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A inconstitucionalidade da reforma do Código de Trânsito Brasileiro e seus aspectos sociais e morais

03/07/2008 às 00:00
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INTRODUÇÃO

No dia 20/06/2008 foi publicada a Lei nº. 11.705/2008 que, dentre outras disposições, altera o Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº. 9.503/1997). O objetivo deste artigo é demonstrar a inconstitucionalidade do novo § 3º. do artigo 277 do Código de Trânsito Brasileiro, incluído pela lei supracitada, bem como analisar brevemente seus aspectos sociais e morais.

Observe-se a atual redação do artigo e de seus respectivos parágrafos:

Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência do álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado.

§ 1º Medida correspondente aplica-se no caso de suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos.

§ 2º A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor.

§ 3º Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.

Nota-se que o novo dispositivo é uma flagrante ofensa ao princípio constitucional da presunção de inocência, bem como a direitos fundamentais garantidos na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).


O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

O artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil enumera os direitos e garantias fundamentais. Em seu inciso LVII, dispõe que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Daí decorre o conhecido princípio da presunção da inocência, que nada mais é do que a proibição de se imputar pena a alguém sem que este tenha sido condenado por sentença penal condenatória irrecorrível, ou seja, transitada em julgado.

Nesse contexto, Fernando da Costa Tourinho Filho (Manual de Processo Penal, 6 ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 28/29) leciona:

[O princípio da inocência] É um ato de fé no valor ético da pessoa, próprio de toda sociedade livre(...) Assenta no reconhecimento dos princípios do direito natural como fundamento da sociedade, princípios que, aliados à soberania do povo e ao culto da liberdade, constituem os elementos essenciais da democracia.

(...)

Aí esta o princípio: enquanto não definitivamente condenado, presume-se o réu inocente. (...) ninguém pode ser punido antecipadamente, antes de ser definitivamente condenado (...).

Já o constitucionalista Alexandre de Moraes (Direito Constitucional, 15 ed., São Paulo: Atlas, 2004, p. 133) expõe:

Dessa forma, há a necessidade de o Estado comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é constitucionalmente presumido inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio estatal.

Com efeito, a culpa de alguém pela prática de determinado fato não se presume, sendo a sua inocência regra. Enquanto não restar cabalmente comprovado, através das provas em direito admitidas, que o condutor dirigia veículo sob a influência (expressão que será analisada adiante) de álcool ou outra substância psicoativa, não pode a este ser imputada qualquer penalidade, independentemente da sua recusa em se submeter a qualquer exame.

Forçoso concluir que a imposição de pena "automática", em caso de recusa do condutor a se submeter a exames de alcoolemia, é uma flagrante afronta ao princípio constitucional da presunção da inocência.

Veremos adiante que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. A recusa, portanto, constitui exercício regular de direito, não podendo este simples fato ser punido em qualquer esfera. Cabe à autoridade competente produzir as provas da embriaguez, não podendo ser o condutor obrigado a produzi-las em seu prejuízo.


CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

A Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, foi ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992 e promulgada pelo Decreto nº. 678, de 6 de novembro de 1992.

Pela norma esculpida no § 3º do art. 5º da Constituição da República, "os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais".

De se ver, portanto, que a Convenção Americana de Direitos Humanos equivale, na hierarquia normativa brasileira, a emenda constitucional, estando no plano da Constituição Federal, acima das leis ordinárias e, conseqüentemente, do Código de Trânsito Brasileiro.

Passa-se então, à análise de alguns dos direitos fundamentais garantidos e obrigatórios no ordenamento jurídico brasileiro.

O art. 8º, números 2 e 9 do Pacto de San José positiva, respectivamente, os princípios da presunção de inocência – vê-se, aqui, a grande relevância deste princípio – e da não auto-incriminação, em latim nemo tenetur se detegere, a seguir:

Art. 8º - Garantias Judiciais

(...)

2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

(...)

9. direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada;

Sobre o princípio da presunção de inocência já se discorreu. Já o princípio da não auto-incriminação traduz-se em uma simples constatação: ninguém poderá ser obrigado, por qualquer meio, por qualquer autoridade, a produzir provas contra si mesmo.

Poder-se-ia alegar que estes direitos fundamentais somente seriam garantidos durante a tramitação do processo judicial. Todavia, à luz do Estado Democrático de Direito, sob o qual vivemos, esta afirmação não pode prosperar.

A democracia pressupõe a liberdade individual e, para sua garantia, mister que os cidadãos não sejam compelidos compulsoriamente a se auto-incriminarem. Caso contrário, estaríamos sob a égide de um Estado de Exceção, autoritário, em que autoridades poderiam lançar mão de meios obscuros e ilegítimos para obter provas que, por sua própria diligência, não conseguiram.

Por último, mas não menos importante, temos o direito fundamental à integridade física, psíquica e moral, previsto no art. 5º., número 1, do mesmo diploma internacional. Em suma, este direito protege o indivíduo contra qualquer agressão externa em sua incolumidade física, psíquica e moral.

A interpretação sistemática destes direitos fundamentais, direcionada ao tema de estudo, só permite uma conclusão: o § 3º do art. 277 do Código de Trânsito Brasileiro é inconstitucional, pois fere os direitos fundamentais da presunção de inocência, da não auto-incriminação e da integridade física, psíquica e moral.

Ao dispor que o cidadão que legitimamente exercer o seu direito de não produzir provas contra si mesmo será automaticamente punido, sem qualquer prova contundente a seu desfavor, o Código de Trânsito simplesmente desconsidera a existência e a supremacia da Constituição Federal.

Ora, se ninguém é obrigado a produzir qualquer prova em seu prejuízo; se o cidadão é inocente até que se prove o contrário; e se a integridade física, moral e psíquica é resguardada constitucionalmente; a conclusão só pode ser uma: não só tem o condutor direito a se negar à realização do etilômetro ou bafômetro, mas também a quaisquer outros exames de alcoolemia, como o exame de sangue e o exame de urina, já que estes últimos constituem grave invasão e violação da integridade física do indivíduo.

Só se pode admitir, à luz da atual principiologia constitucional, que alguém seja punido administrativa ou criminalmente pelo fato "dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência (art. 165, CTB)", caso haja prova inequívoca de que o condutor de fato ingeriu bebida alcoólica. Contudo, o ônus desta prova não pode ser transferido ao condutor, pelos motivos já expostos, cabendo à autoridade encontrar meios para auferir a embriaguez.

Vale dizer: se o condutor aceitar se submeter a algum exame de alcoolemia, não há o que se discutir. A prova está produzida e tanto pior para ele se houver ingerido bebida alcoólica antes de dirigir. Mas, no momento em que o indivíduo se nega, repita-se, legitimamente, à realização dos exames, somente poderá ser punido caso a autoridade consiga produzir outra prova inequívoca de sua conduta ilícita, tal como o exame clínico por um médico qualificado para tal. Caso contrário, ilícita e inconstitucional qualquer punição administrativa ou criminal.


A EXPRESSÃO "SOB INFLUÊNCIA" NO CONTEXTO DA LEI

No contexto das novas disposições do Código de Trânsito Brasileiro, mister uma interpretação da expressão "sob influência" contida nos artigos 165 e 277 do diploma legal.

A nosso ver, outra não pode ser a interpretação senão a de que "sob influência" significa uma alteração no ânimo da pessoa causada pelo álcool. Não basta que se tenha ingerido uma pequena dose, sem alteração do ânimo, para a aplicação da penalidade administrativa e, dependendo do caso, criminal.

Nessa linha de raciocínio, o eminente jurista Luiz Flávio Gomes (Novo delito de embriaguez ao volante, Jornal Estado de Minas, seção Direito e Justiça, publicado em 30/06/2008), entende que:

O que significa estar "sob a influência" de uma substância psicoativa? O estar "sob influência" exige a exteriorização de um fato (de um plus.) que vai além da embriaguez, mas derivado dela (nexo de causalidade). Ou seja: não basta a embriaguez (o estar alcoolizado), impõe-se a comprovação de que o agente estava sob "sua influência", que se manifesta numa direção anormal (que coloca em risco concreto a segurança viária).

Questiona-se agora duas situações especiais: a do portador de doença cardíaca que tem como recomendação médica a ingestão diária de um cálice de vinho durante o almoço e a de um indivíduo que em determinado dia ingeriu dosagens altas de álcool tendo ainda, no dia seguinte, resquícios da embriaguez póstuma.

Ora, no primeiro caso é público e notório os benefícios que pequenas dosagens de álcool trazem para a saúde das pessoas, notadamente ao bom funcionamento do coração. Imagine-se um senhor de 60 anos, com problemas cardíacos crônicos e que, por recomendação de seu médico, acostumou-se a ingerir uma taça de vinho diariamente durante o almoço. Sai para trabalhar de tarde, em seu veículo, e é parado em uma blitz. O bafômetro acusa, então, uma pequena concentração de álcool no ar expedido de seus pulmões, dosagem esta terapêutica e que em nada afeta seu discernimento para conduzir um veículo. Estaríamos diante da situação prevista no art. 165 do CTB. Resta a dúvida: há justiça e razoabilidade em se aplicar a este senhor com problemas cardíacos uma multa de quase R$ 1.000,00 (mil reais) e ainda suspender o seu direito de dirigir por 1 (um) ano?

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Salvo melhor juízo, tal penalidade constitui uma anomalia jurídica. O espírito da Lei nunca deve ser punir os corretos por atitudes dos irresponsáveis, ou, como diz o ditado, "os justos pelos pecadores".

A segunda situação é ainda mais crítica. Imagine-se que num sábado uma pessoa promova uma festa em sua residência e beba altas dosagens de álcool. No domingo, acorda cedo e resolve passear com seu filho em um parque. É parado em uma blitz e submetido ao etilômetro. Resultado: existe uma leve concentração de álcool em seu organismo, já que o tempo de metabolismo do álcool varia de pessoa para pessoa. Mais uma vez, vê-se aqui uma anomalia jurídica. Estando em perfeito estado de consciência e sem nenhuma influência do álcool, o coitado do cidadão será gravemente punido.


A "INDÚSTRIA" DA MULTA

Sem prejuízo da já exposta inconstitucionalidade da nova "Lei Seca", há ainda um último fator a se analisar. Trata-se da perigosa e imoral indústria das multas. Em denúncia publicada no Jornal Estado de Minas do dia 06 de junho de 2008 (caderno Gerais, p. 24), o Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Assessoramento, Pesquisas, Perícias e Informações de Minas Gerais (Sintappi/MG) revela a inescrupulosa indústria de multas operante na cidade de Belo Horizonte.

De acordo com a reportagem, os agentes da BHTrans, empresa de monitoramento e fiscalização de trânsito na cidade, possuem uma meta pessoal de 18 autuações por dia para terem direito a horas extras e folgas nos sábados.

Em outra reportagem, também do Jornal Estado de Minas, do dia 11 de junho de 2008 (caderno Gerais, p. 21), noticiou-se o aumento de 51% nas autuações de trânsito em Belo Horizonte, em apenas dois anos (de 2005 a 2007).

Estas reportagens somente trazem à baila o que todos os cidadãos sempre souberam. Há, nos bastidores, enorme pressão das prefeituras e demais órgãos estatais para que se aplique o maior número de multas possível, incrementado sobremaneira a abusiva e ilícita renda em proveito dos mesmos.

Assim, o futuro que nos espera é negro. Com a inconstitucional autorização do Estado para que policiais e agentes de trânsito possam aplicar graves penalidades administrativas sem que haja qualquer prova contundente, a indústria da multa ganhou um importante mas ardiloso artifício para aumentar ainda mais sua lucratividade.

Triste realidade que esperamos seja alterada mediante atuação dos órgãos competentes para questionar a flagrante inconstitucionalidade da nova lei junto ao Supremo Tribunal Federal.

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Sobre o autor
Rafael de Oliveira Lage

Advogado, Bacharel em Direito pela Pontífícia Universidade Católica de Minas Gerais, Pós-Graduando em Direito Civil pelo IEC/PUC Minas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LAGE, Rafael Oliveira. A inconstitucionalidade da reforma do Código de Trânsito Brasileiro e seus aspectos sociais e morais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1828, 3 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11462. Acesso em: 19 abr. 2024.

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