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O devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa no Brasil e na obra literária "O Processo", de Franz Kafka

03/05/2009 às 00:00
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Resumo: O presente trabalho cuidou de tratar dos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, sua aplicação prática no Brasil e como esses princípios são concebidos no romance "O Processo", de Franz Kafka. O texto pretende analisar a questão do acesso à justiça, seus obstáculos e os caminhos para a sua efetividade.

Palavras-chave: Devido processo legal; Acesso à justiça

SUMÁRIO:1 INTRODUÇÃO. 2 O DEVIDO PROCESSO LEGAL, A AMPLA DEFESA E O CONTRADITÓRIO. 3 ACESSO À JUSTIÇA. 4 O PROCESSO EM KAFKA E O ACESSO À JUSTIÇA. 5 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS


1 INTRODUÇÃO

O texto a seguir pretende constituir uma análise acerca dos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa no Brasil, comparando-os com a situação vivenciada pelo personagem Joseph K., do romance "O Processo", de Franz Kafka. Pretende-se ainda, estabelecer um paralelo entre a forma de acesso à justiça na realidade brasileira e nos tribunais apresentados no romance de Kafka.

A importância desse estudo consiste na necessidade de avaliar como ocorre o acesso à justiça e ao devido processo legal no Brasil e em analisar as semelhanças com o modelo de justiça apresentado no romance "O Processo".

Inicialmente, serão apresentados conceitos dos princípios supra-citados. Logo após, o conceito de acesso à justiça, suas dificuldades e propostas de efetivação, concluindo com a análise de alguns pontos interessantes do romance "O Processo", fazendo-se um paralelo com os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório e do acesso à justiça.


2 O DEVIDO PROCESSO LEGAL, A AMPLA DEFESA E O CONTRADITÓRIO

Os princípios gerais do direito processual são preceitos fundamentais que dão forma e caráter aos sistemas processuais. Alguns desses princípios são comuns a todos os sistemas, enquanto outros vigem somente em determinados ordenamentos. São embasados nos princípios constitucionais e podem ser classificados, segundo Gomes Canotilho e Jorge Miranda (apud Cintra, Grinover e Dinamarco, 2008, p. 57-58), em:

a) estruturantes, assim considerados aqueles consistentes nas idéias diretivas básicas do processo, de índole constitucional (juiz natural, imparcialidade, igualdade, contraditório, publicidade, processo em tempo razoável etc.); b) fundamentais, que seriam aqueles mesmos princípios, quando especificados e aplicados pelos estatutos processuais, em suas particularidades; c) instrumentais, os que servem como garantia do atingimento dos princípios fundamentais, como são o princípio da demanda, o do impulso oficial, o da oralidade, o da persuasão racional do juiz etc.

O princípio do devido processo legal está previsto no artigo 5º inciso LIV, o do contraditório e o da ampla defesa constam do inciso LV do mesmo artigo, todos na Constituição Federal de 1988. O devido processo legal também foi lembrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu artigo XI nº 1, garantindo que:

"Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa".

O indivíduo que se vê diante de uma acusação tem esse direito garantido, na maioria das vezes, apenas na letra da lei. O fato de ser réu em um processo faz com que a sociedade já o julgue culpado previamente. A mídia contribui bastante para o julgamento moral, juntamente com a morosidade da justiça. Quando o acusado consegue finalmente provar sua inocência todos já o esqueceram ou relembram apenas da acusação.

Segundo Moraes (1999, p.112):

o devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito à defesa técnica, á publicidade do processo, á citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal).

A ampla defesa e o contraditório são as bases do devido processo legal. A ampla defesa consiste em assegurar que o réu tenha condições de trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade. Já o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa. A todo ato produzido pela acusação caberá igual direito de oposição por parte do réu, bem como de trazer a versão que melhor lhe apresente ou fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.


3 ACESSO À JUSTIÇA

O conceito de acesso à justiça passou por uma importante transformação no momento em que deixou de ser, como no dizer de Cappelletti (1988, p.9), "o direito formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação", para tratar dos problemas práticos para o efetivo acesso à justiça. Cappelletti afirma que:

A partir do momento em que as ações e relacionamentos assumiram, cada vez mais, caráter mais coletivo que individual, as sociedades modernas necessariamente deixaram para trás a visão individualista dos direitos, refletida nas ‘declarações de direitos’, típicas dos séculos dezoito e dezenove.

O efetivo acesso à justiça é dificultado pelas custas judiciais; despesas com honorários advocatícios; pela morosidade; pelas possibilidades das partes, pois de acordo com Cappelletti (1988, p. 21), "pessoas ou organizações que possuam recursos financeiros consideráveis a serem utilizados têm vantagens óbvias ao propor ou defender demandas"; pela aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação ou sua defesa; pela falta de habitualidade com o sistema judicial; pelos problemas para defender interesses difusos. O maior de todos os obstáculos é que os anteriores estão inter-relacionados, portanto, não podem ser eliminados um por um.

Cappelletti (1988, p. 31) aponta que:

[...] a primeira solução para o acesso – a primeira ‘onda’ desse movimento novo – foi a assistência judiciária; a segunda dizia respeito às reformas tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses ‘difusos’, especialmente nas áreas da proteção ambiental e do consumidor; e o terceiro – e mais recente – é o que nos propomos a chamar simplesmente ‘enfoque de acesso á justiça’ porque inclui os posicionamentos anteriores, mas vai muito além deles, representando, dessa forma uma tentativa de atacar as barreiras do acesso de modo mais articulado e compreensivo.

Santos também defende o fortalecimento da assistência judiciária para os pobres, através das defensorias públicas. Ele afirma que "a revolução democrática da justiça exige a criação de outra cultura de consulta jurídica e de assistência e patrimônio judiciário, em que as defensorias públicas terão certamente um papel muito relevante." (Santos, 2007, p.46).

A defesa dos interesses difusos é prejudicada pela pressão política sofrida pelos órgãos governamentais que detém sua tutela. Além disso, as agências públicas regulamentadoras têm suas limitações.

A terceira onda consiste em, segundo Cappelletti (1988, p. 67) "[...] centrar sua atenção no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas." Ou seja, tratar as duas primeiras ondas de reforma como uma série de possibilidades para melhorar o acesso à justiça.


4 O PROCESSO EM KAFKA E O ACESSO À JUSTIÇA

Na obra literária "O Processo", de Franz Kafka, o réu é julgado sem ter a mínima noção do porquê está sendo processado. Joseph K. ficou impossibilitado de se defender perante a "justiça", foi ouvido em apenas uma audiência e nunca teve acesso aos autos do processo. Apesar de ter um advogado à sua disposição, o mesmo não lhe dava informações precisas sobre o processo, apenas lhe fornecia explicações vagas e deixava transparecer a importância da influência junto ao juiz e os funcionários da justiça.

Infelizmente, o jogo de influências não ocorre só na ficção. Recentemente foram noticiados casos de venda de sentenças envolvendo advogados, servidores públicos e um estagiário de direito, além de indícios da participação de juízes e desembargadores. Santos chama a atenção para a questão da corrupção nos tribunais, segundo o autor:

[...] sempre que levou a cabo o combate à corrupção, o judiciário foi posto perante uma situação quase dilemática: esse combate, se por um lado, contribuiu para a maior legitimidade social dos tribunais; por outro, aumentou exponencialmente a controvérsia política à volta deles. Por quê? Porque os tribunais não foram feitos para julgar para cima, isto é, para julgar os poderosos. Eles foram feitos para julgar os de baixo". (Santos, 2007, p. 22).

Em um diálogo que Joseph K. tem com o pintor Titorelli, o personagem principal afirma (2001, p. 176): "Mas todos estão de acordo em que a acusação mais insignificante não fica anulada sem mais nem menos, senão que a justiça, uma vez que formulou a acusação, está firmemente convencida da culpabilidade do acusado e em que dificilmente se pode alterar tal convicção". Ao que o pintor responde que nunca a justiça abandona tal convicção. Portanto, a partir do momento em que o indivíduo é acusado, já é considerado culpado, tanto pela "justiça" do romance, quanto pela justiça real, que deveria cumprir os princípios constitucionais. Porém, a maior parte dos brasileiros esbarra com os obstáculos financeiros, organizacionais e processuais. A corrupção e a burocracia do judiciário contribuem para a negação dos direitos fundamentais.

Interessante passagem do romance é a que o pintor explica as três possibilidades de "absolvição", que são: a absolvição real, a absolvição aparente e a dilação indefinida. A real é impossível, pelo menos ninguém nunca alcançou, apenas existem lendas de que em um passado distante existiram absolvições reais: "O expediente do processo desfaz-se inteiramente; as atas desaparecem do inquérito; destrói-se tudo, não somente a acusação, mas também todo o processo e até a ata da absolvição" (Kakfa, 2001, p. 181). Portanto, não existe presunção de inocência, o acusado é considerado culpado desde o início e uma absolvição real é praticamente impossível. Outro princípio também é atingido, a da publicidade dos atos processuais, talvez até como uma forma de intimidação.

Na absolvição aparente a declaração de inocência não produz por si mesma outra modificação senão a de enriquecer o expediente com ela, com a ata de absolvição e com as atas que fundamentam esta. Em tudo o mais, o processo continua seu curso, continua-se levando-o a tribunais superiores, como o exige o trâmite ininterrupto entre os diversos escritórios da justiça; volta depois outra vez aos tribunais inferiores e sofre deste modo oscilações grandes e pequenas e demoras mais ou menos prolongadas. Não é possível calcular o que pode acontecer com o expediente. Visto de fora, poderia muitas vezes dar a impressão de que o processo foi esquecido, de que as atas se perderam e que a absolvição é, por conseguinte, completa. Mas um iniciado nestas coisas não o julga assim. Nunca se perde nenhuma ata, a justiça na se esquece de nada. Um dia, sem que ninguém o espere, algum juiz toma em suas mãos com maior atenção o expediente, reconhece que nesse caso a acusação está ainda em vigor e ordena imediatamente a detenção do acusado. (Kafka, 2001, p. 185).

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Essa forma como o processo é levado lembra as conseqüências da morosidade do judiciário. Questões mais urgentes são colocadas à frente e alguns processos parecem ter sido esquecidos. Vale ressaltar que a urgência pode ser assim classificada em seu sentido real ou no sentido de quem são as partes litigantes e a pressão que elas exercem para que seus processos sejam considerados urgentes. O "esquecimento" (ou engavetamento) também pode favorecer, quando a pessoa influente é parte ré. Os processos "menos urgentes", quando lembrados, muitas vezes, já estão prescritos, fato que não acontece no romance.

Já a dilação indefinida consiste em manter o processo permanentemente em uma das fases iniciais. Para conseguir tal coisa é preciso que o acusado e seu colaborador, embora certamente sobretudo este último mantenham de modo ininterrupto um contato pessoal com a justiça (...) É certo que o inquérito não termina, mas aqui o acusado está quase tão certo de não ser condenado como se estivesse em liberdade. (ibidem, p.186-187).

Muitos advogados ou envolvidos em um processo utilizam-se deste artifício para contribuir com a lentidão do processo e ganhar tempo.

Essas passagens demonstram a dificuldade de acesso à justiça e a desconsideração de princípios fundamentais. O que vai determinar o destino do acusado é a influência que ele exerce sobre os servidores da justiça. No caso do romance, de forma bem explícita.


5 CONCLUSÃO

Os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório são garantias formais que na prática são suprimidas a depender, principalmente das condições financeiras do litigante. Apesar de existirem outros fatores, como a morosidade do judiciário; a burocracia e a influência da mídia, o que vai determinar o desfecho de um processo, na maioria das vezes, é a influência que as partes conseguem exercer sobre os juízes e os seus funcionários. Sabe-se que a influência será maior ou menor dependendo das condições financeiras.

Sempre existe a esperança de que a situação se modifique com novos estudos sobre acesso à justiça, políticas públicas direcionadas às comunidades que só sentem a presença do Estado como órgão repressor. Percebe-se uma preocupação em democratizar a justiça, torná-la efetivamente acessível a todos. Entretanto, este é um caminho longo a ser percorrido, já que o poder judiciário não foi criado para ser acessível às classes populares.

A transformação é difícil, mas não impossível. Aos poucos, os direitos formais se tornam efetivos, a partir da concepção de um Direito para todos e não apenas para alguns.


6 REFERÊNCIAS

CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. Título original: Acess to Justice: The Worlwide Movement to Make Rights Effective. A general Report.

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 24. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.

KAFKA, Franz. O Processo. 2. ed.Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2001. Título original: Der Prozess.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1999.

SANTOS, Boaventura de. Para Uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez, 2007.

VENDA DE sentenças na BA: revelado nome de três acusados na Operação Janus. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/noticias/99132/venda-de-sentencas-na-ba-revelados-nomes-de-tres-acusados-na-operacao-janus> Acesso em 08 mar. 2009.

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Sobre a autora
Candice Regina Silva de Jesus

Acadêmica de Direito da Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS, Candice Regina Silva. O devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa no Brasil e na obra literária "O Processo", de Franz Kafka. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2132, 3 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12684. Acesso em: 2 mai. 2024.

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