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Direito e transexualidade.

A perspectiva jurídica do conceito

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INTRODUÇÃO

Da necessidade de afirmação da individualidade surge a idéia de marca sexual, percebida por Laquer [01] quando relata a superação da noção de sexo único no seu "Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud". Afirmando a individualidade como decorrência da sexualidade, destaca-se a noção do nome [02], que como regra é aposto a partir do gênero [03].

As reflexões a serem feitas no texto partem da perspectiva do nome, porque é neste, teleologicamente, que o "direito se dirá" [04]. Por isto mesmo, pouco adiantaria ser irritado [05] o sistema, se, em última análise, será o direito quem diz o que este significa. A irritação é importante para o direito ser repensado, mas não se pode perder de vista que a realidade só será do direito a partir do momento que este assim a reconhecer.

As idéias acerca de gênero e nome precisam ser enfrentadas de forma clara, já que são meios nos quais vemos o exercício do caráter, nas diversas acepções que o termo pode assumir. Por ser assim, uma questão se faz premente: qual o "conceito de sexo" [06] se deve adotar? O biológico, o gonadal ou o psicológico? Sabendo-se que há vários meios de se observar o tema, porque restringir a reflexão ao conceito biológico?

O sexo biológico, aferido por ocasião do nascimento, é o ponto de partida para a aposição do nome e se confunde com gênero em uma visão primária. Ocorre, porém, que, diante das variantes sexuais (intersexualidade, homossexualidade, travestismo e, sobretudo, transexualidade) a referência biológica não se faz bastante. Nos casos de transexualidade, por exemplo, há divergência entre a referência genético-cromossômica e auto-imagem. Neste caso, como o nome tem a função de carregar os atributos da pessoa – e nisto se inclui imagem pública e auto-imagem –, mostra-se necessário ampliar os horizontes de entendimento do tema. Uma perspectiva unidimensional, definitivamente, importará negação de direitos.

Entender a problemática do nome nos dias de hoje, diante do que se expôs, implica em se superar o formalismo registral em nome dos Direitos da Personalidade. O nome é Direito da Personalidade e não pode ser negado a ninguém. A um só tempo, não importa apenas ter um nome, uma vez que este precisa estar em consonância com o que aspira seu portador. Tendo-se assente que o sistema jurídico deve proteger a todos os cidadãos – já que Pessoas Humanas, e a dignidade destes é fundamento da República Federativa do Brasil –, a relevância do tema se faz presente.

A discussão sobre transexualidade, ainda hoje, é marcada por um discurso determinista e essencialista [07], em que tem lugar apenas o "transexual verdadeiro" [08], construído pelo saber médico, e, nesta medida, encampado pelo Direito. É de se ter, todavia, que a noção de verdadeira transexualidade precisa ceder em nome das conquistas da antropologia. Do contrário o que se verá no direito (como, aliás, se tem visto), é uma repetição do discurso legitimante. A repetição do único discurso capaz de demover do apriorismo os julgadores, que em muitos casos discursam a partir da referência dogmática.

Pensar em transexual verdadeiro é importante porque nos faz recobrar a mítica da heterossexualidade. O transexual não teria, nesta perspectiva, nada que o "desabonasse". Não é um promíscuo, mas uma pessoa que nasceu em corpo errado. Não é alguém que faz do exercício da sexualidade algo "pecaminoso", mas uma pessoa que busca realizar sua "alma". A cirurgia, então, tem como objetivo a implementação da masculinidade ou feminilidade interna. Quer dizer, desta forma, que apenas as pessoas que se sentem em um corpo trocado podem se submeter à cirurgia de transgenitalização e, a partir desta, iniciar um procedimento de comunicação com o direito para que este reconheça a realidade, autorizando, em um segundo momento, a mudança do Registro Civil para que passe a constar a adequação.


DIGNIDADE HUMANA E TRANSEXUALIDADE

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana possuiu suas bases no pensamento clássico e no ideário cristão. No pensamento cristão prevalece a noção de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus [09], decorrendo da criação sua condição de digno. No pensamento clássico [11] mostra-se presente a idéia de natureza individual [12] racional, ainda que esta racionalidade seja potencial.

Independente do referencial de que se parta, resta assente que a Dignidade da Pessoa Humana deve ser fundamento para a convivência social. Ser racional e ter autonomia estão na base da estrutura humana, ressalvando-se as hipóteses de privações. Por ser assim, sabendo-se que o Ser Humano é digno e autônomo, deve se conferir a este a prerrogativa de ser e estar no mundo sem sofrer qualquer discriminação. A realidade jus filosófica deve se estruturar para que o Ser Humano se realize em sua plenitude.

Definir Pessoa Humana é complexo. É certo que podemos contar com numerosas reflexões sobre o tema. Não há meios, contudo, para se aferir um conceito definitivo sobre o assunto. Algumas noções, entretanto, são convergentes: a) a felicidade é o fim do Ser Humano; b) o direito surge do homem e para o homem; e, c) a dignidade está fora do contexto do que se mensura monetariamente, sendo parcela essencial dos Direitos da Personalidade. Por estar no núcleo destes direitos, deve ser preservada e respeitada no que alude fundamentalmente: integridade física e psíquica.

Ao tratar da transexualidade, é preciso se enfrentar, necessariamente, o conceito de Dignidade da Pessoa Humana. Diz-se isto em razão de a pessoa transexual ver sua felicidade associada a uma configuração diferente da que possui. É de se considerar, assim, que, conquanto não se possa resolver a problemática na lógica do Direito Positivo – onde a resposta é oferecida a priori pelo sistema –, é um fato que não pode ser ignorado, sob pena de o direito se tornar segregador. Ignorar demandas desta ordem implicaria na negação da realidade psicofísica, fato que o regime da Dignidade da Pessoa Humana repugna por representar afronta a seu núcleo fundamental.

O direito é disciplina autônoma e esta autonomia lhe confere força singular. Implica dizer, portanto, que é o direito quem tem o monopólio de dizer o que lhe interessa, na direção do que propõe Pierre Bourdieu [13]. Esta idéia, de algum modo também presente na Teoria Sistêmica de Luhmann [14], deve ser vista no sentido de que autonomia não pode significar para a disciplina a prerrogativa de ser arrogante e desalinhada da ordem social. Sendo assim, uma vez irritado o sistema, no dizer de Luhmann, ou havendo choques entre os campos de poder, na visão de Bourdieu, a matéria traria para si transformações, de algum modo assimiladas.

A questão da assimilação dos reclamos externos se processa em Luhmann e em Bourdieu de maneira diferente. Em Bordieu os choques entre os campos de poder não aduzem para uma assimilação pacífica, pois o direito seria, antes de tudo, instrumento de manutenção do status quo.

Pelo que se aponta, a questão da transexualidade não se resolve de forma definitiva. A princípio se negava qualquer possibilidade de mudança. Aos poucos se passou a admitir mudança de nome, mas mantendo o sexo aferido por ocasião do nascimento. Esta mutação caminhou para o momento atual, onde temos visto decisões judiciais das mais diversas. Algumas admitem mudança de nome e de sexo. Outras insistem na negativa da mudança.

Na quadra descrita, é de se destacar que, mesmo nas decisões que admitem a possibilidade de mudança, é comum a alusão a ressalvas, facilmente entendidas na perspectiva de Bourdieu. Tais ressalvas [15] estão estruturadas na possibilidade de o direito dizer o que é direito, a partir da qual a autonomia da disciplina se torna cada vez mais forte.

Para elucidar a proposição anterior, é de se entender o Projeto de Lei n. 6.655-B de 2006, cuja redação final foi apresentada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania em 13 de setembro de 2007. Aprovado pela comissão, o projeto traz nova redação para o artigo 58 da Lei de Registros Públicos, merecendo destaque o parágrafo único.

A partir da redação do projetado parágrafo único deverá constar imperativamente a situação de transexualidade no Registro Público. Neste ponto, de tudo o que se diz sobre dignidade, direitos da personalidade e intimidade, seria razoável tal averbação? Não estaria sendo subvertida a lógica ocidental percebida por Laquer [16] com a superação da doutrina do sexo único?

Uma saída deve ser oferecida para que o direito (agregador, por definição) não segregue quando a realidade social não puder se adequar à "fórmula lapidar". O ideal positivista pretendia descrever o movimento social de forma apriorística. Esta pretensão não se mostrou realizável. Assim, por não ser realizável, e por não poder ser o direito elemento de exclusão, já que impregnado pela dignidade, este deve se voltar para a realização do "Eu no Mundo", expressão que nos parece definir a necessidade de integridade psicofísica, fundamental para que a pessoa seja plena. Uma integração que não pode ser vista como meio de exclusão ou de criação de um novo tipo de identificação sexual.


DIREITO E TRANSEXUALIDADE: A PERSPECTIVA JURÍDICA DO CONCEITO

Em matéria de transexualidade, mesmo que não se parta da perspectiva essencialista, é de se ter que a adequação física é, em muitos casos, reclamada pelo transexual. Trata-se de uma demanda que está na ordem da realidade e que, portanto, não pode ser ignorada pelo direito. Ignorar significa sectarizar um determinado grupamento social e isto não se mostra alinhado com a ordem constitucional vivenciada.

Transexualidade, definida a partir de uma perspectiva multidisciplinar, é percebida pelo direito de forma acanhada. Desta forma, consoante a determinação da Resolução n. 1.652 [17] de 6 de novembro de 2002 do Conselho Federal de Medicina, que aponta para a necessidade da composição de uma equipe múltipla de profissionais de saúde – como psicólogos e assistentes sociais – para o estudo do caso, é o direito quem dirá o que lhe importa. Ao direito interessará algumas questões, questões estas determinadas pelo seu poder de nominação.

O poder de nominação do direito é grande. O tema é visto, por isto mesmo, sempre em perspectivas estreitas, sendo definido como "divergência entre o fenótipo e genótipo" [18]. Seria a pessoa transexual, nesta visão, apenas a que ostentasse convicção inderrogável de pertença ao sexo que não o cromossômico.

A partir da idéia de divergência, como se apontou anteriormente, o direito tem se portado. Transexual, então, é quem possui e reforça com a equipe multidisciplinar esta cisão. Sem a cisão, que a antropologia chama de essencialista, não há que se falar em transexualidade. Por isto mesmo Berenice Bento rechaça a mantença deste discurso, que, segundo ela, passou a ser auto-referido, criando um transexual verdadeiro, que de verdadeiro tem pouco. Na verdade, sabendo os transexuais que apenas este discurso "cola", professam-no com o objetivo de não serem ignorados pelo direito e até mesmo pela medicina.

Transexualidade pode ser vista a partir de variados matizes. Aqui, porém, uma vez que o objetivo e dizer como o direito percebe a questão, deter-nos-emos à perspectiva do direito, a partir da doutrina.

Na doutrina brasileira sobre transexualidade encontramos na lição de Aracy Klabin que haveria dois tipos de transexual. O primário "compreende aqueles pacientes cujo problema de transformação do sexo é precoce, impulsivo, insistente e imperativo, sem ter desvio significativo, tanto para o transvestismo quanto para o homossexualismo. É chamado, também de esquizossexualismo ou metamorfose sexual paranóica" [19]. O secundário engloba "os pacientes que gravitam pelo transexualismo somente para manter períodos de atividades homossexuais ou de transvestismo (são primeiro homossexuais ou travestis). O impulso sexual é flutuante e temporário, motivo pelo qual podemos dividir o transexualismo secundário em transexualismo do homossexual e do travesti." [20]

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É interessante se destacar o poder de nominação do direito, percebido claramente na obra de Bourdieu. Desta forma só interessaria ao direito o transexual primário, que de fato está no "corpo errado". A "outra" modalidade teria a ver apenas com o exercício "(des)viado" da sexualidade, sendo indiferente para o direito.

As questões suscitadas têm, indubitavelmente, reflexos na vida civil. Têm reflexos porque se o direito as percebe, este precisa dar conta da assimilação. Desta forma, sendo o transexual "nominado" primário, este poderá contar com a cirurgia e, assim, assumiria sua "alma". Uma alma que se realizaria com a troca do nome e do sexo aposto no registro de nascimento.

É de se dizer que as questões registrais são marcadas pela formalidade. Ainda assim, não podemos perder de vista que não mais podem ser encaradas como no século XIX, quando se "positivou" as formalidades sobre o tema. Nesta época a vivência da distinção genitálica mostrara-se suficiente para atender à necessidade. Hoje a realidade é plural. Nada obstante a doutrina brasileira ainda tem caminhado [21] de forma muito semelhante ao que se viu há dois séculos.

No Brasil não existe legislação especifica sobre o transexualidade. Na área médica há a regulamentação do Conselho Federal de Medicina sobre a cirurgia de transgenitalização, atualmente pautada pela Resolução n. 1.652 [22], de 6 de novembro de 2002.

Esta resolução divulga as diretrizes para que se autorize aos médicos a realização do tratamento cirúrgico de transexuais, que deve ser feito segundo normas internacionalmente reconhecidas, nas quais se incluem pelo menos dois anos de acompanhamento terapêutico por equipe multidisciplinar. A cirurgia só é autorizada caso o diagnóstico de transexualidade se confirme. Um diagnóstico que deve apontar no sentido da transexualidade primária.

Na esfera jurídica houve o projeto de lei n. 70, B, de autoria do Deputado Federal José Coimbra. A partir deste projeto se incluiria um parágrafo no artigo 129 [23] do Código Penal e se atribuiria nova redação ao artigo 58 [24] da Lei de Registros Públicos. Este projeto não foi aprovado, tendo sido substituído pelo projeto de n. 6.655-B, cuja redação final foi apresentada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania em 13 de setembro de 2007.

Conquanto não tenha se tornado lei, parece-nos importante elucidar algumas questões decorrentes do projeto 70, B, no que apontava essencialmente: modificar a Lei de Registros e o Código Penal. A modificação do Código Penal objetivava a possibilitar a realização da cirurgia sem que esta pudesse ser entendida por lesão corporal. Em relação à Lei de Registros haveria modificação no artigo 58, que trata das questões em que a definitividade do prenome pode ser mitigada.

É bem verdade que a convicção social atual não tem apontado no sentido de se a compreender como lesão corporal a cirurgia de transgenitalização, muito embora a literalidade do artigo 129 aponte neste sentido. Parece-nos ter havido superação social da regra, sobretudo depois da promulgação do Código Civil, especialmente seu artigo 13, onde se lê que: "salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes." Portanto, por mais autônoma que seja a disciplina jurídica, esta reconhece que outras áreas podem lhe afetar. Assim, havendo exigência médica, não há que se falar em lesão corporal, como ocorreu com o medico Roberto Farina [25] da década de 1970.

À temática que estamos a desenvolver interessa, com relevo, as referências do artigo 13 do Código Civil, que ao tratar dos Direitos da Personalidade, impede a disposição de parte do corpo. O artigo sob exame, marcado por um discurso médico legitimante, aponta que, havendo exigência, não se discute a segunda parte do comando legal.

A associação do artigo colacionado com a transexualidade é clara. Exatamente por isto entendeu o corpo de juristas participantes da I Jornada do Conselho da Justiça Federal que a idéia de bem-estar psíquico deve ser trazida à discussão. Sendo assim, não apenas integridade física interessa ao tema. É preciso se ter integridade psíquica, sobretudo porque é na psique que se realiza a pessoa, e não na configuração dos órgãos genitais.

Voltando à discussão do projeto 70, B, tinha-se em seu bojo a alteração do artigo 58 da Lei de Registros. Uma alteração, em nosso sentir, sectarista, já que traria um terceiro parágrafo a partir do qual a condição de transexual seria aposta nos documentos da pessoa.

Certamente este parágrafo terceiro trazia em si mácula de inconstitucionalidade, uma vez que ia de encontro ao direito à intimidade, expondo o transexual ao ridículo. Por isto mesmo houve manifestação da doutrina no sentido de que esta exposição seria discriminatória:

"tal espécie de obrigação é constrangedora, discriminatória, constituindo-se em um grave atentado contra o Direito à identidade sexual e contra a dignidade de todo o ser humano, não resolvendo, mas agravando o problema de identidade sexual que sofrem todos os transexuais." [26]

Em razão do disposto no projetado parágrafo terceiro, manifestou-se a Comissão de Constituição e Justiça e de Redação de forma contrária ao seu conteúdo, entendendo que este violaria o teor do artigo 5º, X da Constituição da República Federativa do Brasil.

A comissão em comento, ao rechaçar o disposto no parágrafo terceiro, propôs nova redação, dizendo que, "no caso do parágrafo anterior, deverá ser averbado no assento de nascimento o novo prenome, bem como o sexo, lavrando-se novo registro". Desta forma o registro passaria a conter o novo nome e sexo do transexual operado, mas apenas este. No seguimento, a fim de evitar entendimentos que perpetrassem o preconceito, apresentou emenda aditiva com a qual se acresceria um parágrafo quarto: "é vedada a expedição de certidão, salvo a pedido do interessado ou mediante determinação judicial". Foram retiradas as determinações de averbação em todos os documentos, mas manteve-se a determinação de aposição da condição de transexual no registro.

Embora comentários tenham sido aduzidos acerca do projeto 70, B, é certo que este não foi tornado lei. Nada obstante, é de se ter que o novo projeto (6.655-B de 2006) pouco avançou na discussão. Conquanto aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania em 13 de setembro passado, manteve a necessidade de alusão à condição de transexual. Não mais em todos os documentos, como queria o anterior, mas a aposição no Registro de Nascimento foi mantida.

A menção à condição de transexual, determinada pelo direito, aponta em uma só direção. Em última análise é o direito quem diz o que é direito. Sabe-se que a lógica do Estado deve ser a proteção da pessoa. Sabe-se que esta averbação contraria prerrogativas que estão no núcleo dos Direitos da Personalidade. Ainda assim, como é o direito quem diz o que lhe interessa, este tem a possibilidade de determinar esta averbação. Um exercício do Poder de Império.

É evidente que aos ouvidos de qualquer pessoa os prenomes Roberto, Adão e Carlos evocam alguém com atributos masculinos. A não-correspondência desta expectativa é, por assim dizer, no mínimo chocante, e, por isto mesmo, capaz de provocar risos e chacotas. Não-obstante, partindo-se da lógica de que é o direito quem diz direito, pode um juiz entender de forma diferente. Ainda que não deva, "pode" o direito impor a alguém sexo jurídico de um gênero quando faticamente se tenha assumido de outro. Na prática uma punição que nada contribui para a preservação da ordem social.

Vendo as perspectivas tracejadas, uma questão parece surgir: qual o conceito consagrado pela Constituição? Respostas múltiplas podem ser ofertadas, mas não nos parece poder se subverter o disposto no artigo 226 da Carta Republicana. É claro que o direito pode dizer direito, mas se vivemos num Estado Democrático, espera-se que qualquer fala seja proferida a partir da Constituição. Desta forma, como esta veda qualquer forma de preconceito (já que consagra a Dignidade da Pessoa Humana), garante intimidade e reconhece apenas homem e mulher, não parece poder o direito – como está parecendo poder – criar um terceiro gênero. Uma espécie nova que em nada contribui para o regime dos Direitos da Personalidade, especialmente para a realização do eu no mundo.

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Sobre o autor
Alessandro Marques de Siqueira

Mestrando em Direito Constitucional pela UNESA. Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Professor convidado da Pós-Graduação na Universidade Cândido Mendes em parceria com a Escola Superior de Advocacia da OAB/RJ na cidade de Petrópolis. Associado ao CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Alessandro Marques. Direito e transexualidade.: A perspectiva jurídica do conceito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2171, 11 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12959. Acesso em: 29 mar. 2024.

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