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A prática perversa da prisão temporária

14/04/2009 às 00:00
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A Lei 7.960 de 31 de Dezembro de 1989 trouxe ao cenário jurídico nacional uma nova modalidade de prisão cautelar, a chamada "Prisão Temporária", que veio a legalizar antigos procedimentos conhecidos como "correcionais" no afã de fornecer aos órgãos repressores um instrumento útil no combate à criminalidade.

Os prazos dessa prisão são, no Brasil, bastante dilatados, sendo previstos os de cinco dias prorrogáveis por mais cinco para crimes comuns e de trinta dias prorrogáveis por outro tanto para os chamados Crimes Hediondos (Lei 8.072/90). Considerando que no rol de crimes abrangidos pela Lei 7.960/89 quase todos são classificados como hediondos, em regra, o prazo dessa modalidade de prisão poderá chegar aos sessenta dias.

A legislação alienígena apresenta-se mais branda. Nos Estados Unidos, embora haja a possibilidade de ser efetuada sem ordem judicial pela autoridade policial, deve ser examinada pelo judiciário em 24 horas. Na França, a prisão temporária é de 48 horas, prorrogável até 72 horas. Na Espanha essa prisão tem o prazo de 24 horas, podendo chegar ao máximo de 72 horas por renovação requerida ao juiz.

Percebe-se que a prisão temporária, especialmente em face de nossa rigorosa legislação, está a exigir uma interpretação em maior consonância possível com o princípio da presunção de inocência, agasalhado pela Constituição Federal.

A discussão em torno da possibilidade da convivência entre o citado princípio e as custódias cautelares, encontra-se praticamente pacificada na doutrina, desde que estabelecidos rígidos critérios para a concessão dessa coerção no estrito interesse público da apuração das infrações penais (especialmente as mais graves) e de acordo com a absoluta necessidade e excepcionalidade da sua aplicação.

Não obstante, na prática temos constatado um grave desvirtuamento na aplicação da Lei 7.960/89, seja por parte da Polícia, do Judiciário ou do Ministério Público. Na realidade essa modalidade de prisão tem, algumas vezes, sido utilizada como uma espécie de resposta rápida, demonstração de celeridade punitiva e eficiência por parte dos órgãos públicos no "combate" à criminalidade. Nestes casos, o exame dos requisitos de sua aplicação se apresenta apenas parcialmente satisfeito, deixando-se em segundo plano as características de medida necessária e excepcional, obrigatoriamente ligadas a esse tipo de prisão num ordenamento democrático de direito.

O cabimento da Prisão Temporária é disciplinado no artigo 1º, incisos I, II e III da Lei 7.960/89. Os dois primeiros incisos se referem aos casos que justificam a medida no campo da real necessidade a ser demonstrada. Tratam-se da imprescindibilidade para "as investigações do inquérito policial" e da situação em que "o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade". Na verdade, este segundo caso se apresenta supérfluo, uma vez que estaria abrangido pelo inciso I.

O inciso III, em suas alíneas, elenca os crimes nos quais será possível a decretação da Prisão Temporária.

É cristalino que somente na conjugação de um dos dois primeiros incisos com um dos crimes elencados no último é que se terão satisfeitos os requisitos da necessariedade e excepcionalidade da Prisão Temporária. A aplicação estanque dos incisos levaria à banalização da medida, inclusive aplicando-a a casos de infrações de menor monta (incisos I e/ou II isolados) ou à sua decretação somente baseada na natureza do crime, ainda que inexistentes outras motivações (inciso III isolado).

O primeiro caso supra mencionado (aplicação da temporária a pequenos delitos) não tem sido corrente. No entanto, a solicitação e a concessão da medida baseadas apenas no caráter da infração (inciso III) sem a necessária interação com os casos que a justificam (incisos I e/ou II), tem sido amplamente constatável na prática, constituindo sem dúvida grave abuso, geralmente fomentado pela pressão da mídia.

A Resolução 11 do Conselho da Europa recomenda aos Governos que atuem na prisão provisória inspirados nos seguintes princípios: 1- não deve ser obrigatória e as autoridades devem decidir tendo em conta as circunstâncias do caso; 2- deve considerar-se como medida excepcional; 3- deve ser mantida quando seja estritamente necessária e, em nenhum caso aplicar-se com fins punitivos. Portanto, não é admissível sua utilização pervertida como antecipação punitiva em satisfação à sociedade dirigida pela mídia. Também não é aceitável quando findas as diligências investigatórias, caso em que, ou se transforma em preventiva ou, não presentes os pressupostos desta, deve o suspeito ser posto em liberdade. Finalmente, vale salientar que também não deve ser dirigida à obtenção da confissão, porque tal prova apartada de outros elementos é certamente de valia duvidosa, ainda que o suspeito não sofra outros constrangimentos além da privação da liberdade. Neste sentido deve-se ter em conta que a confissão extrajudicial já é bastante frágil com o suspeito solto. O que se dirá então com relação ao interrogado premido pelo cárcere? Isto sem mencionar o direito ao silêncio, constitucionalmente assegurado.

Conclui-se assim que a Prisão Temporária há que estar intimamente ligada à necessidade investigatória de um inquérito policial em andamento, somente devendo ser requerida e concedida quando houver conjugação entre os incisos I e/ou II com o III do art. 1º da legislação sob comento, sob pena de franca ilegalidade e abuso.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A prática perversa da prisão temporária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2113, 14 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12631. Acesso em: 24 abr. 2024.

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