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O FIA e as so(m)bras do orçamento público.

Da (des)consideração absoluta à otimização de recursos para o Orçamento Criança e Adolescente (OCA)

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O Fundo da Infância e Adolescência enfrenta carência absoluta de verbas para a efetivação das políticas, tão míseras (ou inexistentes) as dotações orçamentárias que lhe são destinadas.

Síntese Dogmática: O FIA assume papel de destaque na estruturação da rede de atendimento que viabiliza a execução de eficientes políticas públicas para a infância e juventude, razão pela qual, uma vez constatado desrespeito aos comandos legais da prioridade absoluta e da destinação privilegiada de recursos quando da elaboração das peças orçamentárias, é preciso traçar estratégias de intervenção capazes de otimizar a destinação de recursos públicos exclusivos para essa área, se preciso acionando o Poder Judiciário para estabelecer obrigação de fazer e impor a devida responsabilização do agente político.

Sumário: 1. Apresentando o problema; 2. O valor do Fundo da Infância e Adolescência para a concretização da rede de atendimento; 3. A prática da (des) consideração absoluta como problema de natureza orçamentária. No fundo, no Fundo, o que sobra para execução das políticas públicas infanto-juvenis?; 4. As alternativas de intervenção para otimização dos recursos públicos no FIA; 4.1. O concurso cumulativo de vários protagonistas para o exame e monitoramento contábil dos papéis orçamentário; 4.1.1. O papel do CT, do CMDCA, do Poder Legislativo e dos Tribunais de Contas; 4.1.2. O Ministério Público como órgão de controle social; 4.1.3. O respaldo do Poder Judiciário na judicialização do problema; 4.2. A responsabilização e o ato de improbidade administrativa do agente político que desrespeita o princípio da prioridade absoluta; 4.3. Conveniência de edição legislativa para estabelecer critérios objetivos e parâmetros quanto ao cumprimento da prioridade absoluta do OCA; 5. Conclusão.

"Se o chão abriu sob os seus pés e a segurança sumiu da faixa,

Se as peças estão todas soltas e nada mais encaixa, (...)

Você implora por proteção. Não sabe como vai acabar

Ô, crianças, isso é só o fim, isso é só o fim!"

(Marcelo Nova)


1. Apresentando o problema

Prestes a alcançar a maioridade, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA ainda habita um mundo imaginário [01] em muitos municípios do nosso imenso país. A deficitária implementação das políticas públicas infanto-juvenis demonstra que, ao lado do cínico e cênico discurso protetivo amplamente divulgado, opera-se uma nefasta prática de exclusão.

Vencido o paradigma da situação irregular, em vez de abusivos encargos tutelares atribuídos ao Poder Judiciário, de pontuais ações assistencialistas realizadas pelo Executivo e de formais homologações emanadas do Legislativo, a atuação na área infanto-juvenil exige renovado palco e diferenciada intervenção de protagonistas. Nessa arejada atmosfera, a prioridade absoluta torna-se o foco para a efetivação das políticas públicas infanto-juvenil pelos agentes políticos. Por sua vez, os magistrados, agora voltados para o desempenho de típica atividade jurisdicional, devem pautar suas decisões no paradigma da proteção integral [02]. A experimentação desse novo espaço, somada à revisão crítica dos papéis exercidos por velhos e novos protagonistas, permitirá a implementação de uma rede de atendimento pautada na descentralização, tendo como diretrizes a municipalização e a democracia participativa [03]. Surge, assim, novo locus de discricionariedade da administração pública: os Conselhos de Direitos.

Apesar de o ECA prescrever a descentralização da estrutura política desta área, através de conselhos de direitos da criança e do adolescente, o Juizado da Infância e da Juventude ainda é tido, pela população de maneira geral, como o lugar por excelência da defesa dos direitos de crianças e jovens. (...) A administração da política de proteção social acompanha as formas autoritárias dos governos que, longe de buscar uma aproximação dos setores que demandam formas de proteção, faz uso político de sua implementação em benefício próprio. (...) Novos discursos com velhas práticas é o que se presencia no Brasil. (NASCIMENTO e SCHEINVAR)

Tal situação exige uma nova postura do Município: a responsabilidade pela execução das políticas públicas e, consequentemente, a destinação privilegiada e exclusiva de verbas ao Orçamento Criança e Adolescente – OCA. Em outras palavras, é dever de cada município estruturar órgãos e alocar recursos financeiros suficientes à deliberação e execução de políticas públicas destinadas a crianças e adolescentes. Nesse contexto, o Conselho Tutelar, o Conselho de Direitos das Crianças e Adolescentes e o Fundo da Infância e Adolescência constituem os 03 (três) eixos fundamentais cuja coexistência e bom funcionamento tornam-se imprescindíveis para a concretização da rede municipal de atendimento.

Contudo, decorridos dezoito anos de luta pela construção de uma ideal política de atendimento, nota-se que, na "casa" de efetivação dos direitos fundamentais infanto-juvenis, ao mesmo tempo em que sobra "chão" (situações de risco), não raras vezes faltam "porta" (Conselho Tutelar), "parede" (Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente) e, especialmente, "telhado" (recursos públicos).

Causa espanto que, em centenas de municípios brasileiros, sequer se criou o Conselho Tutelar - CT, órgão responsável pelo zelo dos direitos fundamentais da infância e adolescência. Além disso, em milhares de outros, mesmo a implementação formal desses colegiados contrasta com a sua precária estruturação humana e material, abrangendo tanto a ausência de uma política de valorização e formação continuada, como a notória insuficiência da remuneração, sem falar na falta de estrutura material para cumprimento das suas funções. Também escassos e débeis os programas específicos de atendimento [04] capazes de subsidiar a sua atuação.

Mais do que isso, a despeito de estarem criados, praticamente todos os Conselhos Municipais de Direitos da Criança e Adolescente - CMDCA enfrentam sérias dificuldades no exercício do papel deliberativo e delimitador dos programas que carecem de implementação junto a suas comunidades. No mais das vezes, as políticas públicas nessa área (quando existem), são executadas sem prévia deliberação e efetiva fiscalização do CMDCA, ilegalidade gravemente ofensiva ao postulado da democracia participativa, pois, "uma vez nomeados os seus membros, são inconstitucionais todos os projetos governamentais que venham a ser executados para a infanto-adolescência sem a legítima participação da sociedade civil contida nas deliberações do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente". (PONTES JÚNIOR).

Para completar esse quadro caótico, expondo o maior vértice de toda a problemática, o Fundo da Infância e Adolescência – FIA, de modo geral, mesmo quando regularmente criado, enfrenta carência absoluta de verbas para a efetivação das políticas, tão míseras (ou inexistentes) as dotações orçamentárias que lhe são exclusivamente destinadas.

Propor alternativas de intervenção passíveis de serem implantadas pelas instituições e organizações políticas e sociais para incremento e otimização dos recursos do FIA é um dos objetivos deste estudo. Busca-se, na essência, enfatizar a importância de Ministério Público e demais órgãos oficiais de controle social (v.g, Tribunal de Contas, Poder Legislativo, Conselhos de Direitos da Criança e Adolescente e Tutelar) priorizarem o combate aos orçamentos ilegais editados em descompasso com os critérios da Constituição da República e do Estatuto da Criança e Adolescente. Ausente a correção administrativa da conduta pelos agentes políticos, mesmo enquanto se aguarda oportuno aperfeiçoamento legislativo, pretende-se exortar o Poder Judiciário a decidir, com acurado senso social e sentimento de constitucionalidade, as demandas coletivas envolvendo, direta ou indiretamente, direitos fundamentais de crianças e adolescentes, inclusive os litígios de ordem orçamentária.


2. O valor do Fundo da Infância e Adolescência para a concretização da rede de atendimento

A necessidade de vincular determinadas verbas à execução de específicas políticas públicas fez a Lei n° 4.320/64 permitir a criação dos fundos especiais [05], destinados a otimizar a captação, aplicação e fiscalização dos recursos que lhe são dirigidos. [06]. Tal como existem fundos especiais na educação e saúde, nada mais coerente que o ECA tenha previsto a instituição do FIA [07] nos três níveis da Federação, merecendo destaque o fundo vinculado a cada um dos Municípios, a quem compete, primordialmente, estruturar a rede de atendimento do sistema de direitos e garantias.

As receitas do FIA devem ser geridas pelo CMDCA com autonomia e independência do Executivo, a quem apenas cabe apenas operacionalizar a ordenação da despesa sob o ponto de vista contábil [08][09]. Esses créditos serão prioritariamente utilizadas em programas de proteção social dirigidos a crianças e adolescentes em situação de risco social e pessoal, em diagnósticos sobre a situação infanto-juvenil local, em projetos de divulgação do ECA e do próprio Fundo e em cursos de formação dos integrantes do sistema de garantia de direitos.

Retomando a conexão existente entre os integrantes do tríplice eixo sobre o qual se assenta a rede municipal de atendimento (CT-CMDCA-FIA), relevante notar que o funcionamento dos programas específicos de atendimento torna-se imprescindível para a realização das medidas protetivas e de responsabilização aplicadas pelo Conselho Tutelar [10] ao ponto de eventual inércia do CMDCA em deliberar sobre ditos programas, cumulada com a falta de compromisso do Executivo em alocar recursos no FIA prejudica invariavelmente os resultados a serem obtidos pela intervenção do CT, desestruturando e desestabilizando, assim, toda a complexa cadeia que compõe o paradigma da proteção integral.


3. A prática da (des) consideração absoluta como problema de natureza orçamentária. No fundo, no Fundo, o que sobra para execução das políticas públicas infanto-juvenis?

"Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada (...) Ninguém podia, subir na rede, porque, na casa, não tinha parede (...) mas era feita com muito esmero na Rua dos Bobos, número zero" (Vinícius de Moraes)

Apesar de o princípio constitucional da prioridade absoluta ter sido reforçado pela destinação privilegiada e preferencial de recursos públicos para políticas públicas voltadas à população infanto-juvenil [11], a realidade, em matéria orçamentária, tem sido (des) figurada na ótica da "(des) consideração absoluta". Tais premissas ainda são muito mais palavras (falsas promessas, típicas dos "discursos de palanque") do que números (rubricas orçamentárias). Nesse campo, a prática desmente a retórica, a realidade trai o discurso: o diagnóstico é de sombra, no qual só o que não sobra são recursos públicos!

(...) a vontade política de encontrar a solução era desmentida pela simples leitura dos orçamentos públicos: era discurso sem prática. (...) A partir do advento do Estatuto, instrumentos técnicos surgem para permitir a mudança desse quadro, sobretudo no que se refere ao princípio da prioridade absoluta previsto no art. 227 da Constituição Federal e no art. 4° do Estatuto, onde se impõe ao administrador a destinação privilegiada de recursos públicos para essa área. A bem da verdade, as coisas não se modificaram num toque de mágica – aliás, até o momento ainda persistem alguns gestores na prática do descumprimento dessa norma, deixando de privilegiar, no orçamento, as políticas públicas direcionadas às crianças e aos adolescentes." (LIBERATI e CYRINO)

Se todas as despesas e receitas públicas carecem de previsão orçamentária, a "janela" para compelir os Municípios a cumprirem com os comandos legais passa pelo controle e monitoramento minucioso das normas orçamentárias, notadamente da Lei Orçamentária Anual – LOA. FIA "próximo de zero" ou orçado de forma ínfima e desproporcional em relação a outros gastos públicos é sinônimo de "desconsideração absoluta"!


4. As alternativas de intervenção para otimização dos recursos públicos no FIA

Já que, na prática, os recursos do FIA Municipal na prática ou inexistem ou são insuficientes, resta saber quais as intervenções passíveis de serem utilizadas pelos órgãos oficiais e organizações sociais para a modificação desta lastimável realidade. Por mais que o Ministério Público possa protagonizar a fiscalização e tomar providências extraprocessuais e judiciais, torna-se fundamental o engajamento de outros órgãos oficiais (Tribunal de Contas, Poder Legislativo, Conselho de Direitos da Criança e Adolescente e Conselho Tutelar) e a mobilização de segmentos da sociedade civil [12] para que a prioridade absoluta na destinação dos recursos públicos transite do discurso vazio para a plena aplicabilidade. É justamente a partir da diretriz da municipalização que o planejamento de ostensiva e estratégica intervenção será enfocado.

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4.1. O concurso cumulativo de vários protagonistas para o exame e monitoramento contábil dos papéis orçamentários

4.1.1. O papel do CT, do CMDCA, do Poder Legislativo e dos Tribunais de Contas

Quando da elaboração do quadro orçamentário, em especial da LOA, convém que o CMDCA e o CT, cumprindo determinação legal [13], participem ativamente desse processo para que, de posse de critérios objetivos e idôneos, afira-se a quantidade e espécie dos recursos destinados ao Orçamento Criança e Adolescente – OCA, obrigação que, de modo geral, não vem sendo cumprida a contento, o que inexoravelmente traz reflexos negativos na composição do FIA. Certo é que os papéis orçamentários não podem permanecer ilustres desconhecidos das autoridades locais, muito menos do CT e do CMDA, legítimas instâncias da sociedade organizada, razão pela qual esses, em caráter prioritário, devem monitorar a qualidade do orçamento elaborado pelo Executivo, cotejando-o com padrões objetivos coerentes com a realidade local. [14] Ressalte-se que a participação do CMDCA na elaboração do OCA, em vez de ser mera liberalidade do administrador, constitui dever deste, cujo desatendimento é capaz de macular a manutenção da proposta orçamentária enquanto decisão política que precisa guardar harmonia com o princípio da democracia participativa.

Sendo obrigatória a destinação preferencial e prioritária de verbas para tal área e ocupando o CMDCA o papel de órgão deliberativo das políticas públicas infanto-juvenis (portanto centro de decisão administrativa que vincula o gestor), não pode o Executivo eximir-se de prever recursos para subsidiar os programas de atendimento e, mais ainda, de fazê-lo na forma deliberada pelo Conselho de Direitos, desde que a decisão do colegiado esteja "em conformidade com os requisitos e pressupostos dos atos administrativos em geral e, ainda, com as regras procedimentais constantes da legislação de regência". (TAVARES, p. 379).

Para tanto, deve existir programa de formação continuada dirigido aos integrantes dos Conselhos de Direitos e Tutelar habilitando-os a compreender e discutir as três normas orçamentárias: Plano Plurianual – PPA, Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO e Lei Orçamentária Anual – LOA [15]. O PPA estabelece as prioridades governamentais para os três primeiros anos do mandato vigente e o inicial do subseqüente, servindo de base para as duas outras; a LDO detalha as metas do PPA a serem cumpridas no ano em vigência; por fim, a LOA estima as receitas e despesas anuais de cada rubrica orçamentária.

Respeitado o limite de suas atribuições, ambos os Conselhos devem estar articulados e preparados para atuar permanentemente sobre o tema, tanto na elaboração das três peças orçamentárias como no acompanhamento de sua execução. Como gestor do FIA, compete ao CMDCA elaborar os planos de ação (documento que define as metas deliberadas pelo Conselho, estabelecendo as atividades a serem implementadas com os recursos do FIA) e de aplicação (distribuição dos recursos para as ações escolhidas pelo CMDCA como prioritárias). Esses instrumentos devem integrar a proposta orçamentária do Executivo, para tornar reais as decisões políticas do CMDCA. Tais planos precisam ser concebidos em parceria com o Conselho Tutelar, cujos membros, por conta da lida diária com os problemas infanto-juvenis, possuem condições de assessorar a concepção da proposta orçamentária, inclusive com sugestões sobre quais as prioridades a serem trabalhadas. Não basta, contudo, que ambos os Conselhos atuem na elaboração das normas orçamentárias, precisam também fazerem-se presentes, intervindo de forma efetiva tanto previamente como durante as sessões legislativas de votação, se preciso fazendo uso da palavra, tudo para que a proposta inicial não seja desvirtuada (por ignorância ou falta de esclarecimento). Com isso, poderá surgir espaço para pôr em prática o compromisso de Vereadores, pressionados pelos Conselheiros Tutelares e de Direitos bem como por representantes de organizações não-governamentais, para que, havendo necessidade, ocorra a devida correção orçamentária.

Independentemente do trabalho dos colegiados acima, cabe ao Legislativo local, de preferência assessorado pelo Tribunal de Contas, assumir o papel de fiscal crítico e participativo, deixando de ocupar posição puramente formal e chancelatória das peças orçamentárias remetidas pelo Executivo para, se preciso, buscar a correção dessas pelas providências ao seu alcance.

Ao Tribunal de Contas, atuando dentro de sua autonomia, também compete disponibilizar sua qualificada equipe técnica para realizar permanente auditoria sobre as peças orçamentárias e participar tais informações e relatórios aos demais órgãos que operam no sistema, notadamente os Conselhos e o Ministério Público.

4.1.2. O Ministério Público como órgão de controle social

Como guardião dos direitos e garantias assegurados às crianças e aos adolescentes [16], o Ministério Público deve ser destinatário das selecionadas informações pertinentes à elaboração do OCA, para aferir eventuais distorções orçamentárias e atuar resolutivamente [17], adotando medidas extrajudiciais para as devidas correções (via recomendação administrativa ou termo de ajustamento de conduta), ou, em último recurso, interferir de modo demandista, deduzindo ação civil pública contra o Município. Havendo estrutura e recursos humanos suficientes, também convém que o Ministério Público priorize, em seu planejamento estratégico, a lotação de cargos auxiliares [18] de auditores contábeis para análise orçamentária, a qual, na falta de maior especificidade legislativa, deve ser feita com base em parâmetros e informações objetivas comparados com as demais rubricas orçamentárias, considerando, inclusive, as carências da rede de atendimento.

Mesmo na falta de detalhamento legislativo sobre o tema, é possível, com soluções criativas, em cada caso concreto, constatar se há, ou não, violação dos paradigmas legais da prioridade absoluta e destinação privilegiada de verbas, retirando-se, assim, máxima amplitude e eficácia dos mencionados dispositivos. Inicialmente, o Promotor de Justiça verificará se o planejamento orçamentário contempla rubricas destinadas ao funcionamento do Conselho Tutelar, inclusive relativas à remuneração dos membros, estrutura física, transporte, formação continuada. Em seguida, examinará se há previsão para cursos dirigidos ao CMDCA, estrutura de apoio a esse órgão, despesas com pagamento de diagnóstico e elaboração dos planos de ação e aplicação, essenciais para a efetivação da política municipal de atendimento. Feito isso, observará se os gastos com os Gabinetes do Executivo e do Legislativo ou custeio de outras despesas são excessivos em comparação com o OCA. Todo esse cuidado é necessário porque não basta a destinação de recursos, sendo preciso que esses sejam não só suficientes como privilegiados e proporcionais ao tamanho e à riqueza do Município, afinal de contas, tem faltado coerência e sobrado violações aos comandos legais, seja para estruturar a rede de atendimento, seja para alocar recursos no FIA.

Assim, além da responsabilidade de bem articular os conselhos de atuação municipal (Tutelar e CMDCA), o Ministério Público tornou-se importante protagonista para a efetivação dos mencionados dispositivos normativos que, necessariamente, antes de retórica vazia e estéril, precisam repercutir no quadro orçamentário. Afinal de contas, como bem lembrado por Olympio de Sá Sotto Maior Neto, "além da escola, da família e de outros espaços adequados para o seu desenvolvimento - lugar de criança é nos orçamentos públicos".

Nota-se, pois, que, em decorrência do trabalho conjunto entre o Ministério Público e os demais órgãos supracitados, a costumeira proposta orçamentária mal-elaborada pelo Executivo, intencionalmente ou não, deixará de ser meramente homologada pelo Legislativo para, se preciso, ser submetida à apreciação do Poder Judiciário por assumir natureza de situação ilícita capaz de ensejar tanto a correção judicial como a responsabilização do gestor no plano da improbidade administrativa.

4.1.3. O respaldo do Poder Judiciário na judicialização do problema

Uma vez provocado a decidir sobre o tema, espera-se que o Poder Judiciário supere ultrapassado entendimento procedimentalista vinculado às tradicionais e emboloradas teses da separação de poderes e discricionariedade administrativa, as quais, não raras vezes, dificultam a concretização do ideal de transformação social inerente ao Estado Democrático de Direito. Dispensa-se o argumento da imaginária separação absoluta, incompatível com o sistema de freios e contrapesos de controle e fiscalização recíproca entre os poderes, bem como não se aceita a ilimitada discricionariedade administrativa, a qual tolera que agentes políticos se sintam desobrigados de cumprir os comandos legais da prioridade absoluta e destinação preferencial de recursos públicos.

Independentemente de que conveniente edição legislativa explicite o detalhamento dos comandos legais mencionados, o que facilitará o trabalho dos operadores do direito, imprescindível que estejam os magistrados dispostos a exercer o papel de corajosos guardiães da Carta Magna cuja finalidade busca verdadeira e legítima jurisdição inclusiva [19], no tema da judicialização de políticas públicas. A efetividade da prestação jurisdicional, nesse campo, depende do sensível uso de ferramentas hermenêuticas pelo julgador preocupado em concretizar o princípio da prioridade absoluta em matéria orçamentária, a fim de romper com uma visão asséptica e mecanicista, verdadeiro flagelo sobre a realidade de crianças e adolescentes em situação de risco social [20], dependentes da estruturação de uma eficiente rede de atendimento.

O Judiciário, uma vez acionado, sem descurar das premissas da filosofia da linguagem, deve sair literalmente da sua inércia existencial para, debruçando-se sobre os comandos da prioridade absoluta e destinação preferencial de recursos públicos, deles extrair "significantes" e "significados" coerentes e capazes de produzir reflexos obrigatórios na esquematização dos orçamentos públicos. Somente assim se efetivarão políticas públicas no sinuoso trajeto capaz de conduzir a população infanto-juvenil da "exclusão" para a "cidadania".

"O Direito sofreu (...) as influências desse modelo em crise que levou ao seu empobrecimento e à sua inércia em lidar com questões urgentes da sociedade complexa e multicultural de nossos dias, através do abandono progressivo da filosofia na miséria cotidiana da práxis positivista. (...) o positivismo tentou reduzir esse saber complexo (...) à mera técnica, qual seja, saber subsumir a regra posta pelo Estado ao caso concreto (...) pensamos as categorias do Direito, como a justiça, a segurança e a estabilização das expectativas como o resultado da aplicação da lei, uma operação lógica, simples e automática de dedução. Mas o Direito é muito mais do que isso: não só a equiparação do Direito à lei é um mito positivista, quanto a simplificação do processo de aplicação, ou seja, a dedução também o é. O Direito exige muito mais de nós e por isso que não podemos abrir mão da dimensão crítico-reflexiva que a filosofia nos propõe" (BRAGATO)

Dessa forma, em tempos pós-modernos de giro lingüístico, de resgate da subjetividade [21][22], espera-se que o Judiciário siga a lição de precedentes com a mais oxigenada exegese, como a visão proposta pela consciente e qualificada magistrada Vera Debone:

Diante da omissão da Municipalidade, que admite em sua resposta que não só não repassou a verba determinada em orçamento , como também não o fará, exsurge a necessidade de pronunciamento do Poder Judiciário. Algumas pretensões de mesma natureza da presente, têm sido fulminadas por juízes e tribunais, sob o argumento da impossibilidade de ingerência do Poder Judiciário na esfera discricionária do Poder Executivo. Felizmente porém, novos ventos sopram, apontando soluções mais ousadas e cívicas e de perfeito entendimento jurídico da efetividade da normativa em vigor, estando os julgadores empenhados em não deixar leis de alcance social significativo passarem à mera condição de "ornamento normativo", carente de eficácia prática. (...) Não se cogita, aqui, de mera liberalidade política do administrador em destinar valores para o Fundo Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, mas sim, em obrigatoriedade legal. (...) Diante do exposto, DEFIRO A LIMINAR requerida pelo MP para determinar a indisponibilidade (...) comprovar o recolhimento de igual quantia junto ao Fundo Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente (...) (Autos n° 279735001.04629 – Vara Regional da Infância e Juventude de Santa Maria (RS), 18.12.1997)

Nessa mesma esteira, Alexandre Morais da Rosa sustenta que a decisão judicial atravessa um processo de bricolage, de ordenação e ligação de significantes, no qual, ao lado das pretensões de validade expostas pelas partes, cabe ao protagonista, o "um-juiz", exercer sua atividade decisória longe das certezas paranóicas do (in)consciente senso comum teórico (que, como dito, infelizmente, tem predominado no campo da judicialização das políticas públicas). Por esse motivo, para bem cumprir a Constituição, esse mesmo "um-juiz" precisa ouvir, sempre que possível, as posições legítimas e representativas da sociedade (v.g, deliberações das conferências voltadas ao tema da infância), afinal de contas, como assevera o mesmo doutrinador, que também é magistrado, "é do entrecruzamento de diversos discursos, da fusão de horizontes (GADAMER), realizados num processo intersubjetivo válido de encontro, que se constroem verdades possíveis". [23]

Dependendo da qualidade e efetividade da resposta do Poder Judiciário, viável apostar que a mudança do deficitário quadro orçamentário voltado à infância e adolescência pode ser o real "horizonte de sentido" capaz de representar a saída da "desconsideração absoluta" para o caminho da otimização dos recursos exclusivamente destinados para o Orçamento Criança e Adolescente.

4.2. A responsabilização e o ato de improbidade administrativa do agente político que desrespeita o princípio da prioridade absoluta

A eminente maioridade do Estatuto contrasta com a tímida atuação dos operadores de direito para combater o desrespeito aos comandos legais voltados à problemática orçamentária. Diante da escassez de recursos públicos para implementação da rede de serviços e atendimento à população infanto-juvenil, clama-se pela efetivação de medidas enérgicas pelos atores do sistema de direitos e garantias. A prioridade absoluta faz desaparecer a discricionariedade do administrador, que, obrigatoriamente, deve proceder à destinação privilegiada de recursos públicos para essa área, em consonância com os planos de ação e de aplicação elaborados pelo CMDCA. Não só deve o gestor destinar recursos para a área infanto-juvenil, mas fazê-lo em conformidade com a resolução do Conselho dos Direitos, órgão ao qual compete estabelecer a política municipal nesse âmbito.

Uma vez descumprida, por parte do administrador público, uma deliberação do Conselho de Direitos (...) deverá o Órgão tomar medidas de cunho administrativo e mesmo judicial, não apenas para fazer prevalecer sua decisão que, como dito acima, é soberana, mas também no sentido de buscar a responsabilidade daquele, que terá, então, na melhor das hipóteses, atentado contra os princípios fundamentais que regem a administração pública, na forma do previsto no art. 11 da Lei n° 8.429/92). (grifos do autor) (DIGIÁCOMO)

Compete ao gestor comprovar que, na programação orçamentária, particularmente na distribuição das receitas e despesas, houve respeito e preferência na vinculação de recursos exclusivos em favor das crianças e dos adolescentes, sob pena de ser responsabilizado.

(...) não poderá mais haver a desculpa amarela da falta de verbas para a criação e manutenção dos serviços afetos a infância e juventude. (...) A discricionariedade dos atos administrativos cessa quando há violação da garantia da absoluta prioridade e a omissão do administrador resultar em dano efetivo. (BRONZEADO)

O descumprimento das determinações de prioridade absoluta e destinação privilegiada de recursos públicos (especialmente se posterior à recomendação sobre necessidade de revisão e retificação do agir administrativo) merece análise sob a tipologia do ato de improbidade administrativa que atenta contra princípios da administração pública [24], conduta que, em tese, também pode gerar repercussão criminal [25]. Assentada a era pós-positivista, a despeito de toda a polêmica envolvendo o alcance da Lei de Improbidade Administrativa [26], indiscutível a necessidade de revigorar a força normativa dos princípios, especialmente para responsabilizar gestores públicos que pratiquem atos de má gestão administrativa por desonestidade ou ineficiência funcional dos quais advenha prejuízo à doutrina da proteção integral de crianças e adolescentes. Os princípios não são meras sugestões, constituem-se verdadeiras normas que encerram um elenco de direitos e garantias, cuja inobservância eiva de ilicitude o comportamento do agente público.

Postos para serem determinantes de comportamentos públicos e privados, não são eles arrolados como propostas ou sugestões: formam o Direito, veiculam-se por normas e prestam-se ao integral cumprimento. A sua inobservância vicia de mácula insanável o comportamento, pois significa a negativa dos efeitos a que se deve prestar. Quer-se dizer, os princípios constitucionais são positivados no sistema jurídico básico para produzir efeitos e devem produzi-los. (ROCHA)

Assim, uma vez verificada que a conduta do agente político violou os postulados legais relativos à prioridade orçamentária necessária para a promoção das políticas infanto-juvenis, cumpre processar judicialmente o gestor, atitude capaz de estabelecer duas conseqüências: (1) traço punitivo e responsabilizador para o caso concreto; (2) viés punitivo-pedagógico para prevenir e mitigar desprezo e desconsideração absoluta das demais autoridades quanto à matéria, rechaçando a sensação de impunidade ainda tão disseminada em nosso país.

(...) o elenco legal não constitui mera recomendação aos órgãos governamentais e não-governamentais responsáveis pela realização da política de atendimento; pelo contrário, consubstancia-se verdadeiro comando normativo e, portanto, de execução obrigatória, sob pena do ajuizamento das "ações de responsabilidade" referidas no art. 208 do ECA. (TAVARES)

4.3. Conveniência de edição legislativa para estabelecer critérios objetivos e parâmetros quanto ao cumprimento da prioridade absoluta do OCA

Ainda que a hermenêutica constitucional e uma aguçada visão social do juiz constituam ferramentas eficientes para a efetivação dos princípios supracitados, antevendo as dificuldades que uma visão progressista e favorável à judicialização do tema (inclusive com repercussão no campo da improbidade) enfrentará em virtude do senso comum teórico, convém editar-se norma nacional (seja por emenda constitucional, seja por acréscimo de dispositivo ao ECA) que pormenorize e defina contingenciamento de recursos ou parâmetros objetivos mínimos e específicos para a otimização do OCA.

Tal como ocorre com as verbas referentes à educação e saúde, estima-se que a estipulação de percentual do orçamento (receitas vinculadas) às despesas com os programas de atendimento e políticas públicas infanto-juvenis seja providência pertinente para obrigar o Município (e os demais entes federativos) a otimizar os recursos para o OCA, o que inclui o custeio da rede de atendimento e o destino de recursos específicos e suficientes para o FIA. Com isso, estar-se-á detalhando e estabelecendo expressamente os parâmetros legislativos que devem nortear a obrigação de cada ente federativo na conformação e adequação do orçamento frente aos princípios da prioridade absoluta e destinação privilegiada de recursos públicos.

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Sobre os autores
Millen Castro Medeiros de Moura

Promotor de Justiça em Valente (BA)

Márcio Soares Berclaz

Promotor de Justiça do Estado do Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOURA, Millen Castro Medeiros ; BERCLAZ, Márcio Soares. O FIA e as so(m)bras do orçamento público.: Da (des)consideração absoluta à otimização de recursos para o Orçamento Criança e Adolescente (OCA). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1773, 9 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11241. Acesso em: 25 abr. 2024.

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