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Álcool e volante.

Até quando será preciso provar o que é notório?

17/07/2008 às 00:00
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1-INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objeto a definição da natureza do crime de embriaguez ao volante, previsto no artigo 306, CTB, de acordo com a nova redação que lhe foi conferida pela Lei 11.705/08. Trata-se, sinteticamente, de estabelecer se o novo crime de embriaguez ao volante é de perigo concreto, perigo abstrato ou de dano.

O problema ora analisado é de grande relevância teórica e prática, pois de sua resposta irá defluir a interpretação e aplicação concreta do tipo penal, abrangendo ou excluindo determinadas condutas do espectro de irradiação dos efeitos da norma penal.

Serão expostos os argumentos que sustentam cada uma das hipóteses ora formuladas, as quais já foram debatidas com referência à antiga redação do artigo 306, CTB, e agora retomam fôlego.

Ao final, considerando a análise das argumentações desenvolvidas, formular-se-á um desfecho conclusivo acerca do tema.


2-PERIGO CONCRETO X PERIGO ABSTRATO X DANO

Em sua redação original o crime do artigo 306, CTB, foi considerado, predominantemente, como um delito de perigo concreto.

Não obstante, a matéria não era isenta de controvérsias. Afiliavam-se à tese do perigo concreto Luiz Flávio Gomes, Ariosvaldo de Campos Pires, Sheila Jorge Selim de Sales, Cezar Roberto Bitencourt e Vicente Cernicchiaro. [01] De outra banda, defendiam a tese do perigo abstrato, Luiz Otávio de Oliveira Rocha [02] e Arnaldo Rizzardo. [03] Havia inclusive quem defendesse a hipótese do crime de lesão ou de dano, conforme escólio de Fernando Capez, Victor Eduardo Rios Gonçalves [04] e Damásio Evangelista de Jesus. [05]

A polêmica se enredava em torno da frase que encerrava a descrição típica: "expondo a dano potencial a incolumidade de outrem".

A conclusão pelo perigo concreto se impunha em razão dessa frase que exigia a caracterização de um perigo real, aferível em cada caso submetido à análise. Mas, aqueles que defendiam a tese do perigo abstrato insistiam que o só fato de alguém dirigir embriagado já ensejava perigo que podia ser presumido, tratando-se a frase final do artigo de mera verborragia estéril.

Embora, como se verá mais adiante, concordemos com o fato de que é inegável o perigo que decorre da direção embriagada, era na época difícil sustentar a tese do perigo abstrato. Fosse como fosse, o legislador estava míope para a realidade do perigo óbvio de qualquer direção sob efeito de álcool ou drogas e exigia literalmente a comprovação casuística de perigo. Isso é característico dos crimes de perigo concreto, já que nos crimes de perigo abstrato não há menção "de perigo no tipo" ao contrário dos primeiros. Nos crimes de perigo abstrato não se "menciona o perigo entre seus elementos, mas se limita a definir uma ação perigosa, pois entende que o surgimento do perigo deduz-se da realização de uma ação com certas características". [06] Como o antigo tipo penal descrevia em seu bojo o perigo exigido para sua configuração, era inviável concluir que não fosse um crime de perigo concreto.

Quanto à alegação de tratar-se de um "crime de dano", a doutrina burilou um bem jurídico supra – individual, apontando-o como aquele lesado por quem dirigisse embriagado. Tal bem jurídico seria a "segurança viária". Este bem jurídico não seria simplesmente posto em risco, mas atingido efetivamente quando uma pessoa conduz veículo automotor nas vias públicas sob efeito de álcool ou de outras substâncias psicoativas. Entretanto, também para esse pensamento seria necessário demonstrar "in concreto" a lesão à "segurança viária" produzida pelo condutor ébrio. [07]

Pensamos que a questão ontem e hoje deve ater-se à decisão entre o perigo concreto e o abstrato. O forjar de um bem jurídico coletivo como a "segurança viária" surge como um elemento artificial e "ad hoc" para legitimar a chamada "tutela penal antecipada", típica do "Direito Penal de Risco", a que a doutrina alemã denominou de "criminalização em âmbito prévio". [08]

Neste estágio parte-se para o reconhecimento de "novos e universais interesses", cuja definição é "vaga e superficial", [09] visando afastar a pecha da criminalização exacerbada do perigo abstrato. Mas, na realidade, trata-se de disfarçar a legitimação reflexa da criação descontrolada de tipos penais de mera conduta e de perigo abstrato, procurando-se manter uma aura de pseudo – garantismo.

Greco chama a atenção para o fato de que esta tem sido a proposta de boa parcela de nossa doutrina "garantista", sem que se perceba que "no final das contas, acabou-se por legitimar, da mesma forma, a antecipação do direito penal. Só que no caso dos crimes de perigo abstrato, antecipa-se a proibição; no bem jurídico coletivo, antecipa-se a própria lesão". [10]

Ao menos os crimes de perigo abstrato têm a virtude da transparência, não ocultando a efetiva antecipação do Direito Penal, [11] razão pela qual, com o devido comedimento, é melhor a adoção deles em certos casos e o seu reconhecimento, do que sua ocultação através de subterfúgios que falseiam o diagnóstico do modelo de Direito Penal instituído.

Agora essa velha discussão ganha novo impulso com a alteração promovida pela Lei 11.705/08 na redação do artigo 306, CTB.

Em sua nova conformação o tipo penal em destaque não estampa a exigência de "exposição a dano potencial" outrora vigente. É criminalizada a mera conduta de conduzir veículo automotor, na via pública, "estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas, ou sob a influência de qualquer substância psicoativa que determine dependência". Aboliu-se a literalidade da exigência de perigo concreto, de modo que a mera condução de veículo automotor nas condições descritas no tipo penal é suficiente para sua configuração. O perigo agora se deduz da concentração de álcool no sangue ou da influência de outra substância psicoativa.

Diante desse novo quadro legislativo, impõe-se o reconhecimento de que o artigo 306, CTB, descreve crime de perigo abstrato. Mesmo que uma pessoa seja surpreendida dirigindo normalmente, mas sob efeito de álcool, por exemplo, em taxa superior à tolerada para fins penais, ela incidirá na prática criminosa. A infração se perfaz somente pela condução nas condições descritas no tipo penal. [12]

O repúdio à disseminação de crimes de perigo abstrato é de todo justificável, uma vez que eles trazem consigo o risco de um indevido agigantamento do Direito Penal provocado por uma terrível pretensão de controle social milimétrico que tolhe a liberdade e a dignidade humanas.

Por isso doutrinadores como Luiz Flávio Gomes não cogitam a admissão de crimes de perigo abstrato no seio de um ordenamento jurídico moderno. Para o autor, mencione ou não o legislador em dado tipo penal a necessidade de perigo concreto, esta se faz presente, ainda que tacitamente, em estrito respeito ao Princípio da Ofensividade. Portanto, "todo tipo penal que descreve um perigo abstrato deve ser interpretado na forma de perigo concreto". Por essa razão o autor em destaque entende que, mesmo na atual conformação, o artigo 306, CTB, descreve um "crime de perigo concreto indeterminado", para cuja configuração é impositivo comprovar "risco efetivo para o bem jurídico coletivo segurança viária". [13] No entender de Gomes, o fato de dirigir embriagado somente não serve para configurar o tipo penal, sendo imprescindível demonstrar que o condutor dirigia de forma anormal (descontrolado, contra – mão etc.).

Há que se concordar que a criação arbitrária pelo legislador de infrações penais para condutas que não lesam nem criam perigo a bens jurídicos é inadmissível. Mas, também não se pode deixar de reconhecer que há condutas que por si sós representam perigo a bens jurídicos, dispensando a análise casuística por sua notoriedade. Parece-nos que esse é o atual limite estreito de admissibilidade dos chamados "crimes de perigo abstrato", na falta de melhor terminologia. [14]

Será que alguém ainda tem dúvida de que dirigir sob efeito de álcool ou de substâncias psicoativas é perigoso?

Comprovada a embriaguez ao volante, é ainda necessário provar que havia perigo concreto? Esse perigo é fato notório, comprovado estatisticamente pelos milhares de casos de acidentes de trânsito com prejuízos para a vida, a integridade física, a saúde e o patrimônio de uma infinidade de pessoas.

Pugnar pela necessidade de comprovação casuística de perigo é partir de uma falsa premissa, qual seja: a de que há índices ou condições seguras para conduzir veículos automotores sob efeito de álcool ou de substâncias psicoativas. Tal assertiva não se sustenta cientificamente e não retrata o tratamento dado ao caso pelo próprio CTB em sua parte administrativa, quando estabelece o impedimento para a condução sob qualquer concentração de álcool no sangue ou sob influência de outras substâncias psicoativas (artigo 165, CTB; artigo 276, CTB e artigo 1º, do Decreto 6488/08). Frise-se que não se trata propriamente de uma presunção legal de perigo, mas da constatação de um fato notório quanto ao real perigo da situação em geral, independente de uma análise minuciosa de cada caso concreto.

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Por mais que se queira, não há margens seguras para ebriedade e direção de automotores nas vias públicas. Isso é fato notório que independe de prova, nos termos do artigo 334, I, CPC, extensivo por integração ao Processo Penal. Como aduz Mirabete, os "fatos notórios" independem de prova "(notoria non egent probatione)". Eles são "aqueles cujo conhecimento integra a cultura normal, a informação dos indivíduos de determinado meio". [15] E é impossível pensar que em nosso meio possa existir alguém que desconheça o perigo óbvio de dirigir sob efeito de álcool ou de outras substâncias psicoativas.

Em seus comentários aos crimes do Estatuto do Desarmamento, Capez afirma a necessidade de respeito ao Princípio da Ofensividade, mas reconhece a existência de certas condutas que "por si sós, já induzem à existência de risco à coletividade", pois nada impede que haja uma lesividade "ínsita em determinados comportamentos". [16] Vale registrar suas palavras:

"Em suma, entendemos que a ofensividade ou lesividade é um princípio que deve ser aceito, por se tratar de princípio constitucional do direito penal, diretamente derivado do princípio da dignidade humana (CF, art. 1º, III). Sua aplicação, no entanto, não pode ter o condão de abolir totalmente os chamados crimes de perigo abstrato, mas tão somente temperar o rigor de uma presunção absoluta e inflexível. A ofensividade deve ser empregada para afastar as hipóteses de crime impossível, em que o comportamento humano jamais poderá levar o bem jurídico a lesão ou a exposição a risco de lesão". [17] E certamente não é essa situação de crime impossível que ocorre com relação ao perigo provocado por aquele que dirige automotores sob efeito de álcool ou drogas no trânsito viário.


3 – CONCLUSÃO

No decorrer deste trabalho foi analisada a questão da natureza do crime previsto no artigo 306, CTB, especialmente após as alterações promovidas pela nova Lei 11.705/08.

Constatou-se que hoje reaviva-se a antiga polêmica sobre tratar-se de crime de perigo concreto ou abstrato ou mesmo de crime de dano.

Em face da nova redação, que excluiu a exigência literal da produção de "dano potencial" à incolumidade de outrem, conclui-se que o novo crime de embriaguez ao volante se perfaz pela mera conduta de dirigir veículo automotor na via pública nas condições descritas no tipo penal, o que o torna um crime de perigo abstrato, utilizando-se essa terminologia por tratar-se daquela que melhor descreve o tratamento que deve ser dado ao caso. Entretanto, não se trata propriamente de presumir um perigo, mas de reconhecer a situação clara e evidente de perigo que constitui a direção sob efeito de álcool ou de substâncias psicoativas, fruto da experiência cotidiana do trânsito, de critérios científicos e das estatísticas contundentes sobre acidentes de trânsito. Talvez uma melhor designação seja como um "crime de perigo notório, evidente ou patente".

A opção legislativa não viola o Princípio da Ofensividade porque trilha o estreito caminho reservado ao perigo abstrato no Direito Penal Moderno, apenas reconhecendo o óbvio fato de que dirigir automotores na via pública sob efeito de drogas ou álcool é uma conduta intrinsecamente perigosa, a qual não demanda maiores perquirições. Comprovar o perigo de tal conduta casuisticamente seria exigir a demonstração do evidente, do manifesto, do patente, o que, quando não reflete obtusidade, só pode alimentar o cinismo. Afinal, a própria lei e o bom senso nos apontam que "não dependem de prova os fatos notórios".


4-REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Primeiras impressões sobre as inovações do Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em www.jusnavigandi.com.br , acesso em 02.07.2008.

CAPEZ, Fernando, GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Aspectos Criminais do Código de Trânsito Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 4. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

GOMES, Luiz Flávio. Reforma do Código de Trânsito (Lei n. 11.705/2008): novo delito de embriaguez ao volante. Disponível em www.jusnavigandi.com.br , acesso em 04.07.2008.

GRECO, Luís. Princípio da ofensividade e crimes de perigo abstrato – Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 49, jul./ago., p. 89 – 147, 2004.

JESUS, Damásio Evangelista de. Crimes de Trânsito. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

MARCÃO, Renato. Embriaguez ao volante, exames de alcoolemia e teste do bafômetro. Uma análise do novo art. 306, caput, da Lei 9503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro). Disponível em www.jusnavigandi.com.br , acesso em 11.07.2008.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2006.

RIZZARDO, Arnaldo. Comentários do Código de Trânsito Brasileiro. 4ª ed. São Paulo: RT, 2003.

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra – Individual. São Paulo: RT, 2003.


Notas

  1. Apud, JESUS, Damásio Evangelista de. Crimes de Trânsito. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 165.
  2. Apud, Op. Cit., p. 166.
  3. Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro. 4ª ed. São Paulo: RT, 2003, p. 642.
  4. Aspectos criminais do Código de Trânsito Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 43.
  5. Op. Cit., p. 166.
  6. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra – Individual. São Paulo: RT, 2003, p. 97.
  7. CAPEZ, Fernando, GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Op. Cit., p. 43.
  8. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Op. Cit., p. 121 – 122.
  9. Op. Cit., p. 123.
  10. GRECO, Luís. Princípio da ofensividade e crimes de perigo abstrato – Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 49, jul./ago., 2004, p. 112 – 113.
  11. Op. Cit., p. 113.
  12. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Primeiras impressões sobre as inovações do Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em www.jusnavigandi.com.br , acesso em 02.07.2008, p. 18. No mesmo sentido: MARCÃO, Renato. Embriaguez ao volante, exames de alcoolemia e teste do bafômetro. Uma análise do novo art. 306, caput, da Lei 9503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro). Disponível em www.jusnavigandi.com.br , acesso em 11.07.2008, p. 1. "O crime, agora, é de perigo abstrato; presumido".
  13. Reforma do Código de Trânsito (Lei n. 11.705/2008): novo delito de embriaguez ao volante. Disponível em www.jusnavigandi.com.br , acesso em 04.07.2008, p. 2.
  14. Talvez uma proposta inovadora terminologicamente pudesse ser a de "crimes de perigo notório, evidente ou patente".
  15. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 251.
  16. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 4. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 324.
  17. Op. Cit., p. 325.
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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Álcool e volante.: Até quando será preciso provar o que é notório?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1842, 17 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11503. Acesso em: 20 abr. 2024.

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