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A exigência da exposição dos fatos na portaria instauradora de processo administrativo disciplinar e a garantia constitucional do contraditório.

Visão crítica

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O artigo enfrenta o problema da obrigatoriedade da exposição dos fatos articulados contra o servidor acusado já no ato de instauração de processo administrativo disciplinar.

Palavras-chave: Lei federal n. 8.112/1990. Processo administrativo disciplinar. Ato instaurador. Descrição das acusações. Obrigatoriedade?

Resumo: O artigo enfrenta o problema da obrigatoriedade da exposição dos fatos articulados contra o servidor acusado já no ato de instauração de processo administrativo disciplinar, seus motivos e os efeitos de seu descumprimento, à luz da jurisprudência brasileira e com uma visão crítica.


1. Introdução

Tema recorrente na esfera administrativa e judicial concerne à nulidade de processo administrativo disciplinar em que não se deu a descrição dos fatos, increpados contra o acusado, já na portaria de instauração do feito sancionador.


2. Exposição dos fatos e garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa

A obrigatoriedade da exposição dos fatos, no ato vestibular deflagrador do processo administrativo disciplinar, presta-se a homenagear a garantia constitucional de contraditório, haja vista que o servidor tem o direito de saber do que está sendo acusado e dos motivos pelos quais se instaurou um feito punitivo contra ele.

Sobre o processo administrativo disciplinar se refletem diversas garantias constitucionais individuais, como do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, CF 1988), das quais derivam os direitos de propor provas; de audição; de presença nos atos processuais; de refutar alegações e elementos fáticos e probatórios desfavoráveis; de ofertar as próprias razões sobre os fatos e tê-las consideradas; de explanação oral; de defesa técnica por advogado. Incidem, outrossim, o devido processo legal (art. 5º, LIV, CF 1988), com a observância de rito processual previamente conhecido e de respeito a prazos para o exercício da pretensão punitiva; o da inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI, CF 1988); o do juiz natural (art. 5º, LIII, CF 1988), conhecido entre os doutrinadores do direito administrativo como o do administrador competente; o da individualização da pena (art. 5º, XLVI, CF 1988), da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF 1988); o direito de petição (art. 5º, XXXIV, a, CF 1988), no que se inclui a faculdade de provocar os órgãos administrativos para rever decisões proferidas, com os recursos, pedidos de revisão e reconsideração; além dos princípios capitulados no art. 37, caput, da Constituição Federal, com direta aplicação ao processo administrativo, sempre de modo a conferir segurança ao servidor estável de que sua responsabilidade administrativa será objeto de apuração democrática, com sua participação e com a prerrogativa de fiscalizar a atividade apuratória e acusatória da Administração.

A Bíblia Sagrada já proclamava o imperativo da descrição clara dos fundamentos acusatórios para o exercício da defesa pelo acusado, em passagem neotestamentária quando o governador Festo, em face da invocação da garantia processual do apóstolo Paulo, como cidadão romano, de ser julgado perante o Imperador, averba: "Porque não me parece razoável remeter um preso, sem mencionar ao mesmo tempo as acusações que militam contra ele" (Atos 25.27).

Pressuposto da ampla defesa é a ciência do teor do comportamento ilícito atribuído ao acusado, com a finalidade de que ele possa eficazmente se valer dos meios necessários para repelir o comportamento faltoso que lhe é increpado, produzindo provas de sua inocência e, conseqüentemente, em favor da improcedência do libelo administrativo.

José Raimundo Gomes da Cruz [01] nota que será inadmissível falar em defesa ampla em processo no qual o réu desconheça os fatos, precisamente enunciados, que embasam a acusação. Não se tolera um sistema como o censurado por Kafka: "E o modo de exercer a justiça que aqui se tem exige que não somente se condene o inocente, mas que se faça, além disso, sem que este saiba por quê." [02]

É por isso que se exige a publicação de portaria inaugural do processo administrativo disciplinar e da sindicância, com a menção dos fatos imputados ao servidor, da mesma forma que se requer citação para pleno conhecimento da ação acusatória, motivo também de a indiciação tipificar a conduta do funcionário, definindo o comportamento irregular e seu respectivo enquadramento no estatuto disciplinar, para resposta do processado e mesmo eventual pedido de novas provas, se necessárias.

Pontua a esse respeito Luso Arnaldo Pedreira Simões

O indiciado precisa conhecer da res in jure vocata para estruturar sua defesa. Não basta ouvi-lo a respeito dos fatos inquinados de irregularidades. O conhecimento da acusação tem de ser prévio, sem surpresas ou armadilhas. E isto porque, afinal, uma possível sanção não o poderá alcançar pelo motivo de não ter sido formalmente acusado e em face do que não se pôde defender. [03]:

O Estado Democrático de Direito não se compadece com procedimentos como os descritos na obra O Processo, de Franz Kafka:

Os documentos do tribunal, sobretudo o auto de acusação, permaneciam inacessíveis ao acusado e à sua defesa. Por isso geralmente não se sabia, ou pelo menos não se sabia com precisão, contra o que a primeira petição precisava se dirigir. [04]

Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari afiançam que o primeiro requisito para o eficiente exercício do direito de defesa é saber do que se está sendo acusado, com a informação precisa de qual infração se lhe increpa e com todos os detalhes necessários. [05]

Marcelo Caetano, a seu turno, arrola entre os procedimentos implícitos ao direito de audiência do acusado a formulação clara e precisa de artigos de acusação e a notificação deles ao processado, com a concessão de prazo razoável para que seja elaborada defesa escrita [06], juízo que é encarecido por Romeu Felipe Bacellar Filho, o qual sustenta que o contraditório demanda citação adequada e oportuna para cientificar o acusado do motivo do processo administrativo disciplinar instaurado, viabilizando ao servidor o conhecimento das acusações a ele imputadas, da fundamentação legal e das provas apresentadas, antes do início da fase processual instrutória. [07]

Realmente, a exposição clara do comportamento transgressor atribuído ao acusado e respectivo enquadramento legal, quando da abertura do processo administrativo disciplinar, é requisito fundamental do exercício do direito de defesa, haja vista que, a partir do conhecimento inicial dos pontos de acusação, será possível ao servidor processado despender esforços, na fase instrutória, para carrear aos autos as provas que julgue pertinentes a refutar os fundamentos acusatórios, na medida em que, no procedimento da Lei n. 8.112/1990, a oportunidade de defesa escrita contra o teor da indiciação ocorre depois do final da instrução.


3. Visão jurisprudencial do problema

O Superior Tribunal de Justiça pontuou que não se verifica cerceamento de defesa se a portaria de instauração do processo disciplinar e o ato de citação informam, conquanto sucintamente, a infração cometida, nem ainda pelo fato de não se formalizar intimação específica para que o acusado requeira a produção de provas testemunhais, porque a legislação faculta o requerimento de meios probatórios ao processado. [08]

Há dois julgados recentes do Superior Tribunal de Justiça, conquanto isolados em face da jurisprudência dominante, que merecem transcrição:

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDORA PÚBLICA ESTADUAL. DEMISSÃO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. CITAÇÃO.

AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DAS ACUSAÇÕES FEITAS. NULIDADE. INTERROGATÓRIO DA INVESTIGADA. COMPROMISSO DE DIZER A VERDADE. PRERROGATIVA CONTRA AUTO-INCRIMINAÇÃO. ART. 5º, LXIII, DA CF/88. INFRINGÊNCIA. ANULAÇÃO DO PROCESSO QUE SE IMPÕE DESDE O ATO CITATÓRIO. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO. SEGURANÇA CONCEDIDA.

1. Por ocasião da citação inicial no processo administrativo disciplinar, não foram explicitadas as condutas ilícitas imputadas à servidora, tampouco indicados os preceitos legais eventualmente violados. A investigada, portanto, no momento em que foi cientificada da instauração do processo administrativo disciplinar, desconhecia as razões pelas quais estava sendo investigada, o que lhe impossibilitou o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa. Impõe-se, pois, a anulação do processo administrativo disciplinar a partir da citação. 5. Recurso ordinário provido. Segurança concedida, em ordem a anular o processo administrativo disciplinar desde a citação. [09]

"1. Em se tratando de procedimento sumário, marcado pela celeridade na sua instauração e conclusão (trinta dias prorrogáveis por mais quinze dias), determinou o Estatuto dos Servidores Públicos Federais (arts. 133, I, e 140, Lei nº 8.112/90) que, para a devida observância do princípio constitucional da ampla defesa, na portaria de instauração do processo disciplinar deve ser indicada a materialidade da transgressão com, no caso de abandono de cargo, a indicação do período de ausência do servidor superior a trinta dias". [10]

De todo modo, impende rememorar que a orientação jurisprudencial dominante do Superior Tribunal de Justiça prepondera no sentido de que não há que se decretar a nulidade do processo administrativo disciplinar por causa da ausência de descrição dos fatos no ato de instauração, porque a Corte entendeu que o rito da Lei n. 8.112/1990 apenas demandaria a formalidade no ato de indiciação, quando deverão ser especificados os fatos e o seu respectivo enquadramento legal, além das provas manejadas contra os indiciados, e não desde a portaria inaugural do feito disciplinar.

Julgou recentemente o Superior Tribunal de Justiça, conforme trecho da ementa do acórdão:

3. O Superior Tribunal de Justiça firmou compreensão segundo a qual não se exige a descrição minuciosa dos fatos na portaria de instauração do processo disciplinar. Tal exigência tem momento oportuno, qual seja, por ocasião do indiciamento do servidor. Segurança denegada, ressalvando-se, no entanto, as vias ordinárias. [11]

O mesmo juízo foi reiterado nos julgamentos do MS 12061, da 3ª Seção, em 16-2-2009, MS 8401/DF, também da 3ª Seção, em 22-4-2009, além de julgados mais antigos do colendo Superior Tribunal de Justiça. [12][13] O STJ reiterou esse juízo. [14][15][16][17] A Corte Superior preferiu o entendimento de que, apesar da deficiência da portaria inaugural, se o servidor teve conhecimento pleno das acusações articuladas contra ele no curso do processo administrativo disciplinar, em que respeitados rigorosamente os consectários do procedimento contraditório, não haveria que se falar em nulidade, em nome do princípio do prejuízo. [18]

O STJ tem flexibilizado ainda mais sua jurisprudência:

Desnecessário que a Portaria inaugural do procedimento administrativo descreva, em minúcias, a imputação feita ao servidor. A documentação que acompanhou o referido ato esclareceu a situação, sendo suficiente para que o servidor apresentasse sua defesa, não havendo qualquer prejuízo. Após a juntada da informação disciplinar, ainda que posteriormente ao oferecimento das alegações finais, o servidor teve pleno acesso aos autos, tanto que se manifestou sobre outros aspectos [19];

O Superior Tribunal de Justiça tem sido tolerante até no caso de alusão genérica aos fatos justificadores na portaria:

"Inocorrência de nulidade quanto à portaria de instauração do processo disciplinar, porque fez referências genéricas aos fatos imputados ao servidor, deixando de expô-los minuciosamente – exigência esta a ser observada apenas na fase de indiciamento, após a instrução." [20]

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4. Análise crítica da jurisprudência sobre a matéria

Desafia comentário à jurisprudência sobre a matéria.

O entendimento jurisprudencial pronunciado sobre a temática albergou princípio consagrado de direito processual quanto à decretação de nulidades, as quais somente são reconhecidas, em regra geral, se houve comprovado prejuízo para a defesa.

É precisamente isso que deve ser aquilatado caso a caso, a fim de se apurar se, in concreto, a atividade defensória restou de alguma forma prejudicada, inclusive quanto à propositura de provas e acompanhamento eficaz, devido à sonegação dos fatos e acusações que deveriam ser conhecidos desde logo pelo acusado.

Não procede afirmar, concessa venia, que somente no momento da indiciação é que deverá ser formalizada a acusação contra o servidor, com a descrição dos fatos e a tipificação legal pertinente, pois a medida deveria ser sempre articulada na portaria ou decreto de instauração, sobretudo quando se trata de servidores mais humildes ou sem assistência jurídica por advogado, visto que lhes falece o discernimento para participar satisfatoriamente da instrução e decidir quais meios probatórios seriam pertinentes para o desempenho eficaz da defesa, à míngua do conhecimento de quais denúncias de conduta irregular lhes são atribuídas pela Administração Pública, ainda mais quando se cuida de autos com centenas ou milhares de folhas, com dezenas de volumes, dos quais nem sequer se defere vista fora da repartição ao funcionário – às vezes se recusa a prerrogativa até ao advogado, a despeito do direito previsto no art. 7º, XV, da Lei Federal 8.906/94 (Estatuto da OAB), o qual, às vezes, tem que recorrer à impetração de mandado de segurança para assegurar sua prerrogativa profissional.

Já se acentuou que a abertura de processo administrativo disciplinar resulta de um juízo da Administração Pública quanto à ocorrência de fato certo, evidenciador do cometimento de uma violação aos dispositivos do estatuto de disciplina funcional, motivo por que as razões que presidiram a instauração do feito devem ser expostas na portaria ou decreto inaugural, a fim de que o servidor acusado possa, com a ciência das acusações, exercitar plenamente o seu direito de defesa.

Data venia, a construção de jurisprudência tolerante com os defeitos procedimentais e com a sonegação de motivos, no ato de instauração do processo punitivo, reflete uma afronta aos pressupostos teóricos do direito administrativo disciplinar, o que não concorre para o aperfeiçoamento desse sub-ramo jurídico nem para o devido rigor técnico e respeito aos direitos dos administrados pela Administração Pública, contrariando-se os mandamentos da Lei Geral de Processo Administrativo federal (L. 9.784/99) quanto à atuação conforme o Direito, à observância das formalidades essenciais e à adoção de formas para propiciar respeito aos direitos dos administrados (art. 2º, par. único, respectivamente incisos I, VIII e IX).

É nítido que o prejuízo à atividade defensória ocorre se os fatos e acusações não são expostos na portaria inicial, nem ao menos no ato de citação do acusado, pois não é razoável, em casos difíceis e complexos, com inúmeros volumes de autos, com vários acusados e investigações, compelir o servidor a tentar esquadrinhar os nebulosos motivos pelos quais é chamado a responder a processo punitivo, ou obrigar o funcionário a decifrar as implícitas acusações que pesariam contra ele e quais preceitos do código disciplinar funcional teriam sido supostamente violados por sua conduta.

Não obstante, pode-se admitir que o efetivo cerceamento de defesa decorrente da não-exposição dos fatos articulados será configurado no exame de cada caso concreto, consoante se perceba o prejuízo indiscutível para a atividade defensória, devido à falta de ciência das acusações e da impossibilidade de tempestiva e adequada ação e reação processual, necessária diante do teor do juízo acusatório.

Fato é que a decretação de nulidade de processo administrativo disciplinar, motivada por defeitos procedimentais, pode implicar mesmo a impunibilidade de servidores verdadeiramente transgressores, os quais, em virtude da anulação total do feito, podem ser favorecidos com a superveniência da prescrição do direito de punir estatal, a impedir o desenvolvimento de um novo processo, para corrigir os erros do anterior desfeito.

Daí que, para evitar quadros como esse, a jurisprudência tem sido tolerante com a falta de técnica e de correção das atividades processuais desenvolvidas no seio da Administração Pública. Mas a solução jurídica precisa não parece ser a melhor, e sim a premente imperatividade de formação e competência dos membros de comissões processantes e de autoridades administrativas, sob pena de se perpetuar a situação indesejável, sobretudo em face das garantias do devido processo legal, da defesa ampla e contraditório, de sede constitucional.

Tanto que parece despertar esse juízo em recente jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que assim se pronunciou:

12. Cumpre esclarecer que a sindicância é o procedimento a ser observado na aplicação da pena de suspensão de até 30 dias, não mencionando a Lei nº 8.112/90 o rito a ser seguido, nos termos dos artigos 145 e 146. Assim sendo, entendo que à sindicância devem ser aplicadas as regras atinentes ao procedimento descrito para o processo administrativo disciplinar, de forma a assegurar o direito ao contraditório e à ampla defesa, nos termos do art. 143 da citada Lei. Nessa linha de aplicação subsidiária, de acordo com abalizada doutrina, na instauração do processo administrativo disciplinar, a portaria inaugural deve indicar objetiva e suficientemente os fatos e atos a apurar e as infrações a serem punidas, dentre outras informações, de forma a possibilitar o contraditório e a ampla defesa inerentes ao procedimento. Desse modo, a Portaria inaugural nº 13/2002-PRH, não tendo declinado expressamente os atos ou fatos a serem apurados e nem indicado as infrações supostamente cometidas, padece de nulidade insanável, contaminando todos os atos posteriores, inclusive a Portaria nº 30/2002-PRH, que aplicou ao Impetrante a pena de suspensão por 30 dias. 3. De outra parte, ainda que se considerasse legal e subsistente a mencionada Portaria instauradora, o procedimento adotado também não obedeceu aos princípios do contraditório e ampla defesa, ínsitos a qualquer processo administrativo, o que também levaria à nulidade da aplicação da pena de suspensão veiculada pela Portaria nº 30/2002-PRH. [21]

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se assentou, com efeito, no sentido de que somente na indiciação é que deve ser formalizada a completa descrição dos fatos e o consentâneo enquadramento legal.

Pode-se entender, com fulcro no princípio do prejuízo como pressuposto para decretação de nulidades, que, se a defesa não restou comprometida nem cerceada em face da tardia exposição das acusações somente quando do ato indiciatório, não haveria ensejo para a anulação do processo.

Mas, do ponto de vista apriorístico, não se concebe que a atividade defensória se possa desenvolver plenamente, inclusive com a boa escolha dos meios probatórios necessários para comprovar a verdade, sob a ótica do acusado e da improcedência do libelo disciplinar articulado contra ele, se não são definidos os pontos da acusação desde a portaria ou do decreto de instauração processual, quando menos na citação.

Só após finda a instrução é que o acusado poderá conhecer as imputações e decidir quais provas poderá manejar para repelir a pretensão acusatória?!

Em realidade, parece que se trata de ranço autoritário do próprio regime do Estatuto Disciplinar do Funcionalismo federal revogado, em que a fase instrutória se consumava sem a participação e controle simultâneo do acusado, o qual somente comparecia aos autos para ofertar peça escrita de defesa após a indiciação, depois de exaurida a coleta de provas de forma unilateral pelo conselho instrutor (art. 222, caput, Lei Federal 1.711/1952), cabendo ao funcionário pedir a prorrogação do prazo para defesa, para diligências indispensáveis (art. 222, § 3º, L. 1.711/1952).

Caio Tácito, aliás, consigna que, nesse particular, o advento da Lei n. 8.112/1990 implementou o aperfeiçoamento do processo administrativo disciplinar contra servidores públicos, se comparado com a disciplina do Estatuto do Funcionalismo revogado (Lei Federal 1.711/52). [22]

A disciplina da Lei n. 8.112/1990, com efeito, alterou completamente esse rito do regime disciplinar do funcionalismo federal revogado, porque as irregularidades no serviço público serão apuradas mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa (art. 143, caput), além de que estatuído que, na fase de inquérito administrativo (de coleta de provas no processo disciplinar), obedecer-se-á ao princípio do contraditório, assegurada ao acusado ampla defesa, com a utilização dos meios e recursos admitidos em direito (art. 153).

Romeu Felipe Bacellar Filho pontifica, oportunamente, que "a instrução sem contraditório não tem validade processual [...] não há prova formada fora do contraditório [...] não se concebe uma prova sem a rigorosa fiscalização do adversário[...]." [23]

Ora, o juízo de que a exposição dos pontos de acusação e o respectivo enquadramento legal só devem ser explicitados quando da indiciação incorre em erro conceitual, visto que a investigação de irregularidades é papel reservado para a sindicância inquisitorial, instrumento legal criado para a apuração de fatos indicadores de desvios de conduta por parte de agentes públicos, a fim de configurar a autoria e a materialidade das prováveis transgressões funcionais sindicadas.

A abertura de processo administrativo disciplinar, ao contrário, já pressupõe a existência e a definição de uma falta administrativa e do respectivo autor, tanto que a portaria inicial instauradora do feito corresponde a uma acusação, assemelhando-se à denúncia no processo penal, de sorte que o servidor é chamado para vir defender-se de infrações já investigadas e determinadas, com vistas a que possa expor suas razões e produzir provas em seu proveito.

Por causa disso, é equivocado afirmar que a minuciação da conduta e o respectivo enquadramento legal somente têm lugar na indiciação, pois, se instalado o processo punitivo administrativo, já existem pontos de acusação, presentes fatos e provas do cometimento de infrações disciplinares. Se não os há, é preciso, então, instaurar sindicância investigativa prévia, para clarificar a autoria e a materialidade relativamente aos fatos apurados.

Na verdade, o funcionário é citado para tomar conhecimento de acusações já claramente articuladas na portaria inicial ou, quando menos, no mandado de citação, com o propósito de que o agente público, adrede acusado de certa conduta ab initio, exponha suas razões defensórias e requeira a produção de provas de sua inocência, ou da menor gravidade do seu comportamento, ante o libelo adrede formalizado.

É somente com a ciência das transgressões funcionais que lhe são atribuídas que o servidor processado poderá, de per si ou por intermédio do seu advogado ou defensor dativo designado, decidir quais meios probatórios serão úteis ou necessários para o desenvolvimento da defesa: se deve propor a oitiva de colegas de serviço, autoridades ou outras pessoas como testemunhas; se deve solicitar perícia, diligências in loco, inspeção de coisas ou pessoas, a localização de documentos, etc. Isso dentro do prazo ordinário para o exercício da atividade instrutória pela comissão processante.

Se, ao contrário, o servidor somente vem a tomar conhecimento da acusação ao término da instrução, poderá ocorrer que determinado elemento de prova desapareça (como no caso de vestígios do crime ou do fato), que testemunhas de defesa venham a falecer ou mudar de domicílio para outros Estados ou para o exterior (sabendo-se, pior, que a intimação para depoimento na via administrativa não tem força coercitiva), que documentos sejam deteriorados ou extraviados (em alguns órgãos, ocorre a incineração de papéis do arquivo administrativo após 90 dias), que objetos sejam inutilizados, enfim, que os meios materiais para a atividade defensória simplesmente sumam e prejudiquem o funcionário, o qual, na indiciação, às vezes consumada mais de cem dias após a instauração do processo administrativo disciplinar, quando não ainda mais tarde, vê contra si a impossibilidade material de comprovar sua inocência, tudo porque a Administração Pública não observou a regra fundamental de que as acusações sejam formalizadas desde a peça de abertura do feito apenador.

Excepciona-se a possibilidade, eventualmente, de novos fatos surgirem na fase processual de inquérito administrativo, quando será possível, sim, reeditando-se ou aditando-se o ato administrativo de instauração do feito punitivo, articular novos pontos de acusação com seu respectivo enquadramento legal, com o escopo de que o acusado possa manejar as vias defensórias cabíveis, inclusive a proposição de provas para elidir os fundamentos da acusação, juntando documentos e pareceres, requerendo diligências e perícias, dentre outras medidas (arts. 3º, III, e 38, caput, todos da Lei Geral de Processo Administrativo da União – Lei federal 9.784/99).

Por isso que a idéia de que a acusação somente deverá ser formalizada na indiciação termina por implicar forma de cerceamento da defesa, pois que a Administração assumirá o leme da instrução processual e escolherá as provas que pretende produzir para comprovar pontos de acusação secretos ou ainda ocultos, de modo que o acusado, apesar de formalmente participar do regime contraditorial de coleta probatória, acaba intervindo nos atos processuais sem poder precisar a medida e alcance da importância da prova perante os fatos correspondentes à acusação, de modo que, só quando da lavratura da peça indiciatória, ficarão explicitados os motivos da abertura do feito punitivo, quando o prazo para defesa é limitado a dez dias e, quando muito, poderá haver a prorrogação por mais vinte dias desse tempo, para a realização de diligências apenas indispensáveis (art. 161, § 3º, Lei n. 8.112/1990), quando, eventualmente, rememore-se, elementos decisivos para a comprovação da inocência ou menor gravidade da conduta imputada já poderão ter desaparecido (objetos, documentos, testemunhas, vestígios materiais, etc.), tornando-se prejudicada e cerceada a defesa.

Exatamente por isso que Egon Bockman Moreira comenta que o administrado deve ter plena ciência do fim a que se destina a relação processual, motivo por que condena o processo instaurado para a apuração de fatos e por imputações imprecisas: "Não será válido o processo que se instale aleatoriamente e culmine em uma aplicação de sanção disciplinar." [24]

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Sobre o autor
Antonio Carlos Alencar Carvalho

Procurador do Distrito Federal. Especialista em Direito Público e Advocacia Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. A exigência da exposição dos fatos na portaria instauradora de processo administrativo disciplinar e a garantia constitucional do contraditório.: Visão crítica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2238, 17 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13335. Acesso em: 29 mar. 2024.

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