ser terrorista.

A materialidade, nesse aspecto, funciona como pressuposto da lesividade, ambas exigíveis para a legitimidade de uma lei penal incriminadora.

2.6 Nulla actio sine culpa (não há conduta sem dolo e sem culpa) – A6

Corresponde ao princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal.

Explica Ferrajoli [23]:

A terceira condição material requerida pelo modelo garantista, como justificação do "quando" e do "que" proibir, é a da culpabilidade. [...] Por exigir dita condição, que corresponde ao chamado "elemento subjetivo" ou "psicológico" do delito, nenhum fato ou comportamento humano é valorado como ação se não é fruto de uma decisão; consequentemente, não pode ser castigado, nem sequer proibido, se não é intencional, isto é, realizado com consciência e vontade por uma pessoa capaz de compreender e de querer.

Dentro do sistema garantista, o axioma em evidência visa impedir que sejam criadas leis nas quais haja previsão de responsabilidade sem dolo nem culpa. Não é, por esse ângulo, legítima a admissão por via legislativa de responsabilidade objetiva na esfera penal.

2.7 Nulla culpa sine judicio (não há culpa sem o devido processo legal) – A7

Corresponde ao princípio da jurisdicionariedade.

Ingressa-se a partir daqui nos axiomas que visam responder à indagação: "quando e como julgar?", e que dizem respeito a garantias do processo.

A garantia de jurisdição foi dividida por Ferrajoli [24] em ampla (sentido lato) e estrita. Pelo primeiro (sentido lato), sinteticamente falando, exige-se que para haver culpa deve esta ser reconhecida em juízo; e, em sentido estrito, que, além da obrigatoriedade de ser reconhecida a culpa em juízo, deve existir acusação com provas e sujeita à refutação da defesa, sob pena de se considerar ilegítimo (inexistente) o juízo [25].

2.8 Nullum judicium sine accusatione (não há processo sem acusação) – A8

Este axioma identifica-se com o princípio acusatório.

O garantismo prenuncia que a jurisdição penal norteie-se pelo sistema acusatório, onde o juiz figura como sujeito passivo rigidamente separado da defesa e da acusação, incumbindo a esta a formulação da imputação e o ônus da prova, garantindo-se ao acusado contraditório público e oral, sendo a demanda decidida pelo juiz com base em sua livre convicção [26].

No sistema acusatório puro, ao reverso do que ocorre no inquisitório, não pode o juiz proceder de ofício (tanto no tocante ao início da ação penal quanto na produção da prova), ficando distanciado das partes do processo no tocante aos objetivos destas, dada sua função de decidir a demanda.

2.9 Nulla accusatio sine probatione (não há acusação sem prova que a fundamente) – A9

Este axioma é condizente com o princípio do ônus da prova ou da verificação.

Partindo do princípio da presunção de inocência, diz Ferrajoli que cabe à acusação produzir a prova que elimine a pressuposição de inocência do acusado, daí se inferir que o ônus probatório a ela incumbe. De outro modo, cabe esclarecer que, diante da formulação garantista (que se alinha ao sistema acusatório), a verdade perseguida é de cunho relativo e formal.

Nessa ordem de ideias, afirma Ferrajoli [27] que:

[…] a verdade perseguida pelo método acusatório, sendo concebida como relativa ou formal, é adquirida, como qualquer pesquisa empírica, através do procedimento por prova e erro. A principal garantia consecução é consequentemente confiada à máxima exposição das hipóteses acusatórias à falsificação pela defesa, isto é, ao livre desenvolvimento do conflito entre as duas partes do processo, portadoras de pontos de vista contrastantes exatamente porque titulares de interesses opostos. No conflito, ademais, o primeiro movimento compete à acusação. Sendo a inocência assistida pelo postulado de sua presunção até prova em contrário, é essa prova contrária que deve ser fornecida por quem a nega formulando a acusação. Daí o corolário do ônus acusatório da prova expresso pelo nosso axioma A9 nulla accusatio sine probatione.

Vê-se, com toda clareza, que o sistema garantista não admite a figura do juiz inquisitor. Daquele que, representando o Estado, assume a figura de acusador, mesmo que episodicamente.

2.10 Nulla probatio sine defensione (não há prova sem ampla defesa) – A10

Identifica-se com o princípio do contraditório ou da defesa.

Primeiramente, deve-se assentar que, para haver um processo garantista, é necessário que haja "paridade de armas" entre defesa e acusação, ou seja, que ambos possam acessar aos mesmos meios de produção de provas e recursais, além de outros inerentes ao andamento do processo.

De outro modo, como a presunção inicial na demanda é de inocência do acusado, e esta somente será afastada pela prova produzida no processo, privilegiando-se com isso o direito de liberdade do réu, sobressai a conclusão de que a este deve ser, de início, garantida uma defesa técnica, e que esta deve ter a possibilidade de contraditar todas as provas voltadas a elidir a presunção de inocência, e ainda, que possa fazer isso utilizando os mais amplos meios possíveis.

Na delimitação de sua doutrina garantista, Ferrajoli detalha [28] todos os aspectos sintetizados ao norte.

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Sobre o autor
Gecivaldo Vasconcelos Ferreira

Delegado de Polícia Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Gecivaldo Vasconcelos. A proibição de excessos no direito material e processual penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2263, 11 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13482. Acesso em: 16 abr. 2024.

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