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Embriaguez e homicídio no trânsito: dolo eventual ou culpa consciente?

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03/12/2008 às 00:00
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RESUMO

A presente pesquisa faz uma abordagem à recente alteração do Código de Trânsito Brasileiro, visando à verificação da regular aplicação dos conceitos de dolo eventual e culpa consciente frente ao crime de homicídio conseqüente de acidente de trânsito em que se faz presente a embriaguez comprovada pelos níveis mínimos de alcoolemia exigidos por lei. Ao serem buscadas maiores bases para uma razoável análise da questão, especialmente em fonte bibliográfica, constatou-se a exigência de indícios reais de consentimento no resultado para que se possa caracterizar existente o dolo eventual na conduta do motorista embriagado, não sendo viável entendê-lo presente tão-somente pela ingestão de álcool. Ademais, em análise às definições clínicas de embriaguez, foi possível averiguar a existência de diversos efeitos, níveis de resistência e comportamentos diferenciados, os quais dependem de fatores inerentes ao sujeito. Dessa forma, concluiu-se que a lei atualmente em vigor desvirtua conceitos básicos de direito penal, merecendo adequação aos mesmos, sob pena de tais casos acabarem na vala comum do crime de homicídio, sendo dado injusto tratamento ao condutor que apresente níveis de alcoolemia acima dos permitidos por lei, ainda que clinicamente não esteja embriagado. Para o trabalho utilizou-se como método de abordagem o dedutivo e de procedimento o monográfico.

Palavras-chaves: embriaguez, dolo eventual, culpa consciente, crime de trânsito, homicídio.

ABSTRACT

The present research regards the recent alteration of the Brazilian Code of Traffic, seeking the verification of the regular application of the concepts of eventual dolus and conscious guilt considering the crime of homicide consequent of the traffic accident in which there is inebriety, proved by the minimum levels of alcohol demanded by law. When researching larger basis for a reasonable analysis of the subject, especially a bibliographic source, it was noticed the need of real clues of consent so that the eventual dolus in the conduct of the drunken driver could be characterized as existent, not being possible to think of him as present because of the ingestion of alcohol. Furthermore, analyzing the clinical definitions of inebriety, it was possible to verify the existence of various effects, levels of endurance and diverse behaviors; all which are dependable of factors that are inherent to each person. Therefore, it was concluded that the law operating presently depreciates the basic concepts of penal law, deserving adjustments to the penal code, under penalty of such cases ending up in the ordinary judgeship of homicidal crimes, being given unjust treatment to the driver that presents levels of alcohol above those permitted by law, even if clinically he is not in a state of inebriety. To the work it was used as methods of approach, the deductive method and the monographic procedure.

Key-words: inebriety, eventual dolus, conscious guilt, traffic crime, homicide.

Sumário :LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS. INTRODUÇÃO. 1 A ALTERAÇÃO LEGAL E SUAS CONSEQÜÊNCIAS. 1.1 Motivação do legislador. 1.1.1 Eximição de responsabilidade. 1.1.2 Penalização mais grave. 1.2 Configuração do dolo eventual. 2 A PROBLEMÁTICA VERIFICAÇÃO DA EMBRIAGUEZ. 2.1 Pessoas diferentes, efeitos diferentes. 3.2 Definições técnicas a serem consideradas. 3 DISTINÇÕES CONCEITUAIS NO CASO CONCRETO. 3.1 Dolo eventual. 3.1.1 Teoria da Vontade. 3.1.2 Teoria do Consentimento. 3.2 Culpa consciente. 3.3 Distinção. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

art.artigo

CTBCódigo de Trânsito Brasileiro

ed.Edição

MGMinas Gerais

P-página

OABOrdem dos Advogados do Brasil

RJRio de Janeiro

RSRio Grande do Sul

RTRevista dos Tribunais

SCSanta Catarina

SPSão Paulo

STJSuperior Tribunal de Justiça


INTRODUÇÃO

Dentre as inúmeras informações despejadas pela imprensa escrita, falada e televisiva, uma tem se feito muito freqüente neste ano: a famigerada alteração do Código de Trânsito Brasileiro.

A alteração é fruto de um apelo da sociedade que já leva anos. Os acidentes de trânsito têm sido a segunda forma de morte não natural no Brasil, estando atrás, em números, apenas dos crimes dolosos contra a vida.

Todavia, para que possa haver efetividade, uma lei, antes de mais nada, deve ser razoável, sob risco de se tornar ou inócua ou injusta. E a presente lei, com alterações radicais, apresenta ambos os riscos.

Inócua, talvez, pela exigência de um nível mínimo de álcool no sangue do motorista suspeito de embriaguez, a ser constatado pelo uso do bafômetro. Sabe-se que, segundo prevê a Constituição Federal pátria, ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, o que leva à conclusão de que o motorista que se recuse a fazer o exame do bafômetro acabará por atrapalhar o andamento da justiça, pelo menos na seara criminal.

Todavia, não é este o foco da presente pesquisa, cabendo uma breve e superficial abordagem da referida problemática apenas a título de ilustração, demonstrando uma possível falha da legislação vigente diferente daquela que se pretende abordar aqui.

O trabalho aqui apresentado tem por escopo a verificação da existência de possível injustiça de tratamento no caso concreto em que figure como autor motorista que apresente nível de álcool superior a seis decigramas por litro de sangue, sem que, necessariamente, esteja embriagado.

O interesse pelo estudo desta circunstância em especial surgiu pela verificação de que em diversos juízos e tribunais estava havendo a caracterização praticamente automática do dolo eventual pela simples embriaguez do condutor. Tal situação se dava ao ser acolhida, pelo magistrado, a tese de acusação de que, ao conduzir o veículo sob efeito de álcool ou entorpecente, estaria o motorista invariavelmente assumindo o risco de causar um acidente resultante em óbito e, portanto, consentindo com a possível – mas não provável – fatalidade.

Tendo o Código de Trânsito sido recentemente alterado, a situação narrada já não mais acontece. Não por ter se tornado mais garantista; pelo contrário: o legislador aderiu às teses de acusação supramencionadas.

Destarte, sequer cabe ao juiz analisar a real existência de dolo – ou de embriaguez – quando o autor do homicídio no trânsito apresentar os índices de álcool a que se refere a lei.

Para o êxito da pesquisa é evidente a necessidade de estudo mais aprofundado acerca das definições de culpa consciente e dolo eventual, para só então trazê-los ao caso específico que se apresenta como problemática.

De igual forma, partindo do corolário de que permanece a dúvida sobre a legitimidade de caracterização do dolo eventual em caso de estar o motorista embriagado, nos termos da lei, é mister uma abordagem sobre as peculiaridades, fases e demais questões relevantes sobre a embriaguez, sob uma ótica clínica do assunto.

Por tais razões, adotou-se como metodologia de abordagem o método dedutivo, que permite trazer o apanhado geral de conceitos – jurídicos e médicos – ao caso concreto, fornecendo a base necessária para então ser possível chegar em uma conclusão segura.

No que tange à metodologia de procedimento, sendo o assunto amplo, mas de um único foco, tem-se como melhor alternativa o método monográfico, com uma divisão em três capítulos, disposta conforme exposição a seguir.

O primeiro capítulo visa à apresentação da alteração legal e suas conseqüências, inclusive com abordagem superficial à já existente problemática anterior à alteração de que trata o trabalho.

No segundo capítulo, o foco está dirigido às definições clínicas pertinentes à embriaguez, com um demonstrativo das diferentes fases de embriaguez, classificações e peculiaridades relativas aos diferentes níveis de tolerância ao álcool de cada indivíduo.

Por fim, o terceiro capítulo traz ao trabalho os conceitos e teorias relacionados a dolo e culpa – dolo eventual e culpa consciente – com ênfase nas circunstâncias que abrangem a situação hipotética do condutor embriagado que causa o sinistro fatal.

O corpo do trabalho deixa claro que o anseio do Estado em atender ao apelo da comunidade trouxe uma alteração incontestavelmente significativa aos procedimentos adotados nos crimes de trânsito, ainda que não se tenha certeza de qual o custo em termos de garantias de direitos.

Ao final, a pesquisa demonstra ter coletado informações suficientes para demonstrar se as alterações são legítimas e obrigarão aos motoristas se adequarem à lei ou se a lei é que deverá novamente se adequar ao direito penal brasileiro.


1 A ALTERAÇÃO LEGAL E SUAS CONSEQÜÊNCIAS

É de clara certeza que o legislador, ao alterar a lei, viu na embriaguez uma possível forma de vislumbrar na conduta do condutor a presença de dolo eventual, exatamente como já faziam alguns tribunais do país.

Se não o fosse, não teria o mínimo sentido a legislação remeter ao Código Penal a conduta delituosa em que estivesse caracterizada a culpa – e não o dolo – do motorista, uma vez que a pena prevista no CTB é mais grave do que aquela aplicada ao homicídio culposo do Código Penal.

Provavelmente, a alteração tenha se dado justamente para evitar que continuasse ocorrendo o que já estava se tornando um hábito no judiciário: um considerável número de julgadores que aderiam à tese acusatória, entendendo que tão-somente o fato de ter ocorrido ingestão de bebida alcoólica antes do sinistro fatal acabava por levar automaticamente à conclusão de haver dolo eventual na conduta do autor do crime.

Tal abordagem, visivelmente errônea, acontecia, via de regra, por dois possíveis motivos: um meio eximição de responsabilidade e uma tentativa de penalização mais grave ao agente infrator.

1.1.1 Eximição de responsabilidade

A eximição de responsabilidade vinha a ser a hipótese mais pessimista, visto que atingia diretamente a atuação do magistrado que julgava o caso. Isso porque ao se deparar com um fato de maior repercussão, normalmente agravada pela mídia, o magistrado invariavelmente teria de ser cauteloso ao entender existir culpa consciente e não dolo eventual.

O motivo não é nenhum mistério, uma vez que, entendendo o juízo haver culpa consciente, acabaria por ser o responsável pela sentença com minguada condenação; por outro lado, ao entender caracterizado o dolo eventual, caberia ao tribunal do júri a condenação, restando-lhe tão-somente o cálculo da pena.

Soma-se a isso ainda a força da sanção: a pena prevista no Código de Trânsito Brasileiro vai de 2 a 4 anos, acrescida de um terço à metade, aplicável ao homicídio culposo, enquanto a pena para a modalidade dolosa – no caso, o dolo eventual – pelo Código Penal é de 6 a 20 anos [02]. Pena esta que partiria de um mínimo igual ao máximo possível aplicável pelo Código de Trânsito Brasileiro – 4 anos acrescidos da metade.

Evidentemente, como anteriormente mencionado, esta seria apenas uma hipótese, que, mesmo que tenha fundamento real, ainda assim está longe de ser vista como um comportamento geral entre os membros do judiciário.

1.1.2 Penalização mais grave

De outra banda, tem-se ainda a segunda hipótese, que visa à aplicação de pena mais severa ao agente que cometeu o crime de homicídio em acidente de trânsito sob efeito de álcool ou substância entorpecente.

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Ora, inexistindo previsão legal para aplicação de uma sanção proporcional à lesão causada ao maior bem jurídico tutelado, a vida, considerando-se as circunstâncias, utilizou-se a máquina da justiça, em mais de uma ocasião, de artimanha para sanar a deficiência.

Conforme já mencionado, o mínimo da pena aplicada em um caso de dolo eventual – e, portanto, pelo art. 121 do Código Penal – é igual ao máximo aplicável pelo não mais vigente inciso V do parágrafo único do art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro – desconsiderando-se outros fatores de possível aumento ou diminuição da pena.

Adotou-se então como praxe entre muitos julgadores a vinculação direta entre dolo eventual e embriaguez quando se deparavam com crimes de trânsito fatais, na realidade, impulsionados por uma pressão midiática ao argumento de se estar evitando a impunidade dos agentes delinqüentes perante a sociedade.

1.2 Configuração do dolo eventual

Apesar da necessidade de maior rigor nas sanções, o problema apresentado deve ser enfrentado com a devida sensatez, a fim de se evitar uma injusta penalização para o autor do ilícito penal, bem como a desvirtuação de algumas definições do direito penal.

A observação não é infundada. Não são poucos os casos em que o autor da conduta, um motorista embriagado no momento do fato, veio a ser pronunciado ao tribunal do júri, como se bastasse a embriaguez para que lhe fosse automaticamente atribuído o dolo eventual.

Por se tornar aos poucos uma realidade no cenário da justiça brasileira, Cezar Roberto Bitencourt chama atenção para o problema:

Os tribunais pátrios não têm realizado uma reflexão adequada, decidindo quase que mecanicamente: se a embriaguez não é acidental, pune-se o agente.

Se houve ou não previsibilidade do fato no estágio anterior à embriaguez não tem sido objeto de análise. É muito fácil: o Código diz que a embriaguez voluntária ou culposa não isenta de pena, ponto final. O moderno Direito Penal há muito está a exigir uma nova e profunda reflexão sobre esse aspecto, que os nossos tribunais não têm realizado. [03][grifou-se]

E é nesse momento que a aberração se revela. Tem-se como base da tese de acusação a idéia de que, ao dirigir embriagado, o motorista "assume o risco", e, portanto, incide no dolo eventual.

Com a recente alteração do CTB, a ocorrência de tal situação não mais será tida como freqüente como até então se tinha por praxe. Por mais absurdo que possa ser, será tida como regra, visto que já não cabe ao julgador decidir se há ou não dolo eventual na conduta tipificada em que o agente esteja embriagado.

Atento à situação, sabiamente Juarez Tavares adverte:

Esse mesmo raciocínio vale para a conhecida hipótese de embriaguez ao volante, associada à velocidade excessiva, à qual a jurisprudência brasileira tem assinalado, sem outras condições, as características do dolo eventual. Neste caso, para configurar-se o dolo eventual não basta, exclusivamente, a constatação de embriaguez e da velocidade. Será preciso demonstrar que as condições concretas do evento eram, igualmente, desfavoráveis ao agente, de modo que este não pudesse objetivamente invocar a expectativa de que o resultado não ocorreria ou poderia ser evitado. [04]

Salvo melhor juízo, por assumir o risco, tão-somente, poderia igualmente ser enquadrado nas definições de culpa consciente. É exatamente o que defende Maurício Antonio Ribeiro, ao transcrever trecho de julgado sobre a questão, que define que "na hipótese de dolo eventual não é suficiente que o agente tenha conduzido de maneira a assumir o risco de produzir o resultado; exige-se, mais, que ele tenha consentido no resultado". [05]

Edmundo José de Bastos Jr. atenta ainda ao direito garantista que protege o agente em situações dessa ordem ao explicar que "Quando a atitude psíquica do agente não se revelar inequívoca, ou se há inafastável dúvida se houve, ou não, aceitação do risco do resultado, a solução deve ser baseada no princípio in dúbio pro reo, vale dizer pelo reconhecimento da culpa consciente." [06]

Pelo simples fato de ter o agente feito a correta representação da possibilidade de ofensa a um bem jurídico, não se pode presumir que tenha assumido o risco de produzir o resultado, visto que, mesmo com a considerável probabilidade de que venha a ocorrer, o agente ainda pode acreditar seriamente que o resultado não acontecerá, consoante magistério de Bitencourt. [07]

Nesse aspecto, em análise à posição do Código Penal brasileiro sobre o dolo eventual, em seu art. 18, I [08], posiciona-se com firmeza Juarez Tavares:

O Código Penal brasileiro, em seu art. 18, I, acolhe a fórmula de assumir o risco, que implica dar relevância, na configuração do dolo eventual, ao seu elemento volitivo e não meramente intelectivo, mas essa adoção nada mais é do que uma expressão também do conformar-se com o resultado e não descarta a análise do elemento intelectivo como seu pressuposto prévio. Neste particular, inclusive, em face da equivocidade de seus termos, a fórmula do código é evidentemente incompatível com um direito penal de garantia, o que está a exigir uma precisa tomada de posição da doutrina para delimitá-la no seu verdadeiro sentido.

A questão primordial do dolo eventual não reside propriamente nas expressões de sua formulação legal ou nas expressões usadas pela doutrina, mas no ponto em que, no dolo, qualquer que seja sua espécie, há uma vontade do agente no sentido de realizar o resultado e, assim, lesar o bem jurídico. Para que se possa sustentar a existência do dolo eventual ainda dentro da estrutura do dolo, como forma de direção consciente e voluntária da sua conduta, assim como vontade de manobrar ou conduzir essa atividade será preciso partir de dois fundamentos: a) o agente deve ter consciência de que, com sua atuação, pode seriamente lesar ou pôr em perigo um bem jurídico; b) atua com indiferença diante dessa séria possibilidade de lesão ou colocação em perigo do bem jurídico, de modo a assumir o risco de sua produção. O que assinala, portanto, a base do dolo eventual é a relação recíproca de seus elementos constitutivos. [09][grifou-se]

Partindo dessa leitura, a conclusão mais óbvia à qual se pode chegar é a de que o dolo eventual não pode ser presumido em situações desta natureza, até mesmo porque é no mínimo absurdo crer que o motorista embriagado passa a ser indiferente à vida.

Se excepcionalmente não demonstra valor pela vida de terceiros, é de se esperar ao menos que a sua própria o sujeito tenha interesse em preservar. Adotar-se como regra geral a idéia de que embriagado o motorista passa a apreciar a possibilidade de dar cabo da própria vida é absolutamente inviável, muito embora teses desta natureza tenham vingado.

Ademais, não se pode olvidar também do fato de que o referido condutor, via de regra, não possui interesse – ou não consente – em destruir o próprio patrimônio – no caso, o veículo automotor. Muito pelo contrário, tem total confiança na própria habilidade para evitar qualquer tipo de acidente.

Cabe frisar que não se está levando em consideração que, por mais indiferente que possa estar o agente com relação à sua vida e integridade física, bem como no que diz respeito a terceiros, e, ainda, ao próprio patrimônio, resta-lhe ao menos a noção de que estará incidindo em ilicitude, o que gerará o desgaste financeiro e emocional em demandas judiciais, de seara cível e criminal. Quantas não foram as vezes em que o cidadão comum, em uma ocasião ou outra de sua vida, não teve o impulso de partir para a agressão física de um desafeto, vizinho, superior hierárquico, adversário, etc, em alguma ocasião específica, mas só não o fez por saber das conseqüências legais desse ato? Pois bem, não há então motivo razoável para crer que agiria de forma diversa o motorista que, por estar sob efeito de substância que tenha lhe causado embriaguez, tenha interesse em cometer um crime ou conforme-se com o seu resultado.

Juarez Cirino dos Santos justifica a imperiosidade de se fazer presente o elemento volitivo, mesmo em estado de embriaguez, não sendo viável sua presunção:

[...] se o autor, na ação precedente, não tem o propósito (dolo direto) ou não admite a possibilidade (dolo eventual) de realizar determinado tipo de crime em estado de incapacidade de culpabilidade, então o resultado típico produzido na ação posterior não pode ser atribuído por dolo, independente de ser intencional (o sujeito quer se embriagar) ou imprudente (o sujeito se embriaga, progressiva mas inadvertidamente) o ato de se embriagar. Por isso, o princípio da culpabilidade determina a seguinte interpretação do art. 28, II, do Código Penal: a embriaguez, voluntária ou culposa, não exclui a imputabilidade penal, mas a imputação do resultado por dolo ou por imprudência depende, necessariamente, da existência real (nunca presumida) dos elementos do tipo subjetivo respetivo no comportamento do autor. [10]

Isso significa dizer que o delinqüente embriagado não passa a ser inimputável, mas não poderá ser caracterizado dolo ou culpa sem uma análise dos elementos subjetivos quando da prática do delito.

Logo, não pode esta linha de raciocínio comumente adotada pelos tribunais – que iguala a embriaguez ao dolo eventual em caso de homicídio no trânsito – por si só concluir, como idéia inexorável, que o motorista embriagado deixa de respeitar o patrimônio, integridade corporal e vida, tanto no que lhe diz respeito, quanto no que toca a terceiros.

Nesse sentido manifestou-se recentemente o STJ, consoante julgado colacionado:

OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. HOMICÍDIO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. DOLO EVENTUAL. CULPA CONSCIENTE. REVALORAÇÃO DE PROVAS. POSSIBILIDADE.

PRONÚNCIA. APLICAÇÃO DO BROCARDO IN DUBIO PRO SOCIETATE.

INEXISTÊNCIA DE ELEMENTOS DO DOLO EVENTUAL. DÚVIDA NÃO CARACTERIZADA. DESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA QUE SE IMPÕE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

Inexistente qualquer ambigüidade, obscuridade, contradição ou omissão no aresto impugnado, insubsistente a alegada contrariedade ao art. 619 do CPP.

A revaloração do contexto probatório firmado pelo Tribunal a quo, diferente do reexame de provas vedado pela Súmula 7/STJ, é permitida em sede de recurso especial.

A pronúncia do réu, em atenção ao brocardo in dubio pro societate, exige a presença de contexto que possa gerar dúvida a respeito da existência de dolo eventual.

Inexistente qualquer elemento mínimo a apontar para a prática de homicídio, em acidente de trânsito, na modalidade dolo eventual, impõe-se a desclassificação da conduta para a forma culposa.

(REsp 705.416/SC, Rel. Ministro PAULO MEDINA, SEXTA TURMA, julgado em 23/05/2006, DJ 20/08/2007 p. 311, REPDJ 27/08/2007 p. 298) [11]

Não resta dúvida então que o entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça sobre a questão aqui apresentada corrobora a idéia de que não se pode caracterizar o dolo eventual no crime de homicídio no trânsito tendo como base apenas a constatação de embriaguez do motorista causador do sinistro.

O acórdão em que fora relator o Ministro Paulo Medina, publicado há pouco mais de um ano, implica na conclusão de que inexiste qualquer certeza de existência de dolo eventual pela presença de estado de embriaguez – mesmo que voluntária – no condutor do veículo.

Partindo deste corolário, não há justificativa para a alteração do CTB, consistente em remeter o crime de homicídio no trânsito, sob efeito de álcool, ao Código Penal.

Afinal, se não há dolo eventual – e, portanto, não se trata de homicídio doloso contra a vida –, o processamento pelo tipo previsto pelo Código Penal apenas abrandaria a pena aplicada ao agente.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Ádamo Brasil. Embriaguez e homicídio no trânsito: dolo eventual ou culpa consciente?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1981, 3 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12036. Acesso em: 19 abr. 2024.

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